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Retrocesso econômico e social

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No dia 30 de março, com o estardalhaço amigo da velha mídia, o ministro da Fazenda anunciou o que chamou de novo arcabouço fiscal. Trata-se — na superfície e no fundo — de uma declaração incompleta e fantasiosamente otimista de intenções sobre o que o governo pretende fazer na delicada área orçamentária. Em resumo, a regra decreta que o crescimento mínimo dos gastos primários deverá obrigatoriamente oscilar dentro de uma faixa de 0,6% e 2,5% ao ano acima da inflação e que esses gastos serão fixados em 70% do crescimento da receita do exercício fiscal anterior. Adicionalmente, fixa intervalos anuais de resultado primário de 2023 até 2026 e determina que, se o resultado ficar abaixo do piso da banda, a taxa de crescimento da despesa deverá baixar de 70% para 50% da expansão da receita do exercício anterior.

Poderia ser pior, é claro, o que pode explicar por que o mercado financeiro, de imediato, não reagiu mal ao anúncio. Mas é visível que se trata, na melhor das hipóteses, de um caso de wishful thinking, ou seja, da mera expressão de um desejo, de caráter ilusório, sem ligação com a realidade, em conflito com a racionalidade econômica e política e alheio à sequência nociva de eventos que provavelmente provocará. Por outro lado, a opção de anunciar uma proposta ainda incompleta parece ter sido mera manobra para desviar a atenção do fato mais importante que aconteceu no mesmo dia, que foi o retorno ao país, depois de três meses nos Estados Unidos, da principal figura de oposição e certamente o mais popular dos políticos brasileiros, o ex-presidente Bolsonaro.

Desde então, tem-se escrito e falado bastante sobre o assunto e praticamente todos os analistas que merecem respeito têm criticado duramente o estrupício, seja pela linguagem mais corriqueira de jornalistas, pelo dialeto falado por alguns integrantes do mercado financeiro e pelas análises técnicas de economistas bem formados e experientes. Todos têm razão.

Petistas e assemelhados vibram comovidos sempre que o governo gasta o nosso dinheiro e nos cobra mais impostos. Está no seu ethos, no seu DNA.

A estrovenga não atende a nenhum dos principais requisitos recomendáveis para regras econômicas em geral e, em especial, para regras fiscais. Com efeito, o “calabouço” fiscal — apelido rimático irônico com que foi contemplada a declaração de intenções do governo —, em primeiro lugar, está longe de primar pela simplicidade; segundo, está muito mais distante ainda de inspirar credibilidade; terceiro, é um forte estímulo para aumentar a arrecadação; e quarto, é uma incitação descabida ao governo para gastar mais. Em suma, uma fileira de erros.

As novas regras não têm nada de simples. Ao dar liberdade ao governo para aumentar as despesas em até 70% do crescimento das receitas observado nos 12 meses até junho do ano anterior, o esboço de pacote estabelece que, se a arrecadação crescer, digamos, 5%, os gastos do governo poderão subir em até 3,5%, mas ao mesmo tempo estipula que esses mesmos gastos devem subir pelo menos 0,6% e no máximo 2,5% ao ano em termos reais, isto é, acima da inflação de preços, determinando, portanto, uma faixa ou banda dentro da qual os gastos públicos devem obrigatoriamente aumentar, independentemente do comportamento na arrecadação. Na prática, isso equivale à introdução de um piso e de um teto para as despesas públicas. Para 2023, a meta é um déficit primário entre 0,25% e 0,75% do PIB, com o centro da meta em 0,5%. Já para 2024, o objetivo principal será zerar o déficit, mas, pelo intervalo estabelecido, será permitido um déficit ou um superávit de 0,25%. Regras complexas, como se sabe, são artificiais e difíceis de serem acompanhadas e cumpridas, e as do arcabouço são simples e inteligíveis como um rascunho de Einstein.

Ora, considerando que a boa ciência econômica recomenda cortes — e não aumentos — de gastos em um contexto de reforma profunda do setor público, o simples fato de fixar pisos para o governo gastar está na contramão das necessidades reais. Além disso, a única “reforma” do setor público que se pode esperar desse governo é no sentido de aumentar o tamanho do Estado. Petistas e assemelhados vibram comovidos sempre que o governo gasta o nosso dinheiro e nos cobra mais impostos. Está no seu ethos, no seu DNA.

A credibilidade do arcabouço, por sua vez, é baixíssima, para não dizer inexistente. Por mais otimistas que sejam o ministro e seus acólitos heterodoxos, será que existe no Brasil alma tão inocente ao ponto de acreditar que, sendo previsto um déficit primário para 2023 de 1% do PIB (cerca de R$ 107 bilhões), o governo vai conseguir zerá-lo em 2024? E mais, com o PT tomando conta do cofre? A experiência nos recomenda sem qualquer sutileza que o mais provável é que as faixas vão subir paulatinamente, com o piso e o teto sendo sucessivamente empurrados para cima. Afinal, sempre haverá algum pretexto “social” para que isso aconteça. Alguma sinalização de austeridade? Esqueça. É como dizia aquela simpática velhinha de um comercial de presunto: “Nem a pau, Juvenal”.

Além disso, ao atrelar o crescimento das despesas ao das receitas, tudo se passa como se uma voz esteja martelando nos ouvidos do governo: “Quanto mais você arrecadar, mais poderá gastar; logo, vai fundo, meu irmão”. Esse é o péssimo incentivo que as novas regras produzirão. A “coisa”, portanto, incentiva o governo a aumentar a arrecadação, e isso deverá acontecer pela ampliação da base tributária, com a criação de novos tributos e o ressurgimento de outros, já que aumentos substanciais de alíquotas sobre os atuais impostos parecem inexequíveis. O próprio ministro já disse que vai adotar medidas para aumentar a receita anual proveniente de tributos em R$ 150 bilhões, sob as inacreditáveis “justificativas” de que é preciso acabar com jabutis tributários e de que “se todo mundo que não paga imposto passar a pagar, todos nós pagaremos menos juros”. Sim, Haddad disse exatamente isso. Acredite.

