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Bicentenário da Constituição de 1824 Algumas interpretações liberais e conservadoras sobre o primeiro documento constitucional brasileiro

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O imperador Dom Pedro I (1798-1834), no dia 25 de março de 1824, outorgou a Constituição Política do Império do Brasil, a mais estável dentre todas as demais cartas constitucionais de nosso país, que completou o seu bicentenário. Tendo permanecido em vigor por 65 anos durante o período monárquico, interrompido com o golpe militar republicano de 15 de novembro de 1889, a primeira constituição brasileira foi indubitavelmente a mais liberal que o nosso país teve, em comparação com as outras seis elaboradas na República, além de ser uma das principais causas responsáveis pela estabilidade jurídica e política, bem como pelo desenvolvimento econômico que caracterizam o Império.

Uma das mais nefastas características do regime presidencialista brasileiro é a quase ausência de um verdadeiro Estado de Direito no país, no sentido liberal do termo, de acordo com o qual a força da lei deve estar acima do arbítrio dos detentores do poder. Constata-se eminente fraqueza em nosso sistema representativo, visto que, ao longo das mais de treze décadas de experiência republicana, o Poder Legislativo sucumbiu, inúmeras vezes, diante de formas distintas de autoritarismo, exercido pelo Executivo, em muitos casos apoiado pelo Judiciário, sendo que, recentemente, as maiores ameaças à liberdade são devidas aos atos de magistrados que deveriam atuar como guardiões da constitucionalidade. A relativa efemeridade das seis constituições republicanas, de certo modo, é tanto causa quanto consequência dessa instabilidade. Promulgada em 24 de fevereiro de 1891, a primeira magna carta republicana foi a segunda mais estável da nação, tendo perdurado por 40 anos. A segunda constituição republicana, promulgada em 16 de julho de 1934, perdurou por apenas 3 anos. Outorgada em 10 de novembro de 1937, dando início ao período autoritário do Estado Novo, a terceira esteve vigente por 8 anos. Promulgada em 18 de setembro de 1946, a quarta subsistiu por 21 anos. Durante o período do Regime Militar, foi ratificada, em 15 de março de 1967, uma constituição que, em teoria, esteve vigente por 21 anos, sendo que, devido à instauração do Ato Institucional número 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, foi, de fato, efetiva por apenas 2 anos. Finalmente, a desastrosa atual magna carta brasileira, promulgada em 5 de outubro de 1988, determina há mais de 35 anos os rumos de nossa pátria, sendo causa de muitas das atuais mazelas do país.

A primeira constituição do Brasil, cujo bicentenário celebramos, foi objeto de análise de ilustres pensadores liberais e conservadores brasileiros. Todavia, antes de elencar determinadas reflexões sobre o texto constitucional monárquico, pretendemos discorrer, brevemente, sobre o contexto no qual o documento emergiu, bem como os fundamentos liberais que perpassam os artigos da Constituição de 1824.

No dia 12 de novembro de 1823, nosso primeiro imperador dissolveu a assembleia constituinte que instalara, em 3 de maio do mesmo ano, sendo que o encerramento de tais atividades legislativas não pode ser tomado como uma expressão absolutista, mas sim como uma defesa dos princípios liberais que encarnava. Em seu discurso de abertura da Assembleia Constituinte de 1823, o monarca Dom Pedro I tinha advertido que:

“Como Imperador Constitucional, e mui especialmente como Defensor Perpétuo deste Império, disse ao povo no dia primeiro de dezembro do ano próximo passado [1822], em que fui coroado e sagrado – que com a minha espada defenderia a Pátria, Nação e a Constituição, se fosse digna do Brasil e de mim…, uma Constituição em que os três poderes sejam bem divididos… uma Constituição que, pondo barreiras inacessíveis ao despotismo, quer real, quer aristocrático, quer democrático, afugente a anarquia e plante a árvore da liberdade a cuja sombra deve crescer a união, tranquilidade e independência deste Império, que será o assombro do mundo novo e velho”.

O documento constitucional deveria impedir eventuais abusos não somente por parte do monarca, mas, também, da classe política e até mesmo da população. Em oposição aos ideais revolucionários jacobinos de alguns deputados e aos interesses oligárquicos de parte das lideranças parlamentares, a carta magna outorgada por Dom Pedro I, em 25 de março de 1824, foi um dos principais fatores para a manutenção do justo equilíbrio entre ordem e liberdade que vigorou durante a maior parte do Império, sendo a defesa dessa Constituição um ponto fundamental da agenda dos conservadores brasileiros do século XIX, bem como de alguns liberais.

