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“Introdução à Filosofia Política – Democracia e Liberalismo”: fundamentos e inspirações

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Em recente lançamento pela editora Almedina/Edições 70, a professora Catarina Rochamonte, caríssima amiga, doutora em Filosofia e ex-presidente do Instituto Liberal do Nordeste, reuniu parte do que vem refletindo e produzindo acerca dos conceitos fundamentais da Filosofia Política e dos pensadores que podem servir de inspiração para as grandes questões que ela envolve. Trata-se do livro Introdução à Filosofia Política – Democracia e Liberdade, que tive a honra de prefaciar e que conta ainda com texto de orelha do professor Paulo Emílio de Macedo.

Boa parte do conteúdo já havia sido, de forma esparsa, objeto de seus sempre enriquecedores comentários nos textos que publica como articulista do Instituto Liberal, já que é colaboradora há bastante tempo dessa tradicional instituição do liberalismo brasileiro. Como meu prefácio já expressa minhas impressões acerca da obra, permito-me reproduzi-lo para que o leitor compreenda a natureza do trabalho que ora se está recomendando:

“A erupção de ideias políticas alternativas ao consenso social-democrata prevalecente na Nova República brasileira, com ênfase para as diversas vertentes do liberalismo e do conservadorismo, configura um fato histórico de incontestável impacto e, sob diversos aspectos, alvissareiro. O oceano de patrimonialismo e fisiologismo que marcou nossa política por muito tempo, entremeado apenas por uma narrativa ideológica marcada por tons diversos de uma coloração praticamente única, merecia ser “sacudido” por um “redespertar” de tradições que até têm um passado no Brasil, mas estavam relegadas ao ostracismo.

A autora deste livro foi, à sua maneira, uma das personagens desse processo. Acrescentou a ele um esforço sincero e apaixonado por fazer a diferença, munida de seu arsenal peculiar de lucidez e entusiasmo. Entre todos os papéis que exerceu e tem exercido, este livro é mais uma síntese de um dos mais importantes: o papel doutrinário.

Quando, na França, estadistas do século XIX como François Guizot (1787-1874) ou Royer-Collard (1763-1845), pretenderam trazer ordem ao caos resultante do entrechoque entre o ímpeto revolucionário e as estruturas do Antigo Regime, reflexões teóricas foram necessárias para construir o discurso que possibilitaria a implementação dessa agenda. Em virtude disso, eles ficaram conhecidos como “liberais doutrinários”, sem que isso signifique, por óbvio, o afastamento de quaisquer preocupações com os imperativos da concretude do real e das circunstâncias, mas, em termos mais precisos, a mediação sabiamente temperada entre estes últimos e os princípios a serem sustentados.

O Brasil precisa de pensadores que, como os “doutrinários”, sejam capazes de bem dispor as ideias e apresentá-las para a formação mais sã e plural tanto dos argumentos quanto do imaginário. Essa necessidade se faz ainda mais premente quando a erupção a que acabamos de nos referir é desavergonhadamente desviada para a sustentação de projetos políticos toscamente tribais e demagogias empobrecedoras.

Catarina Rochamonte, com esta introdução à filosofia política, didaticamente muito bem construída, acrescenta mais um tijolo ao edifício de suas contribuições ao saudável labor doutrinário. Em ordem cronológica, ela começa por, remontando aos alicerces estabelecidos pelos grandes filósofos gregos, justificar, a partir deles, o propósito em si mesmo desse labor. Conforme ela bem expõe, a exigência “de que a filosofia política se abstenha de pensar o Estado como ele deve ser para se limitar a compreendê-lo na sua racionalidade presente ou a exigência positivista de que ela se abstenha de juízos de valor para lograr êxito em uma análise pura dos fatos simplesmente não faz sentido no horizonte de uma concepção clássica da política. Ora, se a ação política visa à conservação ou à mudança de algo, tal ação requer um juízo de valor acerca daquilo que se quer conservar ou mudar, não podendo prescindir da reflexão acerca do que é melhor ou pior, o que não deixa de ser uma reflexão acerca do bem, da vida boa e da boa sociedade”.

