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A “direção certa” da História e a filosofia da democracia togada

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O ministro Luiz Roberto Barroso assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF). Eis o que dissertou na cerimônia, embalada pela música de Maria Bethânia e convertida em espetáculo: “Nessa matéria, temos procurado empurrar a História na direção certa. Temos sido parceiros da ascensão das mulheres, na luta envolvente por igual respeito e consideração, no espaço público e no espaço privado, bem como contra a violência doméstica e sexual. Também temos atuado, sempre com base na Constituição, em favor do heroico esforço da população negra por reconhecimento e iguais oportunidades, validando as ações afirmativas, imprescindíveis para superar o racismo estrutural que a escravização e sua abolição sem inclusão acarretaram. Do mesmo modo, a comunidade LGBTQIA+ obteve neste Tribunal o reconhecimento de importantes direitos, com destaque para a equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais, tendo por desdobramento a possibilidade do casamento civil. Mas não foi só. Povos indígenas passaram a ter a sua dignidade reconhecida, bem como o direito a preservarem sua cultura e, ao menos, uma parte de suas terras originárias. Atuamos, ainda, para que pessoas com deficiência sejam valorizadas na sua diferença, no esforço de se proporcionar acessibilidade e inclusão. A proteção ambiental foi igualmente objeto de atenção do Supremo, que procurou enfrentar, dentro dos seus limites, o desmatamento e a mudança climática.”

Barroso garante que as pautas que elenca não são “progressistas” ou “conservadoras”, mas pautas humanitárias mínimas com que todos teriam de concordar. Não há em que discordar quanto ao fato de que problemas como a violência contra a mulher ou o racismo devem ser condenados e combatidos, e nisso esquerdas e direitas minimamente civilizadas poderiam dar-se as mãos. Entretanto, o que diz Barroso em seu discurso é que o STF deve zelar por “empurrar a História na direção certa”. Não há como enxergar tais declarações como “imparciais” ou inocentes poucos meses depois de o referido ministro discursar em congresso da União Nacional dos Estudantes, onde cometeu o “sincericídio” de exclamar: “Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas”. Antes de tudo o mais, ele estava ali a fazer um “comício” perante os esquerdistas e “progressistas”, algo totalmente inadequado à sua posição de autoridade judiciária, mas talvez adequado à de agente de um organismo crescentemente despótico – como ele mesmo disse, um “poder político”, com agenda própria, mas que não busca os votos do eleitor para implementá-la. Derrotar uma das parcialidades políticas da eleição de 2022 – no caso, a dos eleitores de Jair Bolsonaro – seria “empurrar a História na direção certa”? Caberia isso ao órgão que exerce o controle de constitucionalidade? É competência de seus ocupantes? Seria irrazoável deduzir isso das palavras do atual presidente do Supremo, que fala em “pacificação” com o Congresso um tanto tarde demais?

Conforme ressaltei naquela ocasião, o STF – enfatize-se: o órgão, não um ou dois ministros, o órgão – havia emitido uma nota oficial em defesa de Barroso, “justificando” que a frase dele se referia “ao voto popular e não à atuação de qualquer instituição”. O posicionamento do STF, ao se pronunciar de maneira tão despudorada e desconectada da realidade, foi uma prova inequívoca de senso de corporação, do qual nenhum dos ministros, ao não ter havido um sequer que rechaçasse abertamente seu conteúdo, pode ser excluído.

Agora, quase como um mandatário executivo apresentando um programa de governo, Barroso faz desfilarem em seu discurso de posse presidencial objetivos como a reparação dos males causados pela escravidão do século XIX, o combate ao “racismo estrutural”, as ações afirmativas ou mesmo a salvação do meio ambiente como causas que o STF deve sustentar e fazer triunfantes. Com efeito, quando questões eminentemente ligadas à adequação de projetos de lei em circulação no Legislativo se confrontam com princípios expressamente presentes na Constituição Federal, compete (ou competiria) aos togados supremos, como guardiões da carta magna de 1988, exercer o controle de constitucionalidade.

