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Julgamentos supremos para cidadãos ou para “inimigos”?

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“Nenhuma guerra se inicia, ou deveria se iniciar, se agíssemos com sabedoria, antes da identificação de uma resposta à questão: o que se procura alcançar pela guerra, e na guerra?” – Carl Von Clausewitz

O que define outro ser humano como nosso “inimigo”? Em tempos de guerra, sua localização do outro lado do campo de batalha e/ou seu pertencimento a uma unidade política dita rival costumam ser razões suficientes para legitimar a captura ou o assassinato de indivíduos desconhecidos, mas que, segundo a lógica bélica, podem colocar em risco nossa própria existência. Nos períodos de paz, o conceito tende a migrar para o terreno dos afetos, passando a designar alguém movido por interesses contrários aos nossos, ou cuja repulsa em nós despertada inviabilize seu convívio conosco.

Desafiadores – e bastante preocupantes! – são os casos anômalos onde um certo aparato estatal, sob a justificativa retórica de defesa do bem comum, avoca para si a prerrogativa de apontar o dedo contra figuras indicadas pela própria instância de poder como “inimigas públicas”. Não é exagero afirmar que, de uns anos para cá, nossos supremos togados têm trocado uma atividade judicante imparcial, e exercida mediante provocação das respectivas partes, pela escancarada militância em prol do que denominam de preservação da “ordem democrática”, em nome da qual não hesitam em rasgar a Constituição e as leis para fazerem prevalecer sua cosmovisão. Oferecidos em sacrifício no “altar da democracia luloalexandrina”, lá estiveram ou ainda estão todos os indivíduos calados, cassados (e caçados), presos sem o devido processo legal, assim como todos os condenados a penas desproporcionais e cruéis pelo 08.01, e até o falecido Cleriston, infeliz protagonista do último texto neste espaço .

Em sua “cruzada democrática”, nossos supremos abusam de palavras alusivas aos conflitos pelas armas, em frases como “o Supremo enfrentou a Lava-Jato” (Gilmar Mendes), e “nós derrotamos o bolsonarismo” (L.R. Barroso). Sentindo-se verdadeiros generais, que, embora sem armas, desfrutam do poder ilimitado de decidir por último, togados de cúpula vêm atuando segundo suas próprias “normas” para castigarem pessoas pela simples manifestação de ideias e para transformar “cidadãos” em autênticos “inimigos”.

Estaríamos diante da implementação, entre nós, de um “direito penal do inimigo”?

Surgida na Alemanha dos anos 80, pela caneta do Prof. Günther Jakobs, essa controversa teoria basicamente divide indivíduos de uma sociedade em duas categorias: a dos cidadãos que, mesmo nas situações em que infrinjam a lei, são vistos como autores de delitos habituais e, portanto, sujeitos às garantias da ampla defesa e do devido processo legal; e a dos indivíduos que teriam optado por uma quebra do “contrato social”, renunciando, na visão de Jakobs, às garantias do próprio direito para se transformarem em “inimigos do Estado”, e submetidos, desse modo, a um tratamento mais rígido e diferenciado. Como exemplos dessa espécie excepcional de criminosos que teriam “abdicado” por completo às regras do convívio social, Jakobs alude aos crimes de terrorismo, contra a ordem econômica e à formação de organizações criminosas. O pensamento do criminalista alemão implica ruptura na lógica liberal da imposição de penas como sanções a atos pretéritos de responsabilidade do apenado, pois justifica castigos em virtude de uma pseudo-periculosidade que se espraie no futuro. Nas palavras do próprio Jakobs, “o olhar não se volta para o passado, para a conduta a ser julgada, mas sobretudo em direção ao futuro, a uma tendência a condutas delitivas graves, cujos efeitos possam expor a comunidade a “perigo ””.

