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A corrupção é sempre inevitável?

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Com frequência, sou confrontando com a afirmação de que, em absoluto, todos os políticos são ou se tornarão corruptos, não havendo escapatória. Segundo estes, a corrupção seria inevitável e indissociável da prática política. Comumente, vejo que as pessoas que fazem essa afirmação podem ser classificadas em um de dois grupos. No primeiro, estão aqueles que falam isso muitas vezes da boca para fora e quase sempre como uma artimanha para escapar de alguma discussão política e evitar desavenças incômodas. “Para que brigar por política, ou pior, por políticos, se todos eles são iguais e lhe roubarão da mesma forma?”, dirão os membros desse primeiro grupo. Já, no segundo, estão aqueles que, longe de querer fugir de discussões políticas, têm nessa afirmativa uma firme posição. Não raro, chegam mesmo a adotar uma postura um tanto quanto arrogante e taxam de ingênuos aqueles que demonstrem qualquer tipo de predileção política, partidária ou não, e que não advoguem o mesmo niilismo.

Em relação ao primeiro grupo, não há muito o que se dizer, exceto talvez que compreendo a pouca disposição em entrar em discussões políticas, especialmente com parentes, amigos, colegas de trabalho etc. A discussão política não é para todos e ninguém tem a obrigação de dela participar. Além do mais, há os ambientes adequados para isso e não creio que os churrascos de família sejam os melhores candidatos. Já em relação ao segundo grupo, como seu niilismo político não deixa de ser também uma posição política, dedico algumas reflexões pessoais sobre a afirmação de que a corrupção é inevitável na política.

Primeiramente, faço uma provocação que, como tentarei demonstrar, me parece uma consequência lógica: quem defende a indissociabilidade da corrupção com a prática política, por óbvio, deve advogar, ou ao menos concordar com o anarquismo. Vamos por partes.

Se você crê que ao menos uma parcela daquilo que é arrecadado pelo poder público será inevitavelmente escamoteado, que não há forma efetiva de enfrentar esse mal, que todos os que governam ou pretendem governar, mesmo aqueles que se elegem com uma plataforma anticorrupção, já foram ou serão corrompidos pelo poder, o que estais a declarar é, nada menos nada mais, que a corrupção, por inevitável, faz parte da natureza do Estado. Agora, admitindo essa consequência lógica, como defender a legitimidade da existência de algo que você crê que irá perpetuamente roubar, não só a você, mas a seus compatriotas do presente e futuro?

Se invocarmos o argumento contratualista, em que a existência do Estado se legitima para nos resgatar do Estado de Natureza, de guerra de todos contra todos, e nos permitir organizar em sociedade, garantindo a proteção contra agressões, dentre as quais se inclui a agressão contra a propriedade, como admitir que a mesma instituição criada para nossa proteção seja ela mesma vilipendiadora da propriedade?

Crer na indissociabilidade entre a prática política e a corrupção, em todas as suas manifestações, e rejeitar a lógica tendente ao anarquismo, é legitimar um mal, não muito diferente de outros. Poderia então alguém retorquir que, em que pese ser verdade que a corrupção faz parte da natureza do Estado, sendo a anarquia indesejável, a manutenção do Estado seguiria sendo conveniente. Ou ainda: os benefícios de sua existência transcenderiam os malefícios da corrupção.

Não é difícil invocar exemplos análogos que nos demonstrem que aceitar esse argumento para o Estado nos força a ter que aceitar também para outras instituições. Pensemos em uma milícia que, cobrando valores, tal como impostos, dos membros de uma certa comunidade, tenta se legitimar com o argumento de que proporcionam certos serviços que pode realmente oferecer, incluindo a proteção dos “associados”; é verdade que há o elemento da coerção, mas também não há coerção no caso do Estado? Outro exemplo seria o de alguém que aceita integrar uma organização criminosa, uma máfia, com todos os ônus envolvidos, na esperança de também gozar de proteção e outras “comodidades”. Nada menos do que a disposição para arriscar sua vida e liberdade lhe seria pedido, mas não poderiam o status e promessas de riqueza contrapor os riscos?

“Mas não há como comparar a qualidade dos benefícios oferecidos, e, além do mais, essas organizações promovem a segmentação da sociedade, beneficiando seus membros em detrimento de todo o resto, enquanto o Estado, apesar de suas vicissitudes, beneficia a todos”, alguém responderia. Comecemos pelo último argumento. O paralelo com uma milícia é possível por sua natureza criminosa, já que a corrupção, ainda que tida como inevitável, é também criminosa. Em ambos os casos, se admite a continuidade do crime como um preço a se pagar pela continuidade das referidas instituições (milícia e Estado). Agora, crimes só são dignos de ser qualificados como tal se causarem danos às pessoas. Tanto as atividades da milícia quanto a corrupção estatal causam danos inquestionáveis. A diferença pode ocorrer tão somente em grau e na natureza do dano, de modo que inevitavelmente caímos em um argumento utilitarista em que o foco é não a maximização da utilidade, mas a redução dos danos à felicidade geral, optando-se pela alternativa com menor dano, admitindo assim que haverá perdedores e que o Estado não beneficia a todos. Pior: se o crime é de alguma forma tolerado no caso do Estado, que legitimidade ele teria para punir outros crimes, em especial os análogos ao que ele mesmo comete? Se a manutenção do Estado é sustentada por quem crê em sua perpétua natureza cleptomaníaca, sabendo o efeito nocivo que isso terá sobre os membros da sociedade, não teriam outros a mesma prerrogativa de defender outras manifestações do crime, em especial se também em benefício de um maior número?

