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Tocqueville, as ruas e os riscos da carnavalização do protesto

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RICARDO VÉLEZ-RODRÍGUEZ*

O Brasil vive tempos de turbulência. Não se trata de algo absolutamente negativo. Trata-se da vida de uma sociedade que tenta descobrir os seus caminhos, na trabalhosa via que conduz à democracia. Surgida, para o mundo da política, “em berço esplêndido” à sombra do Estado patrimonial, a sociedade brasileira busca encontrar caminhos próprios, que revertam a tutela do Estado, a fim de que ela própria se torne senhora do seu destino histórico. Trata-se de uma “crise” no sentido grego do termo, ou seja, uma etapa de crescimento.

É evidente que vivemos tempos complexos, na medida em que os parâmetros que temos de encarar não são simples. Quais os elementos que, na atual conjuntura, nós, brasileiros, nos vemos obrigados a encarar? Eles se identificam com as várias opções que os atores políticos colocam e que não aparecem organizadas nem logica nem historicamente. Tudo desaba ex-abrupto sobre as nossas cabeças, à semelhança das múltiplas tendências que, no início da vida republicana, o grande Sílvio Romero identificava como “surto de ideias novas que se projetaram sobre a realidade brasileira dos quatro cantos do horizonte”.

A complexidade social dos dias que correm está certamente identificada, de um lado, com o canto de sereia dos que pretendem que tudo será efeito de uma entropia social ao redor do centro do poder, numa solução de tipo hobbessiano que apregoa a unanimidade como regra de comportamento político. É o expediente jacobino que ainda paira sobre as nossas cabeças, apregoado, em alto e bom som, pelo PT e os seus principais atores, a presidente Dilma e o seu inspirador e guia, Lula.

No outro canto das opções sobre o tapete, aparece a variada gama dos que defendem uma desconstrução anárquica de tudo quanto está aí, utilizando, na pregação iconoclasta, as redes sociais e a violenta ação direta de grupos neofascistas e das ONGs, que tanto têm proliferado nas últimas décadas. São os espertalhões que surfam à mercê dos ventos orçamentários, como os capilés da vida. São os skin heads e os black blocs caboclos, todos de rosto mascarado, que espalham o terror indiscriminado nas badernas infiltradas nas manifestações. Espertice, aliás, que tenta ser capitalizada pelo centro do poder com a intermediação ministerial de um dos tentáculos de Lula, o ministro Gilberto Carvalho que anunciou, no findar das luzes do ano passado que, em 2013, “o bicho iria pegar”, em alusão à alternativa da agitação dos movimentos sociais como fortim de barganha dos donos do poder.

Num outro canto do tapete aparece o fenômeno que foi considerado assaz novo na nossa história recente: a massiva e pacífica movimentação e participação dos jovens nas denominadas “Jornadas de Junho”, convocados via redes, que bem poderíamos comparar, servatis servandis, com as que, com o mesmo nome, Tocqueville estudou na França de 1848 na obra que o escritor francês intitulou: Lembranças de 1848 – As jornadas revolucionárias em Paris [tradução de Modesto Florenzano; prefácio de Fernand Braudel; introdução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Companhia das Letras / Penguin, 2011], livro que se tornou clássico para o estudo sociológico da movimentação revolucionária das ruas, do ângulo liberal. As manifestações brasileiras foram pacíficas e espontâneas, diferentemente das que sacudiram a França daquela época.

Num outro ponto das propostas em jogo, aparece o setor do Estado que melhor tem se desempenhado na atual conjuntura, identificado com o Supremo Tribunal Federal, bravamente guiado pelo seu presidente, o ministro Joaquim Barbosa, na tentativa dramática de fazer prevalecer a lei na defesa dos valores essenciais da nossa democracia, identificados com o respeito pela coisa pública, com a igualdade de todos perante a lei e com a defesa da liberdade.

Ocupa lugar, também, na collage de opções ideológico-políticas, a pregação dos que tentam uma volta ao passado, como se a manutenção da ordem dependesse de um cerrar fileiras em torno a propostas autoritárias. É a conhecida opção pelo golpismo como forma extrema de manter a ordem conspurcada pelo populismo da última década. Muito simbolicamente as sombras do passado parecem assomar num canto do horizonte, ao ensejo da exumação dos restos mortais do finado ex-presidente João Goulart, que se tornou pivô do ciclo de exceção militar.

