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Ser ordenado a usar uma máscara não é tirania, ainda…

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(Este artigo foi escrito em agosto de 2020 e enviado para o jornal Human Events – o jornal que foi escolhido por Ronald Reagan como o seu preferido. Consiste numa resposta ao artigo do editor do jornal, Ian Miles Cheong, chamado Being Asked to Face Mask isn’t Tiranny, no qual ele criticava Candance Owens por chamar de tirania o fato de ter sido ordenada por um policial a usar máscara. Apesar de se tratar de um assunto aparentemente já antiquado, estive em São Paulo semana retrasada e vi que por lá as pessoas ainda estão sendo obrigadas a usar máscaras no transporte público, enquanto todo o resto do Brasil já não mais faz isso. Algo como uma versão real do filme ‘A Vila”… Então, decidi que seria uma boa ideia publicar. Ah, por óbvio, o Sr. Cheong sequer me respondeu com uma avaliação…)

Há alguns dias atrás eu gastei um pouco do meu tempo lendo aqui, na Human Events, o artigo Being Asked to Wear a Face Mask isn’t Tyranny, escrito pelo Sr. Ian Miles Cheong. O título já antecipou o desastre que se seguiria, mas, enquanto lia o artigo, eu passei a me sentir da mesma forma que o Sr. Cheong se sentiu enquanto fazia sua análise de tirania… Nada é tão ruim que não possa ser pior.

O argumento central do texto é, talvez, o mais pobre dentre os argumentos que se pode encontrar na arte da retórica: o argumento do “poderia ser pior”. Sr. Cheong gasta mais da metade do seu texto, e de nosso tempo, nos mostrando como alguns países – bem conhecidos por suas tradições autoritárias – estão agindo contra sua própria população para conter o avanço do vírus COVID-19, tentando assustar o leitor com imagens de terror e corrupção; para, ao final, concluir que os americanos devem estar contentes com sua liberdade. Afinal, eles poderiam ser chineses.

O problema com o argumento do “poderia ser pior” é que ele não significa nada por relativizar tudo. Explorar a incrível capacidade humana de achar novas e mais cruéis formas de promover o mal é brincar com o futuro, esquecer o presente e apagar o passado. Dessa forma, cada loucura pode ser aceita depois de Hitler e até mesmo Hitler pode ser visto como aceitável se nós imaginarmos o que pode ser feito por algum outro maníaco algum dia. Se nós considerarmos esse argumento, nada é ruim já que tudo pode ser pior um dia ou em um canto escuro do globo terrestre. Nada é condenável, ainda. Então, deveríamos esperar pelo juízo final para entender qual governo foi tirânico ou não? Ou deveríamos esperar a decisão do Sr. Cheong?

Mas é óbvio que a relativização que é pregada neste tipo de argumento precisa ter um fim. Algo deve ser palpável para que todo o resto se faça fluido. E, para o Sr. Cheong, nada pode ser visto como absoluto em termos de maldade, nada pode sofrer reação, pois poderia ser pior, mas nós temos uma só certeza absoluta: nós estamos enfrentando uma crise mundial, todos nós devemos lutar contra o vírus – loucos são aqueles que questionam a pandemia. Crueldade e tirania são suportáveis, controle governamental uma questão de comparação, mas não a morte; a morte é um absurdo. Isso é o que é indiscutível segundo o texto.

E essa é uma característica extremamente distinta das tiranias e dos tiranos: eles pensam que seus projetos são os únicos projetos que qualquer pessoa pode ter, eles obrigam a todos a aderir ao mesmo projeto, como se o algo pessoal deles fosse algo pessoal para todos. Eles necessitam do “nós”, já que não acreditam no poder do “eu”, e é por isso que eles não conseguem suportar atitudes como a da Sra. Owens, porque ela tem uma opinião e um projeto próprio, mas tiranos não – eles só possuem verdades históricas, sociológicas ou biológicas. Que forma frustrante de se viver!

