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Da piada pronta à tragédia do autoritarismo, a mediocridade do nosso universo jurídico

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Hoje, algumas reflexões partidas de um desabafo. Na colocação do ponto final à última notícia do dia, vem o cansaço das pálpebras, e, com ele, seguem-se instantes de esmorecimento diante da questão recorrente proposta a mim mesma, a cada anoitecer: “afinal, o que de tão útil fizeram esses juízes, meus protagonistas nas decisões veiculadas?” A resposta, quase sempre frustrante diante de uma teimosa expectativa por serviços à altura dos elevadíssimos custos com a manutenção dos tribunais, pode ser bem ilustrada pelos mais recentes acontecimentos que movimentaram a esfera togada nacional.

No encerramento da semana passada, voltou à baila o caso em torno do militar Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Bolsonaro, e acusado do crime “gravíssimo” de falsificação de cartões de vacina, assim como de uma tentativa de golpe de estado, embora sem a colocação de um único tanque nas ruas. O disparador dos “pruridos” do togado supremo à frente de mais um assunto fora de sua jurisdição havia sido o vazamento, por uma revista, de áudios privados, nos quais Cid teria tecido críticas ácidas à polícia federal e ao magistrado, tendo afirmado que “o Alexandre de Moraes é a lei. Ele prende, ele solta, quando ele quiser, como ele quiser. Com Ministério Público, sem Ministério Público, com acusação, sem acusação[1].”

Como esperado, o poderoso censor convocou um depoimento-relâmpago de Cid para a cobrança de explicações sobre as tais falas divulgadas pela mídia. Em audiência não gravada, o militar corroborou todas as informações prestadas em sua colaboração premiada, refutou qualquer irregularidade nos trâmites investigativos e punitivos e atribuiu suas palavras à intensa pressão psicológica por ele vivida nos últimos tempos. Ainda assim, teve sua prisão novamente decretada por suposta inobservância a medidas cautelares impostas pelo togado, que, a despeito de suas ótimas intenções de “afastar dúvidas”, não mencionou a qual cautelar havia feito referência, muito menos em que medida ela teria sido descumprida[2]. Mais uma decisão tomada por um supremo incompetente, obscuro em sua ânsia de pretextar “transparência” e, desde a semana passada, impedido de julgar alguém que teria proferido xingamentos à sua própria pessoa.

Mal esfriou o caso Cid e eis que já fomos surpreendidos, em pleno domingo, pela prisão, decretada pelo mesmo togado do assunto anterior, dos suspeitos de serem mandantes do homicídio da vereadora Marielle Franco (Psol/RJ). O magistrado, ávido por angariar popularidade após a resolução de crime de tamanha repercussão midiática, esqueceu apenas que a atuação do STF também nesse assunto contrariou posicionamento do próprio tribunal. Afinal, a partir do voto do ministro Barroso em caso recente, a corte havia deliberado que o foro por prerrogativa de função (foro privilegiado) se restringiria às condutas praticadas durante o mandato, e relacionadas às funções do congressista. Assim, diante da indeterminação sobre a motivação dos delinquentes, como presumir a priori a competência do Supremo para apreciar o caso? Pergunta que se tornou bizantina de uns tempos para cá, no país onde os ritos cederam aos desejos supremos e onde as atribuições de todos os tribunais parecem ter sido “entregues” a um único.

As investigações se arrastavam desde 2018, “cozidas em fogo baixo” no emaranhado de narrativas que iam desde a caracterização do crime como um “típico” delito praticado contra uma representante das ditas minorias até a escancarada politização de todos os lados. Os envolvidos, mais que suspeitos pelo menos desde 2019[3], pertencem à escória da nossa triste política fluminense, onde são conduzidas a cargos de mando figuras cujo despreparo, a truculência e o histórico delitivo somente as credenciariam para o ingresso em presídios. Porém, na terra dos mandachuvas togados, indivíduos tão influentes e endinheirados quanto eles foram bastante beneficiados por decisões judiciais “duvidosas[4]” de várias instâncias, inclusive por despachos supremos, que livraram da prisão por corrupção quem havia sido apanhado em desvios, e restituído mandatos parlamentares e em tribunais de contas a tipos manifestamente ineptos ao exercício de funções públicas.