Em reação aos ataques terroristas covardes do 11 de setembro, a democracia mais liberal do mundo, a americana, promulgou uma norma (“Patriot Act”) voltada a “unir e fortalecer a América, propiciando as devidas ferramentas adequadas à interceptação e à obstrução do terrorismo”, e que, em certos dispositivos, tem sido enxergada como aplicação prática da teoria de Jakobs. De fato, a criação do conceito de “combatente inimigo”, cuja imprecisão o leva a destoar da maioria das definições criminais no mundo livre, seu uso para a detenção de suspeitos sem a apresentação de acusação formal, e até a inobservância a trechos da Convenção de Genebra sobre prisioneiros de guerra vêm suscitando questionamentos sobre eventuais desrespeitos a garantias constitucionais . Ainda assim, os detidos sob suspeita de um crime tão atroz quanto o de terrorismo dispõem da faculdade de oferecimento de habeas corpus contra seu encarceramento, prerrogativa, frise-se, da qual os réus do 08.01, incluindo Clérison, foram privados em virtude da Súmula 606 do STF, nosso “AI-5 reeditado”, que veda o exame de tal medida contra decisões supremas .

Assim, tanto a doutrina de Jakobs quanto a legislação patriótica americana, em que pesem eventuais críticas a qualquer uma delas ou a ambas, se referem a situações de notável excepcionalidade, onde criminosos não atentem contra certos ou determinados bens jurídicos (como vida, propriedade e outros), mas incorram em condutas equiparadas a atos de beligerância. Para nós, liberais, ambas tendem a deixar um gosto amargo de desconfiança e receio sobre quem haverá de diferenciar delitos graves de condutas bélicas, e sobre os parâmetros empregados para tanto. De toda forma, há que reconhecer a natureza delicada das situações contempladas por Jakobs e pelo Patriot Act, situadas em uma zona cinzenta, e, por isso mesmo, passíveis de ensejar incertezas, enganos e injustiças.

Já o nosso panorama nacional se apresenta totalmente diverso, pois, até o momento, não experimentamos a conflagração do terrorismo; pelo menos, não em sua definição clássica, corroborada por Aron, de “ação de violência cujos efeitos psicológicos não guardem proporção com os resultados puramente físicos.” Afinal, os alvos preferencialmente nominados por nossos supremos, a saber, os réus do 08.01, os bolsonaristas e a Lava-Jato, não são grupos militarizados que capturem alvos civis indiscriminados com a finalidade de disseminar pânico e de abalar os alicerces do Estado brasileiro. Nenhum desses nichos tão aguerridamente “combatidos” por nossas togas exerce qualquer influência sobre nossa segurança pública, cujo comprometimento notório se deve à atuação de poderosas facções criminosas. Aliás, como é de conhecimento público, as lideranças dessas “franquias” do crime vêm sendo beneficiadas pelo próprio estamento togado, que, em séries de decisões bastante questionáveis, têm conferido liberdade a diversos chefões do narcotráfico.

Assim, se, por um acaso, estivermos sendo submetidos a algum tipo de experimentação do “direito penal do inimigo”, esteja certo, caro leitor, que os “inimigos” de escolha dos nossos juízes de cúpula não serão terroristas de altíssima periculosidade, mas tão somente cidadãos que vierem a manifestar divergências do coro oficial ou que ousarem propor questionamentos de qualquer espécie – e, se o atual ministro da Justiça vier a ser confirmado como ocupante do próximo assento na corte, teremos o primeiro togado assumidamente comunista da nossa História e, enquanto tal, adepto de regimes totalitários favoráveis à aniquilação de inimigos ideológicos – em sentido literal! – e apologista de um rigoroso controle de mídia.

Desse modo, se formularmos respostas hipotéticas à indagação de Clausewitz ora em epígrafe, poderemos imaginar que nossos “generais” de toga busquem, pela “guerra” por eles travada, a completa desmoralização do grupo que combateu a corrupção grossa e dos setores que aplaudiram as punições a delinquentes do colarinho branco. Assim como parecem buscar, na mesma “guerra”, a instrumentalização política do que deveria ser a nossa suprema corte, mas que caminha, a passos largos, para ser transformada em uma autêntica polícia política, responsável pela blindagem dos figurões, por sua perpetuação no poder e pelo esmagamento de seus críticos. Salvo na hipótese de uma reviravolta estarrecedora e heroica por parte do Senado, o único amanhã previsível é repleto de trevas e insegurança.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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