Como fazer os cidadãos voltarem às ruas
Procuro entender por que, sobretudo, nossas “elites” são tão alienadas do perigo de nossa deterioração moral e da tirania política que nos vem sendo imposta pela esquerda cleptocrata. Mas, vendo que o povo virou as costas para a farsa cívica do desfile de 7 de Setembro, continuo a propor trocarmos a perplexidade do golpe sofrido em 8 de janeiro pela complexidade do entendimento de nossa cultura barroquista que nos leva sempre à fuga da realidade.
Fugimos da realidade, esta tem sido nossa sina, pela nossa insistente preferência pelo transbordamento ficcional de nossas emoções, pela expansão da cordialidade sem a qual nossos antepassados não teriam se lançado às grandes navegações, e se entregue ao pecado rasgado bem abaixo da linha do Equador — enfim, pela ruptura dos valores morais da ordem cristã, desprezados sobretudo pelas nossas “elites” tão soberbas quanto omissas e ignorantes.
Para que recuperemos a democracia perdida e retomemos o curso de uma prosperidade decantada, penso que se faz necessário o exame de algumas premissas em torno das quais um manifesto para despertar a cidadania entorpecida poderia ter algum sucesso.
- Não há, a meu ver, qualquer esperança de o povo voltar às ruas como fazia desde a época do impeachment da Dilma, das campanhas contra a corrupção, do mensalão ao petrolão e da explosão do verde-e-amarelo da aliança de conservadores e liberais contra os abusos imorais da aliança de petistas com os escroques do “centrão”, pois vivemos num terrorismo de Estado, com um grande arco de aliança de “mamadores” do tesouro que resolveram ressuscitar o apedeuta: os militantes de redação da grande mídia, os sinistros infiltrados nas altas cortes, os políticos corruptos de sempre, a alta burocracia da privilegiatura, os ativistas ambientais e identitários, os artistas engajados da Rouanet, os acadêmicos enviesados dos departamentos de humanas das universidades públicas, “empresários” viciados em contratos públicos, financistas da dívida pública, narcotraficantes, sindicalistas e pelegos proxenetas. O povo está com medo porque não tem quem o defenda e um Exército de melancias o traiu com perfídia;
- Insisto e persisto no diagnóstico da questão cultural que embota nossa capacidade cognitiva com um imaginário fantástico de torções e retorções, contorções e distorções mentais, vindas de nossas mais profundas raízes barroquistas que nos impelem a trocar conceitos e princípios lógicos de apreensão da realidade por figuras retóricas de expressão da linguagem. Não há notícia na história do Brasil do transbordamento barroquista das artes e letras barrocas para os demais campos da nossa expressão cultural, sobretudo no crucial âmbito da moral, da política e da justiça, para além de nosso natural encantamento mais estético do que ético;
- E é significativo o silêncio de nossos maiores intérpretes: de Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Mario de Andrade, até Sérgio Buarque e Gilberto Freire, passando por Monteiro Lobato, Viana Moog, Mário Ferreira dos Santos, Darcy Ribeiro e Caio Prado Júnior e, mais recentemente, Raimundo Faoro, Meira Penna, Roberto Campos, Olavo de Carvalho e José Murilo de Carvalho;
- É este resiliente imaginário barroquista que tanto amamos que explica nosso famoso jeitinho de não cumprir a lei, nossa malandragem embusteira que nos leva a nos enganar a nós mesmos de tanto tentar enganar a todos a todo tempo e abusar, não apenas das hipérboles, paradoxos, ironias e metáforas, mas sobretudo da metonímia que é uma espécie de metáfora mal-intencionada, pois, se a metáfora é apenas uma comparação poética, a metonímia é a troca mal intencionada de alhos por bugalhos, sobretudo do essencial pelo acessório;
- O jogo de imagens da Renascença italiana (tematizado no símbolo da voluta) se desdobra em jogo de palavras (jeu des mots, trocadilho), que se desdobra em mais jogos de imagens (rocailles e trompe l’oeil), que se desdobram, por fim, em jogo de ideias na farsa ibérica, no cultismo de Góngora e conceptualismo de Quevedo, Gil Vicente, Pe. Antonio Vieira e Gregório de Matos, em Portugal e Brasil, seja na igreja ou no lupanar;