Animada por esse ideal, Catarina percorre novamente, sob a ótica da construção do discurso filosófico, alguns dos temas que vêm sendo, já há tempo considerável, objeto de suas preocupações particulares. O subtítulo destaca os principais entre eles: o liberalismo e a democracia. Até certo ponto independentes e de diversas maneiras relacionando-se de forma tensionada, ambos se cruzam na modernidade a partir do complexo híbrido da democracia liberal. Extrair dos grandes clássicos da tradição do Ocidente as fontes donde pode provir uma reflexão produtiva acerca desse conturbado casamento é uma das tarefas a que a autora se dedica aqui, tarefa que está longe de ser secundária, representando ponto fulcral dos problemas que presentemente nos afetam.

Permeando a referida dicotomia, também estão outras, como aquela entre progressismo e conservadorismo, ordem espontânea e planejamento centralizado, o individualismo lockeano e o democratismo assembleísta de matriz rousseauniana. Todos esses temas e muitos outros, de cristalina atualidade, são elaborados por Catarina, ante aqueles que se dispuserem a consultar atentamente estas páginas, com judicioso recurso ao patrimônio de grandes pensadores que registraram suas marcas sobre os maiores passos da humanidade. Que estas breves linhas tenham tido o condão de sinalizar para o leitor os benefícios enriquecedores que colherá se decidir virar a página e prosseguir.”  

Exposto o prefácio, cumpre apenas apresentar mais algumas palavras acerca dos temas abordados. Em uma seção inicial, intitulada A Política como Invenção Grega, Catarina disseca as construções originais da Grécia Antiga acerca da política, que, embora ela não o referencie explicitamente, de muitas maneiras foram apropriadas posteriormente pela República Romana. Uma das teses centrais suscitadas pelo trabalho de Rochamonte é que os gregos antigos enxergavam a política como um esforço, antes de tudo, filosófico por cultivar o “amor à lei, anelo pela justiça, reflexão em prática em torno do bem comum e do melhor regime”.

De certo modo, essa preocupação teria sido enfraquecida no alvorecer da modernidade, quando “a vida bela, contemplativa e justa” desejada por notáveis como Platão passou a ser menosprezada por pensadores que a julgavam vazia e irrealizável, preferindo rebaixar a virtude como princípio norteador da ordem e da paz social, e rejeitando explicitamente, nesse aspecto, as elaborações filosóficas anteriores. A autora enxerga em Nicolau Maquiavel, no capítulo Maquiavel: a política entre o vício e a virtude, um filósofo rigorosamente preocupado com o poder, seu cultivo e manutenção, tipo de pragmatismo que abre espaço à noção de “razão de Estado”. A meta política se torna mais viável “porque já não se trata de combater os vícios do homem, mas de controlar por instituições fortes os homens viciosos”.

A visão de Rochamonte a respeito da maneira por que esse movimento se dá é bastante crítica, posto que ela considera que “a política – tradicionalmente pensada como exercício da liberdade de indivíduos imersos em uma comunidade exercitando a busca do bem comum por meio da reflexão acerca do melhor regime e da elaboração das melhores leis – passa a ser compreendida simplesmente como proposta de domínio, como exercício de poder, e o maquiavelismo, bem disfarçado sob a roupagem de realismo político, passa a servir como uma luva às agremiações políticas de viés revolucionário, cujo modus operandi pressupõe o desprezo pelas ideias elevadas de moralidade”. Particularmente, sou cético à ideia de que a política em si tenha a função de moralizar a sociedade, enxergando no liberalismo uma postura mais afeita à meta moderna de trabalhar para garantir que convivamos o melhor possível a fim de administrar nossas imperfeições, mas isso não significa abandonar a importância de exercitar as virtudes na vida pública, particularmente a da coerência, que, levando-se a abordagem criticada por Rochamonte ao extremo, pode ser mandada às favas em prol dos interesses dos governantes e seus intelectuais orgânicos de ocasião.

