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A sorte está lançada! Faltam 80 dias

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Toda grande história só faz sentido quando acaba. Em uma grande história, os primeiros lances já contém, em miniatura, cifrado, o drama inteiro.

Em junho de 2013, setores à esquerda do PT estavam fartos com o regime de “acomodação de classes” vigente desde 2003, no qual as pautas progressistas arrastavam-se com passos de formiga, sem vontade, entre mil recuos e mitigações. Naquele inverno, a extrema-esquerda saltou do papel de coadjuvante, ao qual Lula sempre a relegara, para as ruas, para a liderança das “massas”, a pretexto de demandas dos trabalhadores urbanos como a diminuição das passagens e melhorias nos serviços públicos, mas indisfarçadamente querendo “esticar a corda” muito além. O espírito “não é só pelos vinte centavos” espalhou-se pelo país como fogo ateado à pólvora e não demorou para que a presidente Dilma viesse a público “propor um debate” sobre uma nova constituinte.

Embora a população, sem bandeira política, clamasse genericamente contra a corrupção e os maus serviços, a presidente parecia ter ideias bem mais claras sobre o que os protestos realmente pediam: “um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política”, nas suas palavras. Por uma curiosa coincidência, o seu “debate” ia na mesma linha disruptiva e inconstitucional da tentativa do PT, em 2009, com a proposta do Plano Nacional de Direitos Humanos III e do que a própria Dilma tentaria uma última vez no decreto “bolivariano” 8.243, de 2014.

A proposta inicial do PNDH-3 aspirava a “elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar ranking nacional de veículos de comunicação” supostamente em defesa dos direitos humanos. A versão e interpretação petista desses direitos deveria ser instaurada “nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados, como condição para sua outorga e renovação, prevendo penalidades administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e cassação”.

O documento tratava do aborto com a sem-cerimônia que Lula usou ao comentar o assunto neste ano: “Apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos.” Por fim, todo o amor petista pela religiosidade do povo ficava escancarado na proposta: “Desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União.”

Já o decreto 8.243 da presidente Dilma visava a drenar o poder eleito do Congresso Nacional para “os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”. “Movimentos sociais” que são satélites e ventríloquos do petismo hegemônico, como é sabido.

Em tempo, todas essas “pautas antidemocráticas” – para usar uma expressão atual da moda – caíram por terra, a própria Dilma caiu, Lula foi preso em Curitiba e o resto é história. E eis que hoje, em julho de 2022, chegamos a um cenário impensável até anteontem: o retorno de Lula é humanamente probabilíssimo e em condições politicamente mais favoráveis do que nunca antes. Lula não seria eleito para presidente, mas para reconstrutor do país, refundador da República de 1988, o nosso Mandela injustiçado. A oportunidade histórica de o PT fazer a “reforma política” que sempre quis, via constituinte, compra dos parlamentares ou um PNDH-4, é agora ou nunca.

Qual foi o significado do governo Bolsonaro nessa acidentada história? Uma comparação atlética pode ajudar: foi a pausa restauradora, carregada de suores noturnos e pesadelos desvairados, na longa marcha petista que não podia ser percorrida em um único dia. Todo esforço prolongado acarreta desgastes e lesões que precisam ser reparados. Os 13 anos no poder, eivados de crimes e mentiras, gestaram, sobretudo entre a classe média, um antipetismo que já não podia ser remediado por promessas (falsas) de crescimento econômico e uma estabilidade, aparente, que mal velava a insólita cleptocracia que a Lava-jato revelou. Afastado das “bases”, acomodado aos palácios, o PT não tinha mais força social para se impor contra os seus muitos críticos e insatisfeitos. E, por isso, caiu.

Mas não caiu no lixo da história, como alguns apressaram-se a dizer, mas em um renovador semiostracismo. Ora, o partido viveu seus primeiros dez anos, pelo menos, à margem do centro do poder. Acampado às portas da carceragem de Curitiba, volvia às origens, à preparação ideológica, ao aquecimento das bases, ao ódio revanchista e justiceiro. Não era sua morte, mas uma trégua do poder palaciano e burocrático há muito necessária.

Enquanto isso, uma direita política fabricada do dia para a noite, repleta de ignorantes e oportunistas, frustrou uma por uma as expectativas alimentadas entre 2013 e 2018: combate à corrupção, reformas para tornar o país competitivo, fim do toma-lá-dá-cá com políticos de ficha-corrida, crescimento econômico, transparência republicana, renovação do STF e valorização da polícia federal. Nem sequer um novo partido, liberal-conservador, conseguiram criar. Uma a uma, essas bandeiras foram deixadas pelo caminho, em charcos de lama. E, sob o estigma do fracasso, o ciclo começado em 2013 chega agora ao fim.