Amenizado o ruído em torno do caso da falecida vereadora, e entregues os “louros” pelo desfecho ao trio Moraes-Lewandowski-Lula (embora os irmãos Brazão tenham sido tradicionais aliados do PT, e Lewandowski um dos togados a beneficiarem Domingos Brazão), a pauta midiática voltaria a colocar Bolsonaro nos holofotes – dessa vez, por uma curta “hospedagem” na embaixada da Hungria, poucos dias após a retenção de seu passaporte pelo mesmo togado de sempre[5]. Relatada a um estrangeiro, sem a devida contextualização e sem menção aos nomes famosos da nossa republiqueta, a abertura de uma investigação, pela PF, sobre o tal “caso Hungria” bem poderia estar inserida como uma das cenas mais burlescas de uma comédia do tipo “pastelão”, daquelas com direito a escorregões e lançamento de tortas nos rostos uns dos outros, e que arrancam gargalhadas a plateias afeitas a um gosto mais rastaquera. Porém, entre nós, é levada a sério, a ponto de ocupar as principais manchetes de jornais, de despertar opiniões acaloradas e, por óbvio, de implicar custos do aparato policial.

De fato, só mesmo um establishment à beira da insanidade poderia falar em risco de fuga por parte de alguém (Bolsonaro) que não se acha preso e que, por isso mesmo, não pode ser privado do seu direito de ir e vir, seja à padaria, seja a uma embaixada. Muito menos haveria que se reprimir um hipotético pedido de asilo, por ser tal instituto de índole humanitária um dos princípios sobre os quais se baseou nossa Constituição, bem como objeto de vários tratados internacionais onde constamos como signatários.

Portanto, no lamaçal da corrupção grossa e da mediocridade onde chafurdam representantes eleitos, em sucessivas alianças com usuários de toga, são notícias como as abordadas acima que desfilam pelas páginas de todos os informes jurídicos, tanto pela notoriedade e pelo grau de poder exercido por seus protagonistas quanto pela inexistência de outras a serem reportadas. Sim, caro leitor, para a desolação de todos nós, espíritos livres, nosso judiciário, em sua imensa maioria, tem ocupado seu tempo remunerado a peso de ouro com arreganhos autoritários, usurpação de funções dos demais poderes, benefícios aos amigos das cortes e permissividade criminal em geral. Para sermos justos, também se incluem no noticiário as recorrentes decisões de cunho assistencialista (em particular, no âmbito da magistratura trabalhista), os julgados regidos por pautas identitárias em detrimento dos fatos comprovados nos autos e os despachos favoráveis a agentes públicos ímprobos. Já as causas de menor visibilidade, de natureza mais “prosaica” e envolvendo pessoas comuns em seus litígios diários, estas seguem se acumulando nos escaninhos, físicos ou virtuais, empurradas ao ministério público, às partes, a peritos e outras figuras do processo, em despachos de mera movimentação, que não exijam muito trabalho ou atenção por parte de magistrados integrantes de um sistema moroso, ineficaz e excessivamente dispendioso.

Em pleno século XXI, quando nossas cortes de justiça deveriam trabalhar em prol da eficiência processual, da composição adequada dos inúmeros litígios e, em sua cúpula, atuar na adaptação de uma Constituição retrógrada e dirigista aos parâmetros caros a sociedades democráticas, competitivas e livres, desperdiçamos tempo e dinheiro com toneladas de bobagens.

A exemplo de Sísifo, a figura mitológica condenada pelos deuses a rolar uma pedra até o topo de uma montanha na certeza de que a pedra tombaria por seu próprio peso e de que, no dia seguinte, se repetiria a mesma manobra vã, nos vemos todos premidos a acompanhar e a participar de uma rotina togada marcada pela inutilidade e pela desesperança. Ainda assim, lançado ao absurdo, o escritor francês A. Camus nos propõe a imagem de um Sísifo que encontre felicidade, para o qual “cada um dos grãos dessa pedra, cada brilho mineral dessa montanha repleta de noite forme um mundo inteiramente seu”, de modo a que “a própria luta em direção ao topo baste para preencher o coração de um homem[6].” Ah, Camus, no universo togado brasileiro, tem sido difícil imaginar um Sísifo feliz…Mas podemos seguir tentando.

[1] https://informejuridico.net/index.php/2024/03/22/em-audios-vazados-cid-dispara-o-alexandre-de-moraes-e-a-lei-ele-prende-ele-solta-quando-ele-quiser-como-ele-quiser/

[2] https://informejuridico.net/index.php/2024/03/24/a-pretexto-de-afastar-duvidas-moraes-divulga-ata-de-audiencia-de-cid/

[3] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/18/politica/1568821789_474239.html

[4] https://informejuridico.net/index.php/2024/03/25/stf-forma-maioria-para-manter-as-prisoes-de-suspeitos-de-serem-mandantes-do-assassinato-de-marielle/

[5] https://informejuridico.net/index.php/2024/03/25/pf-abre-nova-investigacao-contra-bolsonaro-por-caso-hungria/

[6] “Le mythe de Sisyphe”, ed. Gallimard, 1942, pg. 168, tradução de minha autoria

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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