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Uma juristocracia prosélita em Davos e despótica em casa

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A alusão aos péssimos níveis de formação escolar como causa-raiz de nossas mazelas está longe de ser um clichê. Na temática do universo togado, por exemplo, ouso arriscar o palpite de que uma sociedade informada sobre as funções institucionais de um juiz dificilmente toleraria a série de distorções incorporadas à nossa rotina e que, para além das “bolhas” das redes sociais, costumam suscitar tédio e/ou indiferença junto à população.

No Fórum Econômico Mundial de Davos deste ano, nosso país não se fez representar pelo assentado no Planalto, por seu vice ou pelo ministro da economia, mas pelo togado à frente da nossa cúpula judiciária. Em uma situação singular, pois, no rol dos mais de 2.800 participantes do evento, não constava um magistrado sequer[1], a autoridade responsável pela discussão de assuntos econômicos em âmbito global e até pela interação com eventuais investidores estrangeiros não foi escolhida nas urnas nem designada pelo político eleito para ocupar cargo técnico. Sinalizamos, aos olhos de todos, que a definição de políticas públicas relevantes cabe mesmo ao presidente do único poder não-eleito, cuja “eloquência” na identificação das nossas feridas e na apresentação de propostas para saná-las não pôde deixar de assustar os entusiastas da democracia e do princípio constitucional da separação entre os poderes.

Em nosso atual sistema, onde magistrados supremos, desconsiderando a Constituição e as leis, avocaram para si papel central na tomada de decisões que caberiam à esfera governamental, Barroso retomou o velho cacoete de abandonar a toga em sua cadeira para se colocar sob os holofotes da mídia internacional. Assim, foi no exercício desse protagonismo que alertou para o nosso risco de perda da soberania sobre a Amazônia, “não para outros países, mas para o crime organizado[2]”, em obviedade constatada ao longo de décadas de nossa história. Ora, se, na qualidade de “político não-eleito”, aludiu à criminalidade como um risco sistêmico, seria de se imaginar que, ainda em seus anos exclusivamente dedicados à toga, Barroso tivesse submetido gangues de bandidos aos estritos termos da lei. Porém, como nem sempre os discursos correspondem às ações, digamos que ele não tenha sido um magistrado lá muito rigoroso com acusados por crimes graves, como narcotráfico, nem mesmo com aqueles flagrados com quantidades consideráveis de entorpecentes[3]. Culpe as fragilidades da natureza humana, caro leitor…

Ainda no campo da segurança pública, o togado, agora investido de autoridade de ditar normas a uma população inteira – e não mais só às partes litigantes em processos -, anunciou que enfrentará o assunto com “criatividade, ousadia e sem preconceito”. Segundo o ministro, a violência “tem se agravado” na América Latina, devendo ser incluída na agenda progressista, que “sempre a negligenciou em alguma medida”, atribuindo o problema “tão somente à pobreza e desigualdade; o que é um fato, mas pobre também precisa de segurança pública e nós nos atrasamos”, proclamou Barroso[4]. O endosso à tese vetusta e desacreditada sobre uma correlação direta e necessária entre pobreza e violência e, ainda, a alusão à suposta necessidade de revisão da pauta progressista voltaram a caracterizar Barroso como um prosélito, assumidamente alinhado a um certo viés ideológico. Afinal, ninguém clama pela atualização de uma agenda se não se sentir identificado com as principais bandeiras defendidas por aquela corrente de pensamento.

Portanto, como anunciado por nosso “primeiro-juiz”, prepare-se para acompanhar o grande evento, talvez no CNJ, onde deverão ser debatidos temas atinentes à política de drogas e de segurança pública[5]. Esqueça as lideranças eleitas, cuja própria inércia as tem reduzido à insignificância dos coadjuvantes, e não desgrude os olhos do noticiário jurídico, pois é lá que você se manterá informado sobre as deliberações efetivas acerca dos assuntos cruciais para nossa sociedade. Deliberações, reitere-se, tomadas por uma maioria de militantes políticos usuários de toga.