- O Barroco que é puro deleite estético nas artes e nas letras é um desastre, um impasse civilizatório, se levado à conduta moral (do jeitinho), política (do conchavo) e jurídica (do quiproquó e da chicana);
- Vide o desmonte da Lava Jato, a prescrição penal da condenação não aplicada na segunda instância, o malogro da redução do foro privilegiado e a desonestidade da confusão criada pelo sistema político-eleitoral vigente, entre voto impresso e contagem pública de votos. Outra vez a imoral metonímia de trocar os fins pelos meios, o sufrágio público pela urna caixa-preta de contagem secreta;
- Os países mais desenvolvidos são aqueles em que predominou o Iluminismo, com a razoabilidade e a prudência na gestão pública, sobre o barroquismo da digestão extrativista da coisa pública;
- Como se a própria Inquisição ibérica voltasse a se repetir com este petismo e repetismo dementes, do julgamento sumário, sem defesa nem contradito, da censura e banimento, dos cancelamentos de posts, sites e perfis nas redes sociais, como na queima de livros medieval, terror dos poderosos, contra o qual só restava o disfarce dos mouriscos e cristãos novos;
- Vide as torções, retorções, contorções e distorções do Supremo Tribunal Federal (STF): solta bandidos e prende cidadãos, resolve liquidar com a Lava Jato quando ela perigava se desdobrar em Lava-Toga, legislando em vez de julgar, fazendo política quando aceita julgar recursos de partidos políticos nanicos de oposição, solapando a independência e autonomia dos demais poderes;
- Só um Poder hoje pode evitar este impasse: a mesa diretora do Senado, que, em respeito à soberania popular dos cidadãos, coloque em pauta as ações contra os abusos dos demais Poderes. Mas como levar os cidadãos às ruas para pressionar o Congresso a enfrentar um arco tão extenso de inimigos infiltrados nas instituições públicas?;
- Desta vez, a intervenção não deverá ser para exercer o Poder, mas para retomá-lo de quantos o tomaram por golpes e fraudes. Como numa cirurgia de um tumor, tão pontual quanto precisa. Tumor que está localizado sobretudo nas Altas Cortes com militantes nomeados por e para servir a esquerda petista com seu delírio repetista de se perpetuar no poder;
- Pois, para defender o Brasil, temos de compreender como o barroquismo está resiliente no esquerdismo contumaz deste último século, seja na versão carnívora ou vegana. Parodiando Karl Marx, que nunca provou a realidade da luta de classes, que nada mais é do que outra metáfora mal-intencionada: pior do que o esquerdismo como doença infantil do comunismo é o barroquismo como doença senil do esquerdismo! A troca metonímica da luta de classe operária pela luta identitária, da hipérbole globalista do ambientalismo; do paradoxo da destruição nacional do metacapitalismo, da corrupção dos valores da tradição judaico-cristã do Ocidente: vida, que não é “condição” de vida; liberdade, que não pode ser de arbítrio próprio, mas de alteridade; propriedade, que não é coletiva antes de ser individual; e justiça, que não pode ser “social” se antes não for justiça em si;
- Temos de compreender a mais diabólica figura da metonímia barroquista: trocar o todo pela parte e vice-versa, mas também o essencial pelo acessório, o mote pela glosa, o verso pelo anverso, o substantivo pelo adjetivo, o quadro pela moldura, a figura pelo ornamento, a causa pelo efeito, a justiça pelo processo, a política pelo poder, a lei pelo privilégio, a história pela farsa, o objeto pela função, a ética pela estética etc. Em suma: trocar o tosco capitão pelo pérfido ex-presidiário;
- Pois nossa maior metonímia de trocar a justiça pelo processo foi a desmesura da descondenacão do “pai dos pobres”, quando o militante Faquin, infiltrado pelo PT na Suprema Torção Federal, trocou os termos essenciais do sujeito e predicado da oração (Lula condenado) pelos termos acessórios do adjunto adverbial de lugar: o CEP do tribunal que não poderia ser o de Curitiba;