Como se não bastasse, há outras preocupações, decorrentes da desaceleração líquida e certa da economia provocada pela péssima gestão atual. Que setores sofrerão aumento da carga tributária? Que valores serão arrecadados? Que jabutis vão ser obrigados a se juntarem aos atuais pagadores de impostos para, todos juntos, unidos e felizes, sustentarem o deus-Estado cultuado pelo governo? E se conseguirem apoio no Congresso para taxarem as “grandes fortunas”, qual será o tamanho da evasão de riqueza para outros países?

Economistas respeitados vêm batendo fortemente na “coisa fiscal”. Vou citar apenas três deles, mas a lista é bem mais extensa. Começo por Adolfo Sachsida, ex-ministro de Minas e Energia, que colocou uma questão bastante relevante, ao constatar que as novas regras são centradas em aumento de arrecadação (e não em cortes de gastos), assim como na redução da taxa Selic com vistas a estabilizar a relação dívida/PIB: “Como é que a equipe econômica espera queda na taxa Selic se a inflação está em alta e eles apresentam uma nova regra fiscal que aumenta (destaque dele) tanto o gasto do governo quanto a relação dívida/PIB?”.

A deplorável verdade é que a equipe de Haddad está apostando na redução da taxa de juros para dar credibilidade ao arcabouço fiscal, o que é um grave engano, pois apenas uma regra fiscal bem elaborada é que poderia prover a confiança requerida para a queda dos juros. No entanto, no minúsculo universo econômico do atual ministro da Fazenda e seus assessores da Unicamp, inflação não é um fenômeno monetário, carroças puxam bois e cavalos montam em jóqueis.

Em fevereiro, por exemplo, a arrecadação federal atingiu um recorde histórico para o mês, o que não impediu as contas públicas de fecharem com o pior resultado da série histórica. Como escreveu com precisão Sachsida, que conhece o “monstro” por dentro: “Só não entende quem não quer: o problema não é que estamos arrecadando pouco, mas, sim, que estamos gastando muito”.

Haddad e seus assessores recusam-se a admitir que a função do Banco Central é estabilizar a inflação no centro da meta e, além disso, parecem desconhecer o princípio básico de que é impossível fazer uso de um instrumento de política econômica — no caso, a taxa básica de juros — para alcançar dois objetivos simultaneamente, a saber, a redução da inflação e a provisão de credibilidade da regra fiscal, além do conhecido princípio da classificação efetiva dos mercados, de Robert Mundell, que recomenda que cada instrumento de política econômica deve ser usado para a finalidade em que for comprovadamente mais forte que os demais.

Se o Banco Central fugir de seu protocolo e reduzir a Selic enquanto as expectativas de inflação estiverem ascendentes, o custo acarretado será enorme, com piora dessas expectativas e crescimento dos prêmios de risco, prejudicando assim a política monetária e consequentemente dando encorpadura à inflação de preços. E a adoção de metas de inflação mais tolerantes, como sugeriu o presidente do país, seria outro grande disparate, pois, além de escancarar a porteira para a espiral de preços, aumentaria fortemente a sua volatilidade, como explica qualquer bom livro de macroeconomia — aqueles que ele disse que têm que ser jogados fora.

Não fez por menos o economista Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central, ao afirmar taxativamente, em entrevista a um jornal, que o arcabouço levará a uma alta brutal da carga tributária para que a relação dívida/PIB possa cair: “Se o governo aprovar esse arcabouço, ele obtém uma licença para aumentar gastos. Se ele não aumentar a carga tributária, o superávit primário não vai ser gerado”.

Pelos mesmos motivos, Gabriel Leal de Barros, do mercado financeiro, também fulminou a proposta do governo, criticando sua fragilidade e baixa qualidade e frisando que só será bem-sucedida se houver um forte crescimento da arrecadação do governo: “Na prática, o que eles estão propondo só fica de pé e só é crível se houver um crescimento extraordinário da arrecadação de forma recorrente. Só dá para cumprir essa regra se a arrecadação tiver uma performance extraordinária. Para que não haja descumprimento de promessas de campanha, vai haver uma busca enorme por aumento de arrecadação”.

O que o governo está pretendendo fazer, ao estabelecer um piso para os gastos públicos, é aumentá-los ano após ano, porque seus integrantes acreditam que cabe ao Estado induzir e conduzir o crescimento da economia. Tal visão representa uma guinada de 180 graus quando comparada à do governo anterior e vai implicar um enorme retrocesso econômico e social. É como se o país, depois de décadas adotando esse pensamento retrógrado e que só causou estagnação, tendo se libertado dele entre 2019 e 2022, agora esteja retornando para os seus braços, certamente para voltar a iludir-se mais à frente.

À equipe econômica do governo anterior aplica-se a imagem de um inquilino que acabou de alugar uma casa — que encontrou bastante avariada por muitos anos de descuido —, e, mesmo com uma pandemia, uma crise e uma guerra, fez várias reformas e reparos e estava disposto a fazer os consertos que restavam, mas que teve o contrato de locação brusca e inexplicavelmente interrompido, tendo de deixar o imóvel para ser ocupado justamente pelos mesmos que o avariaram no passado.

Está aberta a temporada de caça a supostos jabutis. Os verdadeiros estão no governo.

– Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.

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Ubiratan Jorge Iorio

Ubiratan Jorge Iorio

É economista, professor e escritor.

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