Dando sequência a essa visão da importância da força para conter o caos e os vícios em vez de se dedicar a combatê-los, Catarina situa Thomas Hobbes e sua teoria do Estado com poder inquestionável, exposta no clássico Leviatã. No capítulo Hobbes: o medo, o homem e o Estado, ela evidencia a influência de Leo Strauss, que foi um estudioso da Filosofia Política clássica, sobre suas próprias convicções acerca do tema. Não deixa de reconhecer, porém, que Hobbes confrontou o direito divino dos reis e que sua teoria contratualista seria aprimorada com o liberalismo, em especial a partir de John Locke, tema do capítulo seguinte, John Locke e o Estado de Direito.

Em Rousseau: vontade geral e democracia totalitária, a autora desnuda os aspectos perniciosos da filosofia rousseauniana e as portas que abre, com sua concepção algo difusa de “vontade geral”, ao jacobinismo e ao democratismo revolucionário, “avós”, de muitas maneiras, do totalitarismo moderno. Lançando mão de uma bibliografia que inclui autores como Bastiat e Thomas Sowell, ela desenvolve ainda uma crítica minuciosa das ações afirmativas e gritarias identitárias da esquerda contemporânea no texto Progressismo: privilégios, hegemonia e tensão social.

O capítulo As revoluções liberais e a prudência conservadora contrasta a Revolução Americana e a Revolução Francesa, tomando por alicerce o pensamento liberal conservador de Edmund Burke. Stuart Mill: a utilidade da liberdade apresenta a escola utilitarista do precursor britânico do liberalismo social. Liberalismo e democracia segundo Norberto Bobbio discute a relação entre os dois conceitos e o significado do híbrido que chamamos “democracia liberal”, tema que tem sequência no capítulo imediatamente posterior, A tradição democrática liberal e a noção de ordem espontânea.

Liberdade e ordem espontânea no pensamento de F. Hayek é essencialmente uma repetição do valoroso ensaio já reproduzido no livro Introdução ao Liberalismo, que tive a satisfação de organizar. Já Adversários à direita da tradição democrática liberal critica os antiliberalismos que não professam convicções à esquerda, a exemplo dos tradicionalismos e de diferentes tipos de nacionalismo. É importante ressaltar que a autora prefere aqui empregar a terminologia política na acepção de Philippe Nemo em seu Histoires des Idées Politiques aux Temps Modernes e Contemporaines, em que a noção de “direita” política, associada à crença em uma “ordem natural”, é contrastada com a de “esquerda”, fundamentada na “ordem artificial”, mas também com a de “democracia liberal”, fundamentada na “ordem espontânea” e considerada uma terceira posição que, entretanto, poderia se manifestar mais à esquerda ou mais à direita, no que ela chamaria de “centro-esquerda” e “centro-direita”.

Seguem-se duas resenhas de livros, Esquerda e direita: perspectivas para a liberdade, de Murray Rothbard, e Normas da liberdade: uma base perfeccionista para uma política não perfeccionista, de Douglas B. Rasmussen e Douglas J. Den Uyl, cujos autores “propõem teses como a defesa do caráter naturalmente social do homem (tese aristotélica), a rejeição do relativismo ético, o resgate da sabedoria prática (phronesis) e a crítica ao universalismo abstrato do racionalismo ético”, alegando que é possível defender o liberalismo clássico, e com maior sucesso, “à luz de uma ética de inspiração aristotélica que enfatiza a dimensão do florescimento humano (termo para a perfeição e atividade virtuosa) como algo real, altamente individualizado, mas também profundamente social”, justificando a necessidade de uma ordem político-jurídica capaz de “assegurar o pluralismo das formas de florescimento humano e de integrar essa diversidade”. Esta última resenha é um bom corolário do que foi apresentado antes, concluindo pela concepção liberal de que o Estado não tem o condão de legislar sobre a moralidade, mas de assegurar as condições nas quais a moralidade pode florescer.

O livro termina com uma análise da democracia cristã como corrente política, intitulada Princípios da democracia cristã: liberdade, justiça e solidariedade, em que se percebe uma ênfase nas vertentes desta corrente, em si bastante plural, que dialogam de forma mais direta com os fundamentos do liberalismo.

Didáticos e bem escritos, os textos são um convite à mais produtiva reflexão e podem servir para introduzir muitas noções essenciais ao debate público, em que os temas e conceitos estão comumente desfigurados e empobrecidos. Espero que esta síntese desperte o interesse em consultá-los.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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