Sr. Cheong falha horrivelmente quando caracteriza uma tirania somente por sua coerção materializada, seus atos violentos ou por sua vigilância ostensiva. A infantilidade de sua análise pode ser facilmente vista quando ele diz, em tom de deboche, que a “administração de Trump não está pedindo para tomar o controle dos meios de produção ou por redistribuição de renda – o presidente da América não se tornou socialista da noite para o dia”. Pelo que parece, enquanto não houver bandeiras vermelhas com foices e martelos, ou suásticas, panzers e canhões em frente à casa dele, não haverá tirania. Nenhuma Novafala poderia convencê-lo, nenhum Ministério da Verdade também; Sr. Cheong só tem medo de gulags e campos de concentração, mas não do trem que nos carrega até eles.

Todas essas imagens terríveis de que o Sr. Cheong tem medo e que ele caracteriza como tirania não são elementos essenciais de tiranias. Elas são apenas manifestações de tiranias já consolidadas, se utilizando de violência comedida como forma de ameaça. O que caracteriza uma tirania é o total desrespeito pela diversidade. Neste século, como Arendt disse, a forma mais proeminente de tiraria é a tirania da verdade, a tirania do Rei-Filósofo, que usa a ideia de verdade – ou de ciência – para forçar unanimidades sem considerar a possibilidade de discordâncias. Essa é uma necessidade vital quando o Rei-Filósofo tem um projeto ideológico – combater raças impuras, combater o capitalismo, combater um vírus… Algo grande e impessoal, não aquela conversa louca de projetos e sonhos pessoais; nenhuma individualidade será considerada em uma tirania.

Isso é algo que toda criança que leu Senhor das Moscas com alguma atenção e um pouco de maturidade consegue entender. Normalmente, o monstro é muito mais uma imagem, um medo, algo mitológico, maior que toda a humanidade e seu valor individual; então, logo se percebe que essa imagem nada mais é que uma projeção do verdadeiro monstro – nós. Toda vez que a humanidade lutou contra um monstro, os monstros lideraram a guerra – e normalmente eles tendem a ser somente criaturas assustadas e dignas de pena.

E, normalmente, essas pequeninas e assustadas pessoas ascendem ao poder com a melhor das intenções, usando do medo de outras pessoas assustadas para tomar o controle e exercer suas assustadoras causas. Como o Sr. Cheong acredita que os países que ele citou como sendo menos livres que os Estados Unidos iniciaram seu caminho para o requinte e refinamento na arte de esmagar seu próprio povo? Com ditadores se utilizando de slogans para anunciar como matarão, torturarão e espionarão seus próprios cidadãos? Não, tiranos são gente boa. Eles só não ligam muito para o julgamento dos outros, só isso. Eles possuem seus próprios bons e puros projetos e todos devem ter os mesmos.

Mas poder é movimento e movimento demanda combustível. E, quando o combustível é infinito, o movimento é incessante. Quando pessoas assustadas ascendem ao poder procurando lutar contra conceitos abstratos, poderes divinos ou causas naturais, elas possuem combustível por toda a eternidade. Quando o inimigo é maior que a própria humanidade, a humanidade perde seu valor, dando ao simples lutar um valor intrínseco. É o que Camus chamou de “frenesi” – a busca por poder que substitui a busca por um valor real. O problema com a luta contra um vírus não é a luta, nem o vírus, mas o que nós esquecemos durante a luta: que a vida humana não é algo unicamente biológico. Humanidade como algo eminentemente coletivo não é um valor absoluto, já que cada vida humana possui um valor único e é por essas unicidades que é composta a humanidade em um sentido coletivo. Se alguém teoricamente suprime essas individualidades da humanidade, não haverá mais humanidade a ser salva.

Para viver uma vida humana que valha a pena ser vivida, é necessário que ela seja vivida em sua plenitude, e a plenitude da vida de uma pessoa é inseparável das opiniões desta mesma pessoa acerca de como ela deve viver sua própria vida. Para cada pessoa é concedida a graça de achar seu próprio projeto de vida, e essa graça não pode ser retirada por nenhum governo, multidão ou comentarista político. E foi exatamente isso que fizeram os Estados Unidos mais livres do que os outros países que o Sr. Cheong citou – o que não é um prêmio, ou um alívio, mas uma responsabilidade –, essa geral e constitucionalizada capacidade de compreender que o que torna todos os seres humanos neste planeta iguais é sua forçosa individualidade e diferença perante todos os outros.

