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Relatório da ONU serve de base para fake news sobre a crise humanitária na Venezuela

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Uma reportagem que alega que a Venezuela recebeu mais brasileiros em seu país que o Brasil teria recebido de venezuelanos está se propagando na internet. E tem mais: segundo a matéria (supostamente embasada por estatísticas oficiais das Nações Unidas), o país de Maduro teria sido o 2º que mais recebeu imigrantes na América do Sul. Junto com ela vem a tese lançada por esses dados de que “a Venezuela não está tão mal quanto parece”. Será mesmo?

A primeira lei para se proteger de fake news é compreender que, quando a tese é absurda, os dados que a embasam ou estão errados ou foram mal interpretados. Logo, devem ser vistos com maior ceticismo.

Na mesma matéria, tentando corroborar a tese de manipulação midiática da realidade, exibe-se a entrevista do especialista da ONU Alfred de Zayas, o mesmo que haveria contrariado o próprio grupo de especialistas da Human Rights Watch das Nações Unidas, defendendo que não haveria crise humanitária alguma na Venezuela.

O que não foi deixado claro na entrevista concedida a teleSUR (emissora que já foi acusada de ser uma sicofanta do regime de Maduro) é que, de acordo com seu relatório oficial, não é que não haja a infame situação calamitosa no país, ela apenas não cai na definição técnica de “crise humanitária”. Para ele a fome no país, fruto dos alardeados problemas de escassez, é provocada por gananciosos empresários que escondem os produtos das prateleiras para venderem mais caro no mercado negro.

Vamos contextualizar os fatos e analisar os dados para verificarmos a tese.

Fatos: uma breve revisão sobre o fluxo migratório na Venezuela

Apenas 14 venezuelanos buscaram asilo nos EUA em 1998, ano em que Hugo Chávez foi eleito. De acordo com o U.S. Citizenship and Immigration Services, apenas 12 meses após sua ascensão, o número saltou para 1.086 venezuelanos. Essa diáspora em grande parte fora motivada pelo temor do discurso totalitário chavista e centralizada em uma população que concentrava maior renda.

Perante a instabilidade política e econômica verificada a partir da fracassada tentativa de golpe de estado de 2002, a fuga de mão de obra capacitada foi endossada. O número de visitantes venezuelanos em sites de emigração aumentou drasticamente, sobretudo a partir de 2006, ano em que Chávez venceu mais uma eleição. Naquele período, o número de venezuelanos tentando obter visto de imigrantes aumentou em 700%.

Em 2009, a Universidad Central de Venezuela estimou que, desde a ascensão de Chávez ao poder, mais de 1 milhão de venezuelanos emigraram do país. Esse número aumentou em 50% nos quatro anos seguintes. Isto é, entre 4 e 6% da população venezuelana já tinha abandonado a Venezuela até 2014.

O meio acadêmico e lideranças empresariais de nosso vizinho alegam que houve um aumento significativo na emigração durante os últimos anos do governo de Chávez, intensificando-se durante o governo de Nicolás Maduro. Apesar do discurso do governo, a crise econômica passou a vitimar principalmente a população venezuelana de menor renda. Assim, entre 2012 e 2015, a emigração do país aumentou em 2.889%

Dados do governo colombiano afirmam que, apenas na primeira metade de 2017, mais de cem mil venezuelanos emigraram para a Colômbia. Às vésperas da Assembléia Constituinte Venezuelana, aquele governo concedeu um visto especial de permanência para venezuelanos que entraram no país antes de 25 de julho de 2017: em apenas 24 horas mais de 22 mil se inscreveram.

Entretanto, vale ressaltar que, no passado recente, o fluxo imigratório para o país também foi intenso. Desde meados de 1970, vem ocorrendo a imigração de Colombianos fugindo dos violentos conflitos frutos do narcotráfico para a Venezuela. Em 1990, eles compunham aproximadamente 77% dos imigrantes do país, por exemplo. A imigração foi ainda estimulada por Chavéz, que utilizou as receitas do petróleo para financiar políticas populistas e programas sociais conhecidos como “Missões Bolivarianas”. Dessa forma, por meio delas, ele concedeu residência, direito ao voto e amparo social aos colombianos, chegando a trazê-los de ônibus por meio da fronteira para que votassem. Tudo isso fazia parte de seu projeto de poder.

Nesse sentido, em duas décadas de Chavismo estima-se que 4 milhões de venezuelanos abandonaram sua pátria. Há atualmente cerca de 30 mil emigrantes no México, mais de um milhão na Colômbia, 6.500 no Panamá, mais de 60 mil no Equador, 26 mil no Peru, outros 100 mil no Chile, 40 mil na Argentina, tendo o Brasil, em 2017, recebido cerca de 70 mil. Apenas nas primeiras 7 semanas de fevereiro, recebemos mais pedidos de refúgio que ao longo de todo o ano de 2017: 18 mil.

Não à toa que mais da metade das famílias venezuelanas possuem pelo menos um membro que saiu do país.