O que se tem visto, entretanto, ao contrário – também, é verdade, em função da inércia do Legislativo em se defender ou da afobação de alguns congressistas em recorrer à instância suprema do Judiciário em vez de permitir que seu próprio poder dê azo a suas prerrogativas -, é que o Supremo vem ultrapassando esses limites sucessivamente, pondo-se a deliberar sobre temas como aborto, legalização das drogas, (“desinvenção” do) Marco Temporal, ferindo interesses de importantes correntes de opinião da sociedade sem que o texto constitucional lhes tenha conferido poderes para tal. Tudo isso sempre tem sido feito em nome da “democracia”, do “progresso” e da missão, autodeclarada por Barroso, de “empurrar” nossa vida pública para a “direção certa” – da qual nossos tutores, evidentemente, teriam perfeita ciência.

Com o mesmo propósito e as mesmas justificativas morais, arrogando-se a tarefa de combater o “golpismo” que, segundo os ministros, ameaçou a democracia brasileira graças aos atos de vandalismo do dia 8 de janeiro, o mesmo STF postulou verdadeiras excrescências no “julgamento” dos “monstros” morais de verde e amarelo – que, querem-nos fazer parecer, ameaçaram terrivelmente nossas instituições. “Não existe aqui liberdade de manifestação para atentar contra a democracia para pedir ato institucional número 5, para pedir a volta da tortura, para pedir a morte dos inimigos políticos, os comunistas, para pedir intervenção militar. Isso é crime”, “argumentou” o ministro Alexandre de Moraes no “julgamento”. Já me exauri de lembrar que apelos por contestar a “democracia burguesa”, elogios a ditadores comunistas ou apologias da revolução do proletariado em horário eleitoral jamais despertaram qualquer reação censora. Coroando o festival de absurdos, alguns réus do 8 de janeiro fizeram um acordo que determina que eles terão que fazer um curso de doze horas com o tema “Democracia, Estado de Direito e Golpe de Estado”. Quando os ministros do STF desrespeitam a divisão de poderes e os direitos individuais de expressão, que autoridade moral exibem para propor exigência desse gênero, assemelhada a um sistema de reeducação forçada?

A respeito dessa mesma situação, já havia dito Alexandre de Moraes que “o Tribunal Superior Eleitoral, o Ministério Público Federal e até o próprio Supremo Tribunal Federal tiveram que inovar, no sentido de preservar a nossa Constituição federal e a nossa democracia mediante uma agressão inédita – que não é uma peculiaridade brasileira –, mas uma agressão inédita pelas redes sociais à própria democracia”. “Inovar”, termo por ele empregado, provavelmente, para se referir a práticas como a supressão de redes sociais de parlamentares e a censura prévia de documentários, é outra palavra que imaginaríamos ver muito distante de cortes cuja tarefa precípua seria zelar pela “preservação” do texto constitucional. Para “empurrar a História na direção certa”, contudo, eles diriam, é válido.

Já na sessão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em que parlamentares foram multados por divulgarem “afirmações falsas”/”ilícita desinformação”/”fake news” na campanha eleitoral contra Lula – as mentiras crônicas do PT, como acusar os oponentes de pretender suspender todas as políticas assistencialistas ou sentenciar que houve um golpe de Estado no Brasil em 2016, não lhe parece caber policiar -, Alexandre de Moraes disse que a imunidade parlamentar existe para proteger os parlamentares do “abuso do poder do Estado”, não para que sejam livres para mentir. Basicamente, quem decide se há abuso ou não é ele, assim como é ele quem define se o Telegram e outras entidades privadas defendem ilegitimamente “interesses” ou estão ao lado da democracia, do bem e do belo, condição de todos aqueles que, é claro, subscrevem sua opinião – como as grandes emissoras de televisão, que defenderam o PL das Fake News, representando, provavelmente, o “progresso” ou a “direção certa da História”.