Por falar em militância togada, poucas horas após a aparição midiática de Barroso na Suíça, seu colega, ministro Alexandre de Moraes assinava mandados de busca e apreensão, no âmbito da Operação Lesa-Pátria, contra suspeitos de estímulo de bloqueios a rodovias após o segundo turno da última corrida presidencial. Como principal alvo, figurava o deputado federal Carlos Jordy (PL-RJ), líder da oposição na câmara, conhecido por seu apoio ao ex-presidente Bolsonaro e por suas críticas ácidas ao Judiciário e ao atual grupo político no comando[6]. Para surpresa de ninguém, a operação também afetou pessoas desprovidas de foro privilegiado e, via de consequência, fora da jurisdição de Moraes e de seus colegas.

Mais uma vez, a decisão[7] foi motivada pela prática dos tais “atos antidemocráticos” ou, como repetido à farta por aqui, pela expressão de ideias e opiniões ditas nocivas ao ambiente democrático e até por conversas em grupos de WhatsApp sobre a organização de “movimentações extremistas”, “agitando a militância da região”. Segundo Moraes, o principal “cúmplice” do deputado nos tais “atentados à democracia” seria um assessor da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, ao qual foi atribuído o “crime” gravíssimo de atuar como “uma liderança da extrema-direita local, (…) que organizou diversos eventos antidemocráticos na cidade de Campos.”

Em síntese perfeita sobre a motivação para todas as suas condutas “inovadoras” dos últimos anos, Moraes decretou, já no trecho final da decisão, que “a Democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler.” Mediante sua analogia com figuras como Chamberlain e Hitler, pertencentes ao universo político, Moraes tornou a esquecer as aparências do próprio decoro, a equiparar nosso atual espaço político a um cenário de beligerância e a assumir a identidade de uma liderança como Churchill, que, em plena 2ª. Guerra Mundial, teve de trocar os entendimentos diplomáticos pela violência dos bombardeios.

Como se depreende de mais esse julgado proferido no tom emocional próprio aos políticos – mas estranho a magistrados no cumprimento de seus deveres -, a embriaguez pelo poder sem freios e a autoidentificação como “salvador” de uma ordem democrática inflamam o ego humano a ponto de fazê-lo enxergar as garantias constitucionais da imunidade parlamentar de um deputado (inviolável por suas ideias e opiniões) e da liberdade de expressão de indivíduos comuns como adereços inúteis, passíveis de serem violados em nome de um alegado “bem maior”. Assim se edificam os regimes autoritários, amparados por justificativas retóricas canalhas de uma grande mídia cooptada e sob os olhares bovinos de cidadãos apassivados pela ignorância e pelo medo.

O proselitismo na Suíça e as buscas alexandrinas são faces da mesma moeda de morte da institucionalidade, em um sistema onde togados desempenham atribuições que não lhes competem enquanto infringem dispositivos da Constituição sob sua guarda – para desalento de todos nós, espíritos livres.

[1] https://revistaoeste.com/mundo/barroso-unico-juiz-mundo-davos/

[2] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/em-davos-barroso-defende-soberania-da-amazonia-e-alerta-sobre-crimes-na-regiao/

[3] https://www.conjur.com.br/2023-jul-24/quantidade-droga-apreendida-nao-justifica-preventiva-reitera-stf/

[4] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/problema-da-seguranca-e-violencia-se-agrava-e-deve-estar-em-agenda-progressista-diz-barroso/

[5] https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/barroso-em-davos-o-pa%C3%ADs-precisa-enfrentar-a-quest%C3%A3o-das-drogas/ar-AA1n8EZV

[6] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/carlos-jordy-lider-oposicao-governo-lula-camara-alvo-stf/

[7] https://mail.google.com/mail/u/0/?tab=rm&ogbl#inbox?projector=1

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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