Dados: como mentir com estatística

O relatório oficial da ONU sobre imigração em 2017 identifica um imigrante como “uma pessoa vivendo em um país que não o seu de nascença”, mas não deixa claro que ‘estoque migratório’ se refere a “quantidade de pessoas residindo em um país do qual não são cidadãs contadas em dado momento”. Essa definição é especificada na lista de definições e fontes oficiais do Departamento das Nações Unidas para Assuntos Econômicos e Sociais.

A matéria confunde os conceitos de prevalência e incidência. Prevalência é a frequência relativa de determinado evento contado em um determinado momento no tempo – por exemplo, quantos venezuelanos moravam no Brasil em 2017. Já Incidência é a frequência relativa com a qual um NOVO evento surge em determinado grupo de pessoas vulneráveis a ele quando são acompanhadas durante um intervalo de tempo subsequente – nesse caso, quantos venezuelanos se mudaram para o Brasil em 2017.

A reportagem afirma ainda que “mais brasileiros migraram para a Venezuela (6.119) do que venezuelanos migraram para o Brasil (3.515) na primeira metade de 2017”; que “988.483 colombianos foram viver na Venezuela durante o período abarcado pelo relatório, enquanto 49.829 venezuelanos migraram para a Colômbia” e que “em 2017 a Venezuela teve 657.439 cidadãos que se mudaram do país. Um número bem menor do que a Argentina (977.209), o Brasil (1.612.860) ou a Colômbia (2.736.230). No percentual comparado, a Venezuela teve 2,1% do total de sua população emigrando em 2017, enquanto que a Argentina teve 2,2% e a Colômbia incríveis 5,6%”. Trata-se de uma distorção da realidade.

A interpretação correta dos dados é:

1) A quantidade TOTAL de imigrante presentes nos seguintes países ao final do período de 1º de julho 1990 a 1º de julho em 2017 (e não que imigraram para eles APENAS em 2017) foi :

– 2,164,524 na Argentina; dos quais 50,621 eram brasileiros, 8,963 eram colombianos e 1,286 eram venezuelanos;

– 735,557  no Brasil; dos quais 35,618 eram argentinos, 8,395 eram colombianos   e 3,515 eram Venezuelanos;

– 142,319 na Colômbia, dos quais 3,419 eram argentinos; 2,496 eram brasileiros e 49,829 eram venezuelanos;

– 1,426,336 Venezuela, dos quais 10,098 eram Argentinos, 6,119 eram brasileiros e 988,483 eram colombianos.

2) A quantidade  TOTAL de emigrantes fora de seus respectivos países entre 1990 e julho de 2017 (e que não emigraram deles APENAS em 2017) foi:

– 977,209 de argentinos (2.2% da população do país naquele momento), dos quais 35,618 estavam na Argentina; 3,419 na Colômbia e 10,098 estavam na Venezuela;

1,612,860 milhões de brasileiros (0.77%);  dos quais 50,621 estavam na Argentina; 2,496 estavam na Colômbia e 6,119 estavam na Venezuela;

– 2,736,320 milhões de colombianos (5.58%);  dos quais 8,963 estavam na Argentina;  8,395 estavam no Brazil e 988,483 estavam na Venezuela;

– 657,439 venezuelanos (2.06%), dos quais 1,286 estavam na Argentina; 3,515 estavam no Brasil e 49,829 estavam na Colômbia.

Lembre-se: a definição técnica de imigrante não é a mesma de refugiado. Além disso, considerando as medidas chavistas, não é à toa que há tantos colombianos na Venezuela (inclusive pelo lucro que logram no mercado ao revender produtos de subsistência básica aos paupérrimos venezuelanos).

Algum tempo depois (e após muitos compartilhamentos da matéria original) o portal de notícias emitiu uma nota de retratação, mostrando que  possui um pouco mais de apego à verdade do que inicialmente sugeria. Contudo, uma das frases novamente desperta a atenção:

“Entre 2015 (pouco após o início da crise econômica no país) e a metade de 2017, o crescimento no percentual de emigrantes foi de 2,6%, menor do que o do Brasil no mesmo período (3,5%)”.

O que não foi dito é que a Venezuela é um país que possui uma população cerca de 6.6 vezes menor que o Brasil. Ao normatizar o crescimento absoluto de 17,753 emigrantes no período para uma população de venezuelanos que equivaleria aos 200 milhões de brasileiros, o aumento real de emigrantes da Venezuela equivaleria a 18.31% (contra os 3.5% do Brasil).

A retratação foi compartilhada 160 vezes menos que a reportagem com fake news.

Darrell Huff, autor de “Como Mentir com Estatística”,  certamente ficaria orgulhoso dessa interpretação do relatório da ONU.

Nota: Texto escrito em parceria com André Portilho.

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Luan Sperandio

Luan Sperandio

Analista político, colunista de Folha Business. Foi eleito Top Global Leader do Students for Liberty em 2017 e é associado do Instituto Líderes do Amanhã. É ainda Diretor de Operações da Rede Liberdade, Conselheiro da Ranking dos Políticos e Conselheiro Consultivo do Instituto Liberal.

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