De volta a Luiz Roberto Barroso, ele também afirmou há alguns meses que “o Poder Judiciário (…) viveu e vive ainda um vertiginoso processo de ascensão institucional”, tendo deixado “de ser já há um tempo um departamento técnico especializado. Passou a ser um poder político na vida brasileira. Houve mudança na natureza, no papel, na visibilidade, nas expectativas que existem em relação ao Judiciário”. É verdade que, por exemplo, os liberais brasileiros do passado republicano mais remoto, como Rui Barbosa, defenderam, perante o arbítrio oligárquico, caudilhista e militarista, um reforço das atribuições e da respeitabilidade do Poder Judiciário. O objetivo, porém, era fortalecer as regras do Estado de Direito que esse poder deveria encarnar. Não era, certamente, abrir espaço a que movesse inquéritos em que é vítima, juiz e investigador ao mesmo tempo; a que cassasse ridiculamente o mandato de parlamentares; a que tratasse a liberdade de expressão como inimiga da democracia que lhe caberia podar para higienizar a sociedade, com direito a clipe em rede nacional veiculado pelo TSE dizendo que ela “não é licença” para “espalhar mentira, ódio, golpe e desavença”; a que estabelecesse o crime de opinião ou participasse de convescotes com os políticos, entre outros abusos flagrantes que violam todos os direitos fundamentais que caberia ao Judiciário resguardar. Não podemos identificar, assim, nenhuma legitimidade nesse “poder político” a que Barroso se refere.

Muito antes de tudo isso, o também ministro Dias Toffoli havia declarado que “nós já temos um semipresidencialismo com um controle de poder moderador, que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal”. Desnecessário talvez pontuar que não existe, absolutamente, em nossa Constituição, um Poder Moderador, pairando acima dos demais poderes, e não poderia haver nada mais distante do espírito de uma instituição destinada – repito até aborrecer – a proteger o texto constitucional que legitimar um suposto uso prático que o estaria afrontando.

O que todos esses exemplos me parecem demonstrar com clareza é que existe, mais do que uma prática, uma filosofia autoritária determinando os rumos de nosso Judiciário – normalmente alicerçada em justificativas estéticas de natureza “progressista”, voltada a combater o que se considera ser “arcaico” e “troglodita”. Essa filosofia, porém, poucas vezes foi tão claramente enunciada quanto nesta quinta-feira (28/09) pelo diretor-geral do Datafolha, Mauro Paulino, durante comentário na emissora Globo News: “É preciso que haja um ente, que é o Judiciário, para garantir que o que é correto, o que é avanço, se sobreponha ao atraso. O atraso, hoje, representado pela maioria do Congresso”.

Perceba-se: sem ter sido execrado ou pressionado judicialmente por uma declaração claramente atentatória aos princípios democráticos, em uma grande emissora, que, pela lógica dos que se pretendem defensores desses princípios, mereceria a mais severa condenação, Paulino legitimou explicitamente que, para “empurrar a História na direção certa”, para “proteger a democracia” (meramente retórica), o Judiciário deve legislar, deve se substituir ao Legislativo, deve se substituir aos “animais selvagens” eleitos pela sociedade brasileira para representarem seus interesses e pontos de vista. Somando todos os argumentos que aqui elenquei, é possível negar o fenômeno de uma mentalidade autoritária que acomete parte substancial de nossa “elite cultural” e de nossos burocratas do Judiciário?

Nunca aprendi a dizer o contrário do que estou vendo. Afirmo a realidade que constato. Temos um poder republicano – por vezes, uma pessoa! – que, quer no STF, quer no TSE, promove perseguição política; constrange e se substitui a outro poder; censura; faz o que quer basicamente sem limitação; e é juiz, réu e investigador em um mesmo processo do qual não presta contas. Enquanto esse agente institucional estiver, sem contenção, violando fundamentos da concepção de uma democracia liberal, mesmo imperfeita – e consinto em que esse era o caso do Brasil: uma democracia cheia de abusos, mas uma democracia -, como divisão de poderes, liberdade de expressão e sistema representativo, eu não posso dizer que a democracia está operante. Isso não se dá, porém, ao sabor das circunstâncias; existem, como em todos os períodos autoritários da história brasileira, ideias-força, constitutivas de uma visão de mundo, por trás disso. O discurso de posse de Barroso, sob o pretexto de atenuar as tensões que vêm pervertendo nossa dinâmica institucional, em vez de invalidar essas ideias, as ratifica.

A primeira coisa a fazer é ter coragem de dizer abertamente a essas pessoas que nem o povo nem a Constituição cederam a elas o direito de dizer para onde a História deve caminhar. Que a sociedade civil e os parlamentares que ora reagem – antes tarde do que nunca – perseverem nesse propósito.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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