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Uma concepção burkeana de Constituição e a questão monárquica brasileira

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No feriado em que os brasileiros relembram a Proclamação da República, fiz uma brincadeira ao destacar que a data – que quase ninguém propriamente comemora – celebra um golpe militar que derrubou um governo legítimo e anulou totalmente uma Constituição à força, a partir da conspiração de um grupo armado. Contra esse golpe, sucedido por perseguição aos defensores de posições monarquistas, censura, pelo autoritarismo dos Deodoros da Fonseca e dos Florianos Peixotos, pelas revoltas incessantes e pelos estados de sítio, pouca gente diz alguma coisa. A brincadeira, no entanto, suscitou, por parte de alguns amigos, alguns questionamentos sobre qual seria a minha verdadeira opinião sobre o assunto, a popular decisão: Monarquia ou República? Talvez seja uma boa hora para tentar responder.

Em primeiro lugar, sou brasileiro e defendo as nossas melhores referências. Vejo em luminares da monarquia, deixando de lado o próprio monarca D. Pedro II, vultos de peso da nossa História que, em termos de cultura política, começa a decair de qualidade em diversos sentidos por ocasião da ruptura republicana. Quem pode comparar Getúlios Vargas e Jânios Quadros com Nabucos, Uruguais, Bonifácios, Paranás, Evaristos da Veiga, e até Diogos Feijós e Bernardos Pereiras de Vasconcelos? Não concordo, é verdade, com uma idealização “utópica” do período. O Brasil era predominantemente agrário e conviveu a maior parte do tempo com a mancha inadmissível da escravidão – ainda que com a oposição da Família Imperial, o “país real” era esse. A monarquia brasileira foi, ao longo de toda a sua existência, uma experiência de construção de um Estado, um edifício em transformação arquitetado e desenvolvido pelas elites políticas e intelectuais que conduziam o país. Começou com as tribulações do reinado de D. Pedro I, passou pelo caos da Regência (vale dizer, uma experiência intermediária quase republicana entre dois reinados) e culminou com seu apogeu de estabilidade, no Segundo Reinado, em que o movimento do Regresso conservador e a ação do Poder Moderador de D. Pedro II foram, paulatinamente, atuando em conjunto com a dinâmica parlamentar, fabricando um Estado nacional mais coeso e uma estrutura reconhecível de nação. O Brasil era respeitado e chegou a peitar a Inglaterra; seu imperador era admirado mundialmente e havia ampla liberdade de imprensa, inclusive para ridicularizá-lo e defender posições republicanas.

Com suas máculas e virtudes, a monarquia foi o marco fundante do país. Os nossos “pais fundadores” eram monarquistas – naturalmente, e essa “sutileza” muitos mentecaptos não conseguem apreender, monarquistas constitucionais, inspirados pelos melhores aspectos do liberalismo institucional do século XIX. Nesse sentido, minhas simpatias pelo pensamento do irlandês Edmund Burke (1729-1797) me levam a entender uma Constituição, ao contrário do que se costuma fazer no Brasil, como mais do que a transcrição de algumas normas em um documento, mas uma referência a todo o conjunto do tecido de uma sociedade e sua relação com essas normas. Essa inter-relação naturalmente pesa a favor de uma continuidade histórica, em que se prefira o desenvolvimento do conjunto desse tecido e desse Estado que já vem em formação desde o seu nascimento, consolidando – no nosso caso, muito gradualmente – uma identidade e uma unidade simbólica e cívica, em vez de projetos autoritários que prefiram banir esse percurso e instaurar uma absoluta novidade a partir de uma quebra violenta.

Por isso, sem julgar os pensamentos e sentimentos de cada personagem envolvido na História, digo de antemão que não vejo nada a ser comemorado sobre o 15 de novembro de 1889. Se eu estivesse na época, com a cabeça que tenho agora, não creio que teria outra postura que não a oposição ao golpe militar, que baniu nas sombras a Família Imperial, que tantas provas havia dado de devoção e apreço ao país. Acho que realmente, naquele 15 de novembro, alguma coisa se perdeu, um arranjo se danificou, e o país não se recuperou disso – embora, na prática, uma elite agrária tenha permanecido no poder durante o bacharelado da Primeira República, mas sem o seu eixo de unidade, obrigada a constantes intervenções e endurecimentos de regime para sustentar a união nacional. Não quero dizer com isso que a monarquia brasileira poderia permanecer exatamente tal qual era, sem sofrer modificações; mas ela sequer permaneceu idêntica, ao longo do seu tempo de existência! Seria impossível, sem destruí-la completamente, reformá-la, seguindo a boa e velha receita burkeana de modificar um Estado para conservá-lo? Não me parece. E me parece que seria preferível.

Contudo, está feito. Reconhecer essa verdade, conquanto eu entenda, veja utilidade, admire e respeite a causa dos amigos monarquistas, não me torna um monarquista. Não, pelo menos, um defensor apaixonado e ativista da causa da sua restauração. Isso porque, justamente por entender a Constituição como um tecido social mais do que como um conjunto de normas, eu tenho dúvidas se no estado atual, para a população atual, para o “tecido” atual e para a realidade atual, depois de tamanha distância de tempo e de tantas rupturas e do semear de tantas distorções e mentiras, nosso marco fundante pode ser plenamente restaurado e encaixado no momento presente. Também não vejo na volta da monarquia uma solução milagrosa que eliminaria todas as nossas dificuldades; tanto tempo se passou que não estou certo de que o retorno puro e simples da Família Imperial, por exemplo, se imporia, dentro daquilo que se espera, às nossas mazelas e à emergência enraizada do populismo pós-Vargas em nosso seio. Teria a monarquia o condão de engrandecer a nossa cultura política, ou será que hoje, restrita a certos guetos em seu apoio sólido, ela se deixaria contaminar pelo que aí está? Sou cético, apenas isso.

Não há dúvida de que desejo e acredito em mudanças. Porém, mais modestamente, eu me atenho à proposta do saudoso Roberto Campos durante a Constituinte de 88, tal como ele transcreve em seu A Lanterna na Popa: com inspiração no regime misto francês, “preservaria aspectos importantes de nossa tradição presidencialista na chefia do Estado”, com um “homem forte” remetendo à presença do Poder Moderador em nossa cultura política – poder esse que, como Carlos Lacerda dizia, foi exercido depois do Império pelos militares durante a República, e agora, segundo o colunista do Instituto Liberal, Bernardo Santoro, é exercido pelo PMDB -, como chefe de Estado, na figura de presidente (e não de imperador), podendo, após um ano de mandato legislativo e após a destituição de dois gabinetes, dissolver a Câmara, convocando novas eleições, e “criaria a figura de um chefe de governo – o primeiro-ministro” removível por voto de desconfiança na Câmara dos Deputados”. A tese absorveria alguns aspectos da tradição do estilo monárquico-parlamentar fundante do país, sem regressar à monarquia e mantendo o Brasil uma República. É, talvez, algo que seria, hoje, mais facilmente aceito.

De todo modo, o resgate das nossas luzes monárquicas é muito válido e necessário para que o Brasil se reencontre consigo mesmo. Se meus amigos monarquistas estiverem certos, esse reencontro só se dará com seu retorno efetivo. Como não me atrevo a encampar essa tese tal como eles, fico na esperança de que, no sentido aristotélico, uma “República” de valor se instaure, com o efetivo império da lei, o que depende, na minha interpretação, sim, de que, ainda que não ressuscitemos aquela organização de Estado, revivamos em nós o espírito dos nossos melhores fundadores.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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