- Ou seja, Curupira como nossa alma e caráter, de modo mais insidioso do que Macunaíma ou Jeca Tatu, não vive no mundo do autoengano poético das metáforas, que são apenas termos de comparação. Mas, com a troca de direção dos próprios pés, como já prenunciava Jânio Quadros, nos leva a viver num mundo de metonímias, a variante imoral da metáfora, porque aspira enganar a todos, trocando o todo pela parte, mas não apenas em quantidades, mas sobretudo em qualidades, o essencial pelo acessório, o gênero pela espécie, o fato pela narrativa, a verdade, enfim, pelo sofisma;
- Daí minha tese de que a modernidade trouxe o velho sofisma de volta travestido de arte barroca, o que chamo de barroquismo, pois os mesmos artifícios das letras e das artes transbordados para a moral, a política e a justiça. Na moral, quando troca a exegese da lei pelo jeitinho da aplicação da pena com agravante ou atenuante, na justiça pela troca dos fins pelos meios, da efetivação da justiça pelas filigranas processuais, e na política quando troca o voto e a vontade do cidadão representado, como a própria finalidade da democracia, pelo arbítrio do meio da máquina de contar votos secreta dos representantes que não nos representam;
- Assim, convoco alguns dos cidadãos de maior qualidade cívica atuando no Brasil ou exterior para se reunirem para trabalharmos na redação coletiva de um manifesto de volta às ruas. Não para milhões ocuparem as ruas, mas para apenas algumas dezenas com o fim de ocupar a mesa diretora do Senado até que coloquem em pauta os projetos de reforma política e do judiciário que limitam seus poderes em prol do voto do cidadão. Milhões serão apenas os assinantes manifestantes das dezenas de redatores.
Aliás, lhes dou aqui três exemplos. Fernão Lara Mesquita continua pregando quase sozinho sobre suas quatro propostas de reforma política para destorcer o Brasil e recolocá-lo outra vez sob o império da lei e da democracia: o voto distrital, o recall, a lei de iniciativa popular, o referendo e a avaliação do eleitor sobre a atuação dos magistrados. Thomas Korontai, nosso líder federalista, vai aos Estados Unidos, explicar por que vivemos numa farsa de federação, equivalente, inclusive, à farsa da democracia “relativa”, como se refere o apedeuta.
Felipe Gimenez, nosso procurador ativista da contagem pública de votos, continua pregando no deserto sobre o que é a verdadeira democracia, quando o cidadão eleitor, além de votar, tem o direito de participar na contagem pública de seu voto. Três cidadãos atuantes que acompanho de perto. Mas poderia listar aqui dezenas que acompanho esporadicamente, pois todos são o que chamo de verdadeiros agentes de cidadania preocupados com a alienação política cada vez maior que os poderosos impõem aos cidadãos de bem.
Enfrentar a mesa diretora do Senado, ocupada por senadeiros omissos e pusilânimes, com um manifesto assinado, aí sim, por milhões de brasileiros e brasileiras, despertaria na certa o ânimo de mais de trinta senadores que dizem estar do lado dos cidadãos. Se não conseguimos milhões nas ruas fisicamente para empurrar o Congresso contra os infiltrados no STF pelo PT, precisamos de pelos menos uma centúria de guardiões da república (Livro III da República, de Platão) com coragem cívica suficiente para ocupar a mesa diretora do Senado até que seus membros tomem uma atitude efetiva contra os abusos do STF e da esquerda infiltrada nas instituições.
O que poderá ser feito através de um manifesto cujas cem primeiras assinaturas, a partir de um milhão coletadas nas redes sociais, se comprometerão a pôr em prática a ocupação pacífica. A convite, inclusive, desses trinta senadores ditos de oposição a este governo ilegítimo e demente.
Por Jorge Maranhão. Conselheiro consultivo do Instituto Liberal, mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão. É autor de Destorcer o Brasil: de sua cultura de torções, contorções e distorções barroquistas e acaba de lançar Curupira, o enganador do mundo e os doze dragões da maldade.