Por fim, no fundo do quadro da atual situação, aparece o Legislativo desmoralizado pelo corporativismo que o levou a defender até o limite um deputado-presidiário, fato que terminou fazendo com que, para se redimir perante as ruas, o próprio Legislativo, na Câmara dos Deputados, terminasse aprovando, de forma atabalhoada, o fim do voto secreto.

Qual a orientação que Tocqueville daria hoje aos brasileiros, em face da complexa situação que acabamos de desenhar? Em primeiro lugar, recomendaria fazer um balanço, o mais claro possível, da situação conflituosa com que o país se defronta. Em segundo lugar, proporia apostar na mudança, mas cerrando fileiras ao redor das instituições que defendem a liberdade.

No que tange ao primeiro ponto, fazer um balanço completo da situação, Tocqueville destacava que na França de 1848 o grande problema consistia em que os políticos no Parlamento tinham deixado de cumprir com a sua função de representar os interesses da população, tendo ficado reféns das benesses oferecidas pelo soberano Luís Filipe, que ofereceu a todos uma espécie de “mensalão” para comprar a sua fidelidade. Diante do risco de perder as benesses, em decorrência da mudança de ministério anunciada por Guizot, os deputados ficaram em pânico. Eis as palavras de Tocqueville a respeito:

“(…) Esse desespero não deve surpreender, se se levar em conta que a maioria desses homens sentia-se atingida, não só em suas opiniões políticas, mas também no mais profundo de seus interesses privados. O acontecimento que derrubara o ministério comprometia toda a fortuna de tal deputado, o dote da filha daquele ou a carreira do filho do outro. Era por esse meio que quase todos eram domados. A maior parte deles havia ascendido com a ajuda das complacências governamentais e, pode-se dizer, delas tinha vivido, delas ainda vivia e esperava continuar vivendo, porque, uma vez que o ministério durara oito anos, acostumara-se à ideia de que duraria para sempre; ligara-se a ele com o gosto honesto e tranquilo que se sente pela própria terra. De meu banco, observava essa multidão ondulante; percebia a surpresa, a cólera, o medo e a cupidez, perturbados, antes de ser saciados, misturarem seus traços naquelas fisionomias desorientadas; comparava, com meus botões, todos esses legisladores a uma matilha de cães da qual se arranca a carne ainda não devorada” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit., p. 69-70].

Quadro bastante realista que bem poderia servir para desenhar a cupidez e o imediatismo dos nossos representantes no Congresso.

O problema da falta de espírito público da classe política não se restringia, para Tocqueville, apenas aos parlamentares da situação. Grassava essa falha, também, entre os membros da oposição. A respeito, escrevia:

“De resto, é preciso reconhecer que um grande número de membros da oposição teria dado o mesmo espetáculo, se fosse submetido à mesma prova. Se muitos conservadores só defendiam o ministério com vistas a manter emolumentos e cargos, devo dizer que, a meu ver, muitos membros da oposição só o atacavam para conquistá-los. A verdade, deplorável verdade, é que o gosto pelas funções públicas e o desejo de viver à custa dos impostos não são, entre nós, uma doença particular de um partido: é a grande e permanente enfermidade democrática da nossa sociedade civil e da centralização excessiva de nosso governo; é esse mal secreto que corroeu todos os antigos poderes e corroerá igualmente todos os novos” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit., p. 70].

O que o pensador francês retratava era justamente aquilo que Oliveira Vianna identificava como marca registrada da nossa República: a política alimentar.

Passemos ao segundo ponto que mencionei anteriormente: a proposta tocquevilliana de apostar na mudança, mas cerrando fileiras ao redor das instituições que garantissem a liberdade dos cidadãos. Se o Legislativo da época na França estava desprestigiado, o nosso autor considerava que deveria ser preservado em face da maré montante dos revolucionários que queriam a pura e simples abolição das instituições. Ora, a reflexão de Tocqueville é clara: a representação política não pode ser substituída pela movimentação das ruas, embora esta deva ser sempre auscultada como caixa de ressonância do que os cidadãos querem. Por outro lado, não pode haver representação adequada sem partidos que canalizem a defesa dos interesses dos indivíduos. Não se pode brigar de peito aberto nas ruas, sem ter uma instituição que garanta a eficácia e a legitimidade da luta. “Tenho mais experiência que o senhor em movimentos populares – dizia Tocqueville ao general Bugeaud, que tentava peitar, sozinho, os revolucionários de 1848 na rua -; creia-me e volte imediatamente ao seu cavalo, pois, se ficar, será morto o aprisionado em menos de cinco minutos”. O cavalo dos cidadãos é a representação. Sem ela, a defesa dos seus interesses irá por água abaixo.