Quanto ao outro argumento, ele pode ser muito bem combinado com outro, que revela a contradição de muitos destes niilistas políticos. Não é raro que os mesmos que digam que “todos nos roubarão” também estejam entre os que, além de defender a conveniência do Estado, enaltecem de forma até bastante emocional os serviços públicos oferecidos por este a ponto de pretender que não só o que entregamos em impostos é adequado como deveríamos entregar ainda mais com o objetivo de melhorar a qualidade desses serviços. Ou ainda, confrontados com exemplos de ineficiência do Estado e cientes dos argumentos deste de que lhe faltam recursos e de que necessita de mais receitas, aquiescem em entregar ainda mais, sem sequer questionar a origem da escassez de recursos ou pretender uma redução do tamanho e custo da máquina pública.

Imagine então que você viva em um condomínio onde, apesar de pagar taxas muito acima da média do mercado, você é obrigado a conviver com indicativos de total desordem e descaso. Os corredores são imundos, o lixo é espalhado pelas partes externas, a piscina é inutilizável – bem como demais áreas comuns, as reformas tardam a começar e, quando começam, nunca são concluídas, causando transtornos diários aos moradores etc. A empresa que administra o condomínio, apesar de ser muito bem remunerada para tal, não tem qualquer transparência ou boa vontade em lidar com as demandas dos moradores. Imagine então que, pressionado pelos moradores, o síndico agendou uma reunião destes com representantes da empresa gestora para que eles pudessem expor todos os problemas. Então, um desses gestores, engravatado, explica que, para a resolução de todos os problemas, seja a melhoria da limpeza, a revitalização das áreas comuns, a conclusão das reformas — para as quais recursos adicionais já foram previamente levantados junto aos moradores —, seria necessário o pagamento de taxas adicionais. Agora, qual seria a sua reação diante do fato de que, pagando taxas acima do mercado, pagando valores adicionais para reformas nunca concluídas, e ainda assim vivendo praticamente em um chiqueiro, os mesmos que já haviam dado mostras de total incompetência e não faziam qualquer prestação de contas para as vultosas somas recebidas estivessem lhe pedindo que a solução estivesse em entregar-lhes ainda mais dinheiro? Não tendo “sangue de barata”, sua reação certamente seria de indignação. Qual então é o sentido de adotar um comportamento diferente para o Estado, sobretudo quando se crê que a corrupção faz parte da sua natureza? Não soa ridículo dizer algo como “Eles nos roubam, mas devemos entregar nosso dinheiro de bom grado”, ou ainda “Devemos entregar ainda mais, pois, apesar de nos roubarem, eles nos oferecem serviços públicos”?

Como não creem que haja solução para a corrupção, nossos niilistas não podem se escorar naquele argumento, também lugar-comum, de que “o problema é a corrupção e, se não fosse por ela, seríamos ricos” e variantes. Fazendo uma escolha em legitimar a entrega de seus suados recursos a quem acredita ser basicamente uma máfia, esse tipo de niilista político adota o papel de tolo. Tampouco pode argumentar que entrega por coerção, já que faz uma justificativa moral e utilitarista da continuidade da existência de seu explorador; mas não só isso: eles pretendem que outros devem também ser compelidos a adotar o mesmo papel de tolo. Todos deveriam ficar felizes em ser roubados para “fins nobres”, sendo que os que a isso se opõem não passam de pessoas egoístas e que devem mesmo ser punidas se ousarem ocultar seu quinhão. Sonegar, portanto, também lhes é inadmissível, tal como lhes deve parecer absurdo ocultar a carteira temendo a figura encapuzada que lhes espreita.

Notem que a necessidade lógica do anarquismo (sendo a alternativa o papel de tolo) como consequência dessa forma de niilismo político é diferente da abolição do Estado defendida por anarcocapitalistas, por exemplo. No primeiro caso, não é a tributação a priori que pode ser considerada um roubo. A ilegitimidade do Estado surge por crer-se que a corrupção faz parte de sua natureza, violando a própria justificação da sua existência. Depreende-se, portanto, que, se fosse possível combater efetivamente a corrupção (algo não admitido aqui), não só o Estado, mas a própria cobrança de impostos seria legítima. Já os anarcocapitalistas veem tudo sobre o Estado como ilegítimo. Não só a corrupção faria parte de sua natureza, mas sua essência seria desde o princípio a pilhagem. Com ou sem corrupção, não se admite a existência do Estado e nem de nenhuma forma de tributação.