Há, no entanto, uma importantíssima diferença entre a provável derrota bolsonarista neste ano e a saída de cena petista em 2016: a atual direita política só emergiu na expectativa próxima de fisgar o poder. Antes de estourar a crise do PT, por volta da eleição de 2014, não havia propriamente direita política, organizada, no Brasil. Às pressas, uma pequena multidão de subcelebridades originadas em nichos da internet filiou-se ao PSL e, munidas de fotos com o “mito” e “lives” ecoando os novos chavões, elegeram-se para centenas de cadeiras na Câmara federal e nas Câmaras estaduais (há vários neoconservadores que não se encaixam nessa descrição, mas quero indicar o arquétipo geral). Chegando lá, cumpriram à risca o sinistro prognóstico descrito por Olavo de Carvalho já em meados de 2015: “Criar do nada uma nova geração de políticos é trocar de incompetentes, e provavelmente de bandidos. […] Toda a multidão dos brasileiros revoltados se sente uma massa de crianças desorientadas, ansiando por um adulto que as guie. […] Os homens adultos terão de sair de dentro da massa mesma, mas não por um estalar de dedos. O que mais precisamos é tempo, e é o que menos temos.”

É tentador pensar, olhando em retrospecto, que a rapidez mágica – “providencial”, dizem os apoiadores – com que Bolsonaro chegou à presidência foi, em alguma medida, facilitada por quem esperava beneficiar-se de um governo feito de quadros improvisados. Um indício nesse sentido é que a investigação da suposta vasta rede de rachadinhas e funcionários-fantasma só apareceu após a eleição. Ciro Gomes declarou, em abril de 2020 ao UOL, que “todo mundo sabia” que haveria algo muito errado envolvendo os gastos do gabinete do deputado Jair. O PT, especialista por décadas em desencavar escândalos de seus adversários, jamais ouviu esses rumores? Aliás, a própria disseminação da prática da rachadinha, entre os deputados da Alerj, não inspirou ninguém a sondar os gabinetes Bolsonaro por esse ângulo, antes de outubro de 2018?

É claro que aqui são apenas indagações e suspeitas. O que é certeza, no processo histórico, é que a onda Bolsonaro fez pelo PT aquilo que o Partido jamais conseguiria fazer, sozinho, por si mesmo: revitalizou a cabeça e as bases do partidão, deu ares de novidade a um discurso estatizante repetido há 40 anos, esvaziou o campo conservador de lideranças e gerou a crise ideal para fermentar a “superação do modelo burguês, neoliberal, de democracia representativa”. O que em 2013 foi uma tentativa rapidamente abortada de, ao mesmo tempo, ruptura e renovação do petismo, hoje é um processo já quase completado, com abundantes frutos vermelhos.

Até que ponto essa transição dialética foi planejada ou não, é ainda impossível dizer, mas as páginas da história socialista contam-nos episódios análogos em outros países e épocas (veja-se a chamada Hundred Flowers Campaign na China maoísta, por exemplo). Em 2013, a grande trave ao poder petista não consistia em uma direita ideológica organizada – que não havia –, mas na presença múltipla e dispersa de indivíduos e grupos, em todos os níveis sociais, que não se posicionavam politicamente como direitistas, mas, ao mesmo tempo, recusavam-se a curvar-se à pressão da hegemonia petista. Em especial, eram pastores com suas congregações, advogados, certas entidades de classe, pequenos e médios empresários e agentes de segurança.

Parte significativa desses grupos abraçaram o bolsonarismo já no primeiro turno de 2018 e não poucos se mantiveram fiéis até hoje. Ficaram expostos, portanto, e podem ser, a partir de 2023, muito mais facilmente identificados, isolados e “contidos” do que em 2013, se Lula for o presidente. A separação da sociedade entre “nós” e “eles”, entre simpáticos ao PT e “reacionários golpistas” sempre foi um objetivo estratégico da esquerda no poder. Com o campo de batalha ideológica mapeado, às claras, em um cenário de mobilização social crescente contra a direita bolsonarista, o PT, se ganhar, receberá o país de volta como um presente adiado, mas enfim entregue em mãos.

A sorte está lançada! Faltam 80 dias.

*Guilherme Hobbs é escritor e tradutor.

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