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Sob o fogo cruzado da censura (togada!)

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Por mais irônico que possa soar, todo o primeiro quadrimestre dos neo-assentados no Planalto foi quase exclusivamente marcado pelo tema da censura, palavra substituída, na novilíngua lulopetista, pelo substantivo “regulação”, bem mais palatável aos ouvidos dos hipócritas de plantão. Segundo a narrativa oficial espraiada desde o palácio presidencial até as mais altas cortes de justiça, passando pelo parlamento, pela mídia hegemônica e pela academia, a medida repressora seria imperiosa à preservação da liberdade de expressão[1]. Algo tão contraditório e patético quanto afirmar, por exemplo, que a manutenção do livre ir e vir somente poderia ser assegurada mediante a imposição de horas diárias de encarceramento.

Assim, submissa ao desejo da dobradinha Executivo-Judiciário de tolher a manifestação de opiniões, a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para a votação do projeto de lei 2630/20, conhecido entre nós, espíritos livres, como PL da Censura, em um dos episódios mais vexatórios da história recente da casa, como discutido em outro espaço[2]. No entanto, na data prevista para a votação, Artur Lira, atendendo a requerimento do relator comunista do projeto, retirou a matéria de pauta devido à insuficiência de votos necessários à sua aprovação, em mais uma manobra autoritária por parte de caciques avessos ao debate e obstinados na imposição de suas deliberações a fórceps[3]. Ou, melhor dizendo, no tapetão.

Poucas horas antes do início da aludida sessão legislativa, quem tomava verdadeiras chibatadas do governo local era o Google, alvo do ministério da justiça, cujo atual titular, em decisão arbitrária e desproporcional, impôs à plataforma uma multa de 1 milhão de reais por hora de veiculação de conteúdos contrários à aprovação do projeto[4]. O torpedo subsequente contra a plataforma e, desta vez, também contra os grupos de comunicação Meta, Spotify e Brasil Paralelo partiria, naquele mesmo dia, da caneta do ministro Alexandre de Moraes, que, em mais uma de suas incontáveis decisões monocráticas, de ofício, e emanadas de seu fígado e não de seu cérebro, determinou a retirada, sob pena de multa de 150 mil reais por hora de exibição, de quaisquer conteúdos “com ataques ao PL 2630, inclusive aqueles que se referem como “PL DA CENSURA”, “COMO O PL 2630 PODE PIORAR A SUA INTERNET”, “O PL 2630 PODE IMPACTAR A INTERNET QUE VOCE CONHECE””, assim como a oitiva, pela PF, dos representantes das referidas empresas[5].

O despacho de Moraes padece dos mesmos vícios que maculam todas as suas decisões censoras, e que, de tão comentados por aqui, você, caro leitor, já deve saber de cor. De toda forma, como a exaustão da rotina em um país cada vez menos livre como o nosso acarreta, dentre vários efeitos nocivos à saúde, o esmaecimento de lembranças penosas, insistirei em refrescar sua memória. Ora, como em tantos outros casos, Moraes se obstinou em avocar para si, e tão somente para si, a atribuição de apreciar condutas de cidadãos como os executivos dos grupos, que, por não disporem de prerrogativa de foro (foro privilegiado), teriam de ser julgados por magistrados de primeira instância, designados por sorteio, em ações penais promovidas pelo Ministério Público, ou por pessoas que se sentissem por eles ofendidas em sua honra.

Contudo, na república alexandrina, onde foram revogados quase todos os princípios processuais consagrados pelas sociedades civilizadas, bastaram uma reportagem do periódico Folha de São Paulo e um relatório unilateralmente produzido pela UFRJ – não exibido na íntegra, e tampouco sujeito a perícias ou ao crivo do contraditório! – para que o togado houvesse por bem invadir a esfera de autonomia das empresas, determinando a necessidade de investigação das condutas destas. No entender de Moraes, a liberdade opinativa “não significa a impossibilidade posterior de análise e responsabilização por discursos antidemocráticos, de ódio e eventuais informações injuriosas, difamantes, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais”.

E não significa mesmo! Tanto assim, douto togado, que podemos lançar mão de inúmeros dispositivos do Código Civil em vigor para a responsabilização até mesmo objetiva, ou seja, independentemente da comprovação de culpa, de autores de condutas passíveis de acarretarem danos, tanto em nossa esfera patrimonial quanto no âmbito da nossa dor (danos morais). Como se não bastasse, caríssimo magistrado, ainda dispomos de um capítulo inteiro do Código Penal acerca dos crimes contra a honra, que permite a cada um de nós, ofendido, levar nosso ofensor a julgamento perante um foro criminal, ao qual caberá apreciar, caso a caso, eventuais violações à dignidade alheia, manifestações preconceituosas e discursos de ódio. Será que nem mesmo tamanho arcabouço legal é suficiente para aplacar os ânimos do ilustre ministro?