A quem chegou neste ponto imaginando que faço uma defesa apaixonada do anarquismo, lembro que não é esse o caso; apenas o vejo como uma consequência lógica da afirmação de que a corrupção é indissociável da política. Como não concordo com essa afirmação, tampouco advogo o anarquismo, em qualquer de suas variantes (incluindo o anarcocapitalismo).

Dizer que a corrupção não é sempre inevitável é muito diferente de dizer que acredito no fim definitivo da corrupção. As duas afirmações até podem ser similares, mas têm uma diferença fundamental. De um lado, há a crença de que todos os políticos são e sempre serão corruptos. De outro, há a de que um grande número e possivelmente até a maioria esmagadora é de fato corrupta, mas não todos. Distinguimos uma evidente variação em grau, pois, se, em um caso, a corrupção varia tão somente em sua forma, mas segue permanente, no outro, há variação de grau e pode mesmo ser reduzida — ainda que se admita que não extinta, tal como a extinção de outras manifestações de crime não parece plausível.

O niilismo político a que se chega vendo a prática política sempre como criminosa entra, como vimos, em flagrante contradição com a defesa da continuidade do Estado e o endosso ao roubo oficial. Por outro lado, é uma visão condizente com uma postura antissistema que se traduz em uma indiferença em relação à política e quase sempre em voto nulo (não que todo voto nulo seja um voto antissistema). Por óbvio, eu não subscrevo essa posição antissistema, mas é preciso admitir que ao menos há nexo entre demonizar a prática política e não querer ter parte com o que dela resulte. Contudo, isso resulta em uma apatia que não posso deixar de ver como lamentável e que não faz sentido a quem, de uma forma ou de outra, tal como este simples articulista, se dedica ao debate público. Quem participa da prática política, seja com ideias, tecendo críticas aqui, levantando bandeiras lá, não é alguém tão desesperançado a ponto de não querer ter parte alguma com a política e não ansiar, ainda que da forma mais infinitesimalmente modesta, influir nos seus resultados.

Isso nada tem a ver com fé, que pode ser algo muito bom e próprio para a esfera religiosa e privada, mas que na política é sempre desastrosa. Não devemos ter fé em político algum. Contudo, confiança, dada sua condicionalidade, é algo diferente. A confiança pode ser dada, bem como retirada, sendo assim objeto de merecimento. Não cabe aqui o culto à personalidade ou quejandos, o que pode ser outra manifestação do niilismo político, onde, ao invés da conclusão anarquista, busca-se uma conclusão de força, acreditando extirpar o mal tolhendo a política em si (ao menos em sua forma democrática).

Seja o anarquismo, que, não admitindo espaços para a manifestação de vicissitudes públicas, também não admite para a manifestação de virtudes, ou a opção não democrática, onde a força tem primazia sobre a virtude, estamos diante da apatia ou desesperança. Não há homens públicos a serem admirados e uma visão algo cínica nos diz que esforços em os produzir serão sempre vãos.

Não é que eu não veja a desconfiança como salutar. Desconfiar da política, de políticos, do Estado etc, é muito apropriado e deveria ser inclusive mais encorajado. É que o caminho niilista nos deixa sem ação e dá uma ilusão de liberdade. Como você sinceramente crê que a corrupção é inevitável e que você está um passo à frente de todos aqueles que ingenuamente nutrem um mínimo de esperança de que as coisas podem ser diferentes, conclui que, pela ciência daquilo que a maioria cisma em ignorar, você é mais livre. Mas que liberdade é essa que admite o roubo e preconiza a inação? O desgosto que, com razão, sentimos muitas vezes pelo Estado, sendo a corrupção uma, mas não a única razão para esse desgosto, ao contrário de admitir essa apatia, é sim um convite à ação, ação no sentido de não aceitar o leque de absurdos que engloba a corrupção – e é o exercício dessa ação, em suas diferentes possibilidades, o que entendo por liberdade política, à qual não podemos renunciar, sob risco de sacrificar também nossas demais liberdades. Portanto, se entendemos a liberdade política como importante e relevante, não podemos admitir a afirmação de que a corrupção é sempre inevitável.

Talvez seja desnecessário dizer o óbvio de que acreditar na possibilidade de fazer política com princípios não significa que todos ou a maioria o farão, ou que a corrupção seja algum dia extinta por completo. Nosso país convive, infelizmente, com níveis alarmantes de corrupção, e não acredito em passe de mágica que resolva isso. Ocorre que há gente honesta, interessada e genuinamente preocupada com os problemas do Brasil. Há também, apesar de todos os achaques, gente comprometida e disposta a defender hoje e amanhã a liberdade. Se falo em liberdade, é porque entendo que as duas coisas estão de certa forma conectadas: a corrupção, no sentido vulgar e independente de tecnicismos penais, é também um ataque à liberdade, pois trai o próprio contrato social que em tese justificaria a existência do Estado em defesa de nossa liberdade. É importante desfazermo-nos de romantismos pueris, mas também é importante não ficarmos tão desesperançados a ponto de acreditar que não há liberdade pela qual valha a pena lutar.

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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