Se a Sra. Owens tem esse senso que é tão típico e que marca tão bem o caráter do povo americano, provavelmente, para ela, recusar usar uma máscara em frente a um guarda não necessariamente significa que ela nunca usaria uma máscara. Comportamento antissocial não deve ser confundido com comportamento antiburocrático. Desrespeito por autoridades públicas não quer dizer desrespeito por qualquer autoridade, nem mesmo desrespeito pelo conteúdo da ordem dada; quer dizer somente o desrespeito pela ameaça de violência carente de escrúpulos. Pois é isso que toda ordem policial é: um conselho seguido de uma ameaça.

O fato é que a Sra. Owens, honrando a herança deixada pelo Sr. John Adams, Walt Whitman e Henry David Thoreau, e todo bom e honrado americano que já viveu neste mundo, negou sem necessariamente negar. Como é típico de todo poder governamental ignorar se uma ordem foi obedecida pelo cidadão por ter ele concordado com ela – até o dia em que só não haja mais qualquer aceitação ou negação, somente ordens cumpridas –, o remédio contra isso é negar qualquer ordem mesmo que tenha sido efetivamente aceita – atacando, assim, a ordem formal e protegendo, então, o julgamento individual. Em frente a uma autoridade pública, primeiro deve-se dizer “não”, então, só após, considerar.

Não foi assim que se deu a Revolução Americana? A negação à coroa britânica não foi a negação aos bons sentimentos de vassalagem que unem o povo americano e britânico – a inescrupulosa coroa perdeu sua colônia, mas a apreciação pela nobreza como virtude permaneceu intacta. O resultado foi a luta fraternal promovida por ambos os povos contra um inimigo real – Hitler e suas verdades biológicas.

É por esse motivo que os americanos são um exemplo para o mundo quando o assunto é liberdade: eles sabem que a liberdade pode insuflar o que tem de pior e o que tem de melhor nas pessoas, mas que a tirania de opinião só pode levar a mais tirania. Obrigar alguém a lutar por alguma coisa em que essa pessoa não acredita não é tirania, ainda – não de uma forma que o Sr. Cheong conseguiria reconhecer. Mas cedo ou tarde se tornará, se só houver Sr. Cheongs e nenhuma Sra. Owens nos Estados Unidos. Eu poderia dizer como o Sr. Cheong disse, que o ambiente político brasileiro é mais tirânico que o ambiente político americano, somente para domesticar os americanos e seus selvagens e belos sentimentos de individualidade; mas eu não quero mais Brasils, nem mesmo mais Malásias, sem dúvida, não mais Chinas; o que eu quero para o mundo é mais Lands of the Free, mais vassalos de uma nobreza metafísica, mais rebelião contra a burocracia, mais virtude inspirada na liberdade; menos falsas virtudes sugeridas por ordens coletivas.

A única forma pela qual os Estados Unidos podem oferecer uma alternativa à brutalidade do modelo chinês, ou o modelo alemão, ou o modelo russo, é protegendo algo que esses países têm uma nefasta herança em negligenciar: a liberdade de opinião – mesmo as opiniões ruins.

Não, Sr. Cheong, nós não estamos em tempos de guerra. Talvez você, e a maioria dos americanos, e a maioria do mundo, mesmo o Google, acreditem que sim, mas nós não estamos. Então que vocês que acreditam, se juntem e lutem contra o ar, vistam suas máscaras e ergam suas bandeiras de saúde pública, marchem sem trepidar direto para a mais importante batalha que já ocorreu no mundo dos loucos: a guerra contra a morte. Eu prefiro viver. Mas, se minha liberdade pessoal é um obstáculo para seus objetivos, se ao procurar os seus desejos você precisará ignorar os meus e utilizará do poder público para me forçar a concordar contigo, aí sim, só então, nós estaremos em tempos de guerra.

*Igor Damous é advogado criminal.

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