Pelo visto, não. Basta atentar para suas próprias palavras, segundo as quais “é urgente, razoável e necessária a definição – LEGISLATIVA e/ou JUDICIAL –, dos termos e limites da responsabilidade solidária civil e administrativa das empresas; bem como de eventual responsabilidade penal dos responsáveis por sua administração”. Traduzindo do juridiquês para o vernáculo toda a retórica formulada pelo togado, Moraes explicitou uma mensagem bastante óbvia: o congresso tem de estabelecer os tais “termos e limites” para a veiculação de conteúdo “apropriado”; caso não o faça, as cortes de justiça tomarão a dianteira, e se encarregarão, por si mesmas, das medidas supostamente salvacionistas contra conflitos e rancores em sociedade.

Além de assumir, mais uma vez, sua predisposição em legislar, sem qualquer remorso perante a sombra do velho Montesquieu, Moraes tornou a condenar manifestações que sequer ofenderam a honra de certos e determinados indivíduos, mas apenas se insurgiram contra o PL da Censura. A propósito, vale reproduzir, abaixo, trechos do tal estudo universitário sobre condutas supostamente delitivas por parte de entes envolvidos:

pela Google – “ao pesquisar por “pl 2630” no Google no dia 29 de abril, usuários se depararam com um anúncio da própria plataforma cujo título se refere ao projeto como “PL da Censura””; (…) “o Boletim da Liberdade, de propriedade do ex-deputado federal Paulo Ganime (Novo/RJ), que está em campanha aberta contra a aprovação do PL 2630 nas últimas semanas, aparece como resultado na primeira página do Google em busca sobre o PL 2630”;

pela Brasil Paralelo – “Brasil Paralelo anuncia no Google contra o PL”;

pela Spotify – “Anúncios do Google contra o PL 2630 também foram veiculados na plataforma de streaming Spotify”; e

pela Meta – “a empresa afirmava que o projeto não estaria “pronto para ser votado” e convidava os brasileiros a participarem do debate, como uma tentativa de conter os avanços da discussão e interditá-la”.

Portanto, a análise dos parágrafos trazidos acima indica que, sob a ótica de Moraes, a única liberdade viável consiste em concordar e apoiar o dito PL da Censura, pois quaisquer críticos ao seu teor são rotulados, a priori, como antidemocráticos e disseminadores de ódio no ambiente virtual. E aqui estamos, possivelmente pela primeira vez em toda a nossa História, diante de uma censura que não ousa dizer seu nome.

Se, por um lado, a votação do esdrúxulo projeto não teve lugar, o que permitiu um certo respiro às criaturas sôfregas por liberdade, por outro, acompanhamos o desencadeamento de mais um caso de mordaça explícita por parte do togado reconhecidamente censor, e que, reitere-se, não hesitou em declarar sua prontidão para promulgar normas que julgar necessárias à “moderação” das relações virtuais.

Mais uma vez, um braço estatal – aliás, o único não-eleito – extrapolou suas atribuições e impôs medidas restritivas indevidas contra executivos que não incorreram em qualquer prática definida em lei como crime, mas foram, ainda assim, equiparados a “milícias digitais”. Mais uma vez, testemunhamos, com desgosto, a violação ao princípio constitucional de autonomia e independência entre os poderes, e a falência do sistema de freios e contrapesos, graças ao qual cabe a cada braço do poder controlar os demais.

Perdemos nós, cidadãos afeitos às nossas liberdades. Perdeu o parlamento como um todo, desmoralizado diante da aplicação prática, pelo poder vizinho, da medida repressora que sequer chegou a votar. Uma sucessão de perdas no país cuja tragédia não é fruto do acaso, mas de um esforço de décadas, nas palavras de Roberto Campos – e, de uns tempos para cá, tal esforço parece ter sido decuplicado.

[1] https://gazetabrasil.com.br/politica/2023/04/18/para-preservar-liberdade-de-expressao-e-preciso-regular-redes-sociais-diz-flavio-dino/

[2] https://www.boletimdaliberdade.com.br/colunas/katia-magalhaes/2023/04/30/a-urgencia-em-sufocar-a-liberdade-de-expressao/

[3] https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/economia/2023/05/arthur-lira-retira-de-pauta-votacao-do-pl-das-fake-news.html

[4] https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/governo-pune-google-pl-fake-news-medida-cautelar/

[5] https://www.infomoney.com.br/politica/moraes-determina-que-responsaveis-por-meta-google-spotify-e-brasil-paralelo-sejam-ouvidos-pela-pf/

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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