Sistema distrital e recall no Brasil: caminhos de responsabilidade
A crise de representatividade no Brasil não é um fenômeno recente, mas tem se intensificado nas últimas décadas com o esgarçamento do vínculo entre eleitores e eleitos — fruto de um sistema eleitoral proporcional com lista aberta que, embora busque garantir a pluralidade, tem gerado fragmentação partidária, baixa responsabilização política e uma distância crescente entre a população e seus representantes. Em vez de responder diretamente aos anseios locais, o sistema atual favorece alianças difusas, negociações partidárias pouco transparentes e um ambiente propício à perpetuação de práticas clientelistas e fisiológicas. Diante desse cenário, pensar alternativas que resgatem a centralidade do cidadão no processo democrático é não apenas legítimo, mas urgente. Entre as propostas em discussão, destaca-se a adoção de um sistema distrital de representação parlamentar, associado ao mecanismo de recall, como caminho viável para restaurar a confiança pública, promover uma “democracia de proximidade” e fortalecer os mecanismos de controle social sobre o exercício do poder político.
A proposta de um sistema distrital não é uma inovação exógena ou antinacional, tampouco uma importação acrítica de modelos estrangeiros. O Brasil já conheceu, no período imperial, uma estrutura distrital baseada em paróquias, que serviam como unidades eleitorais primárias. Como observa José Theodoro Mascarenhas Menck em Eleições e Representação Política no Brasil Imperial (2000), essas unidades geográficas formavam a base da representação legislativa, permitindo uma mediação concreta entre os interesses locais e a política nacional. Ainda que o sistema de então estivesse limitado por um sufrágio censitário e distorcido por práticas clientelistas típicas do século XIX, o princípio da representação territorial já se fazia presente e estava bem delineado. O retorno a uma lógica distrital, portanto, não seria uma ruptura com a tradição democrática brasileira, mas sim uma atualização institucional compatível com os desafios contemporâneos — voltada à promoção de maior accountability e ao fortalecimento da representatividade substantiva.
O modelo distrital divide o território em unidades geográficas fixas, chamadas distritos, de onde emerge um único representante para cada cadeira legislativa em disputa. Essa relação direta entre eleito e eleitor tende a aumentar a responsabilização do parlamentar, pois o sucesso político depende da aprovação concreta da sua base. A literatura comparada reforça essa tese. Robert Dahl, em On Democracy (2000), argumenta que a qualidade de uma democracia está intrinsecamente ligada à capacidade de seus cidadãos exercerem controle direto e eficaz sobre seus representantes. O sistema distrital potencializa esse controle ao tornar o parlamentar identificado com um território e, portanto, vulnerável à desaprovação de sua comunidade. O eleitor passa a saber, com clareza, quem representa seus interesses e a quem deve responsabilizar, o que contribui para reduzir o déficit de representação que corrói a legitimidade das instituições políticas brasileiras.
Contudo, mesmo esse modelo não está isento de limitações. Em países com grandes desigualdades regionais, como o Brasil, a delimitação de distritos pode gerar distorções se não for cuidadosamente conduzida, resultando em sub-representação de comunidades menos populosas ou mais empobrecidas. É necessário, portanto, um processo técnico rigoroso de redistritamento, baseado em critérios de proporcionalidade populacional, coesão geográfica e respeito às diversidades regionais, para evitar que distritos mais ricos monopolizem a agenda política. Além disso, a adoção do sistema distrital deve vir acompanhada de reformas complementares, como cláusulas de desempenho partidário e revisão do financiamento de campanha, de modo a evitar o surgimento de caciques locais eternizados no poder e a proliferação de lideranças populistas — o que poderia transformar os distritos em redutos pessoais, comprometendo a alternância democrática.
Nesse contexto, o mecanismo de recall surge como um importante antídoto contra o personalismo e a inércia legislativa. Trata-se de um instrumento de democracia direta pelo qual os eleitores podem revogar, antes do fim do mandato, o cargo de um representante que tenha se afastado de suas funções ou traído os compromissos assumidos em campanha. Embora inspirado no modelo norte-americano — onde o recall já foi utilizado em diversos estados com efeitos variados —, sua adoção no Brasil pode dialogar com os princípios republicanos e com o ideal de soberania popular consagrado na Constituição de 1988. Estudo publicado no The Journal of Politics (2016) demonstrou que o recall, quando regulamentado com salvaguardas processuais adequadas, promove maior responsabilização dos agentes públicos, reduz a distância entre sociedade civil e poder político e aumenta a eficiência legislativa, ao incentivar o cumprimento de promessas de campanha e a responsividade aos interesses da base eleitoral.
O funcionamento do recall no Brasil poderia se dar por meio de uma petição popular que reunisse um número mínimo de assinaturas de eleitores do distrito, desencadeando a abertura de um processo de revogação que culminaria em nova eleição para o cargo vacante. Essa possibilidade de controle contínuo sobre o mandato não substitui o voto periódico, mas o complementa, formando um sistema de checks and balances que fortalece a cidadania ativa. Ao oferecer uma via institucional para a destituição de parlamentares ineficazes ou corruptos, o recall amplia o poder político do eleitor e desincentiva práticas de abuso e descaso, tornando o ambiente legislativo mais transparente e alinhado aos interesses populares.
A combinação entre sistema distrital e recall representa, portanto, mais do que uma simples reforma eleitoral. Trata-se de uma mudança estrutural profunda, voltada a resgatar a lógica republicana de representação responsável e participativa. Entretanto, é preciso cautela. A implementação desse modelo exige maturidade institucional, compromisso com o fortalecimento da democracia e um processo legislativo técnico, transparente e participativo. Há riscos reais a serem evitados: judicialização excessiva dos mandatos, instabilidade legislativa provocada por recalls politicamente motivados, uso estratégico do instrumento por adversários e a possibilidade de transformar distritos em feudos locais. Tais riscos, no entanto, não devem ser vistos como barreiras intransponíveis, mas sim como alertas para o desenho de mecanismos jurídicos e políticos que assegurem equilíbrio, proporcionalidade e legitimidade ao novo sistema.
O Brasil precisa resgatar o protagonismo do cidadão no processo político — e isso passa necessariamente por reconfigurar os canais institucionais de representação. O sistema distrital com recall oferece uma resposta consistente a esse desafio, pois reconstrói o elo entre território e poder, entre comunidade e representação, entre promessa e responsabilidade. Como ensinou Tocqueville em A Democracia na América, a força das democracias repousa na capacidade de seus cidadãos participarem ativamente da vida política, influenciarem as decisões públicas e manterem vigilância constante sobre os governantes. O que está em jogo, no fim, é a própria legitimidade do Estado democrático: ou ele se reaproxima da sociedade civil por meio de reformas estruturais ou continuará a alimentar um ciclo de desconfiança, apatia e crise permanente. Reformar a representação é, portanto, não apenas necessário, mas vital para a sobrevivência da democracia brasileira.
*João Loyola é Associado do IFL-BH.