Tocqueville saudava a mudança. Mas não acreditava na convulsão revolucionária como meio de ação. Confiava mais em reformas que garantissem o exercício da liberdade. Em face da movimentação revolucionária de 1848, o pensador observava que muitos estavam felizes com o fato de as vetustas instituições terem ido por terra, a começar pelo parlamento. O seu amigo Beaumont era um desses otimistas.

“Eu estava longe de esposar essa alegria – escreve Tocqueville – e, como me achava entre pessoas com as quais podia falar livremente, expus-lhes os meus pensamentos: A guarda nacional de Paris acaba de destruir um governo; é pois de acordo com ela que os novos ministros vão dirigir os assuntos. Alegram-se porque o ministério foi derrubado; mas não percebem que é o próprio poder que foi lançado por terra. Essa política sombria não agradava a Beaumont. O senhor vê tudo sempre negro, disse-me, gozemos antes nossa vitória. Mais tarde nos inquietaremos com suas consequências (…). Nem por isso deixei de manter minha tese diante dele, sustentando que, fosse como fosse, o incidente tinha sido infeliz ou, antes, que era necessário nele ver mais que um incidente, que se tratava de um grande acontecimento que iria mudar a face de todas as coisas (…). O movimento imprimido à máquina pública parecia-me muito violento para que o poder pudesse ser retido pelos partidos intermediários aos quais eu pertencia; segundo minhas previsões, ele cairia logo em mãos que eram quase tão hostis quanto aquelas das quais escapara” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob cit, p. 71-72].

Confiar cegamente nas revoluções não era uma boa alternativa, segundo Tocqueville. Isso porque elas obedecem a uma dinâmica irracional e terminam beneficiando os oportunistas e sacrificando a maioria.

“As revoluções – frisava o nosso autor – nascem espontaneamente de uma doença geral dos espíritos, induzida de repente ao estado de crise por uma circunstância fortuita que ninguém previu; quanto aos pretensos inventores ou condutores dessas revoluções, nada inventam ou conduzem; seu único mérito é o dos aventureiros que descobriram a maior parte das terras desconhecidas: atrever-se a ir sempre em linha reta, para a frente, com o vento a favor. Retirei-me cedo; deitei-me logo depois., Embora morasse bem próximo do palácio dos Negócios Estrangeiros, não ouvi a fuzilaria que tanta influência exerceu sobre os destinos, e adormeci sem saber que tinha visto o último dia da Monarquia de Julho” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit., p. 73].

Tocqueville considerava que, no contexto da revolução que tudo removia, era necessário salvar a instituição que encarnava a representação dos interesses dos cidadãos, o Parlamento. Em tempos de turbulência os representantes do Estado devem ocupar os seus lugares. Tocqueville, nas Jornadas de Junho de 1848, correu para o Parlamento e sentou na sua cadeira. Eis a forma em que, nessas circunstâncias, o nosso autor vivenciava a preocupação para com o Legislativo. Diante das turbas iradas que tinham deposto o Ministério, ele procurava salvar a mínima dignidade do Parlamento, impedindo que simplesmente fosse fechado pela turba incendiária. Tocqueville, deputado eleito pelo seu torrão familiar, a Normandia, lutava para salvar a Casa do Povo. Escreve:

“Ao atravessar a praça do Palácio Bourbon, com esse objetivo, avistei uma multidão muito heterogênea que acompanhava entre grandes aclamações dois homens que reconheci imediatamente: Barrot e Beaumont, com os chapéus enfiados até os olhos, as roupas cheias de pó, os rostos encovados, os olhares abatidos – nunca vencedores assemelharam-se mais com homens que estão a caminho a forca. Corri para Beaumont e perguntei-lhe o que acontecia; disse-me ao ouvido que o rei havia abdicado em sua presença, que fugira (…) , que tudo ia à deriva; enfim, que ele e Barrot se dirigiam ao Ministério do Interior para tomar-lhe a posse e procurar estabelecer um centro de autoridade e de resistência em alguma parte. E a Câmara? Perguntei-lhe, tomaram precauções para sua defesa? Beaumont recebeu a indagação com irritação, como seu tivesse lhe falado de minha própria casa. Quem pensa na Câmara?, respondeu-me bruscamente. Para que pode servir e a quem pode prejudicar nesta situação? Achei que ele estava errado ao pensar daquela forma, e com efeito estava. Era verdade que, naquele momento, a Câmara estava reduzida a uma singular impotência, com sua maioria desprezada e sua minoria ultrapassada pela opinião do momento. Mas Beaumont esquecia-se de que é sobretudo em tempos de revolução que as menores instituições do direito – e mais: os próprios objetos exteriores – adquirem a máxima importância, ao recordar ao espírito do povo a ideia de lei; pois é principalmente em meio à anarquia a ao abalo universais que se sente a necessidade de apego, por um momento, ao menor simulacro de tradição ou aos laivos de autoridade, para salvar o que resta de uma Constituição semidestruída ou para acabar de fazê-la desaparecer completamente. Se os deputados tivessem podido proclamar a regência, talvez ela tivesse prevalecido, apesar da impopularidade; e, por outro lado, não se poderia negar que o governo provisório devia muito ao acaso que o fez nascer entre quatro paredes por tanto tempo habitadas pela representação nacional” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob cit., p. 85-86].

Ao ler estas palavras de Tocqueville lembro-me das jornadas brasileiras de junho e vejo que as multidões cobraram responsabilidade dos seus representantes no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas nos Estados e das Câmaras Municipais das cidades. As Casas Legislativas, pelo país afora, foram ocupadas pelos manifestantes. A mensagem estava dada: os cidadãos queriam reconstruir o elo de ligação entre os seus representantes e eles.

Mas, paralelamente, num crescendo patológico, muitas dessas casas do povo terminaram sendo ocupadas por militantes black-blocs e anarquistas, simplesmente com o intuito de desmoralizá-las, tendo servido os espaços do poder legislativo como palcos para cenas de vandalismo, de prostituição e de simples aniquilação de qualquer simbolismo de poder. Isso ocorreu na Assembleia Legislativa do Rio, na Câmara Municipal de Porto Alegre, na Câmara de Vereadores de São Paulo e de outras cidades. O recado dos baderneiros está dado: não dão a mínima para a representação dos interesses dos cidadãos!

De outro lado, no seio do Supremo Tribunal Federal, os juízes indicados recentemente e que entraram a formar parte do colegiado, passam também o seu recado: vieram para “fazer o serviço”, tentando esvaziar o ímpeto da aplicação rigorosa da lei impresso pelo Presidente da Instituição, Joaquim Barbosa, mediante a posta em marcha de firulas revisionistas que ameaçam paralisar o processo. Os beneficiados com essa protelação sabemos quem são: os mensaleiros e o Partido que exerce o poder. Os perdedores também são conhecidos: todos os brasileiros e as instituições republicanas!

Seria fundamental, para a preservação destas, que os cidadãos de novo se manifestassem como o fizeram em Junho e que os intelectuais bradassem contra o desleixo em face da sorte do país. O que se vê é o descaso carnavalesco como essa parada que, em Salvador, tumultuou o trânsito em protesto contra o abandono da banda Chiclete com Banana por um dos seus integrantes…

Seria necessário no Brasil, nos dias atuais, pensaria Tocqueville, que os cidadãos deste país sacudissem de novo a poeira do marasmo e voltassem às ruas para exigir o respeito às instituições que lhes garantem a liberdade, a começar pelo saneamento completo dos partidos políticos e do Congresso e pelo respeito ao Supremo Tribunal Federal, que deveria manter o seu rumo de valorização da lei e das instituições, julgando definitivamente os mensaleiros. Mas o fim do ano se aproxima, o calor se instala e o carnaval de 2014 se insinua no horizonte…

*PROFESSOR UNIVERSITÁRIO E PESQUISADOR

N.E.: Artigo originalmente publicado no site do Autor

IMAGEM: site do Autor

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