De acordo com as análises históricas tanto de João Camilo de Oliveira Torres (1915-1973), no livro A Democracia Coroada, de 1957, quanto de Octávio Tarquínio de Sousa (1889-1959) em seus três volumes de A vida de D. Pedro I, publicados, também, em 1957, como parte da monumental História dos Fundadores do Império do Brasil, além das tradicionais concepções monárquicas portuguesas, nosso primeiro monarca teve suas concepções políticas forjadas pelas teses políticas do filósofo franco-suíço liberal Benjamin Constant (1767-1830) e pelo jurista napolitano Gaetano Filangieri (1753-1788), ambos importantes fontes doutrinárias de nossa primeira constituição. Em sua obra O Dinossauro, de 1988, o nosso finado amigo José Osvaldo de Meira Penna (1917-2017) acentuou que o primeiro monarca do Brasil “comportou-se não como um príncipe absolutista de velha estirpe, mas, como um herói libertador (“Independência ou Morte”) – proclamando-se imperador segundo o modelo francês” (MEIRA PENNA, José Osvaldo de. O Dinossauro: Uma pesquisa sobre o Estado, o patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1988. p. 114). No livro História do Liberalismo no Brasil, de 1996, o jornalista, filósofo e literato João de Scantimburgo (1915-2013) defendeu que nosso primeiro imperador deve ser tomado “como fundador do Império e do liberalismo no Brasil, ao qual apôs sua chancela pessoal, mostrando-se, decisivamente, conquistado pelas ideias liberais, corporificadas na Constituição de 1824” (SCANTIMBURGO, João de. História do Liberalismo no Brasil. São Paulo: LTr, 1996. p. 38).

Após ter ordenado a dissolução da Assembleia Constituinte de 1823, o imperador nomeou uma comissão com dez redatores, formada por João Severiano Maciel da Costa (1769-1833), Marquês de Queluz; Luís José de Carvalho e Melo (1764-1826), Visconde de Cachoeira; Clemente Ferreira França (1774-1827), Marquês de Nazaré; Mariano José Pereira da Fonseca (1773-1848), Marquês de Maricá; João Gomes da Silveira Mendonça (1781-1827), Marquês de Sabará; Francisco Vilela Barbosa (1769-1846), Marquês de Paranaguá; José Egídio Álvares de Almeida (1867-1832), Marquês de Santo Amaro; Antônio Luís Pereira da Cunha (1760-1837), Visconde de Inhambupe; Manuel Jacinto Nogueira da Gama (1765-1847), Marquês de Baependi; e José Joaquim Carneiro de Campos (1768-1836), Marquês de Caravelas; que foram encarregados de elaborar novo projeto de texto constitucional para o país. Dentre os membros desse grupo de notáveis juristas, a função de principal redator da Constituição de 1824 foi do advogado, professor, diplomata e estadista liberal José Joaquim Carneiro de Campos, cuja importância foi ressaltada no volume Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia, escrito, em 2014, por Christian Edward Cyril Lynch, no qual são compilados pelo autor diversos extratos de discursos do nobre varão brasileiro. Em intervenção proferida em sessão no Senado, em 24 de maio de 1826, o Marquês de Caravelas apresentou visão realista, que reflete tanto os princípios que nortearam seu trabalho na elaboração do documento constitucional de 1824 quanto o tipo de postura que caracterizaria, posteriormente, a ação das mais insignes lideranças conservadoras do Império, ao ter afirmado que “as leis de um país devem ser acomodadas às circunstâncias em que ele se acha, devem ter estreita relação com o seu tempo e os costumes dos seus habitantes” (LYNCH, Christian Edward Cyril. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: O pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 137).

Em um período de menos de uma década no início da segunda metade do século XIX, entre os anos de 1857 e de 1864, quatro tratados analisaram a Constituição de 1824, sendo dois focados somente na questão do Poder Moderador: o primeiro fundamentado no liberalismo e o segundo no tradicionalismo, ao passo que os outros dois, amparados na perspectiva eclética liberal-conservadora, apresentaram discussões mais amplas. As duas monumentais análises fundamentadas no ecletismo foram lançadas, pela primeira vez, em 1857 e em 1862, sendo essas as obras Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, do magistrado, estadista e diplomata conservador José Antônio Pimenta Bueno (1803-1878), Marquês de São Vicente, e Ensaio sobre o Direito Administrativo, do magistrado, diplomata e estadista conservador Paulino José Soares de Sousa (1807-1866), Visconde do Uruguai, tendo ambos os trabalhos sido relançados em 2002, como parte da essencial “Coleção Formadores do Brasil”, cujos dois volumes foram acrescidos com estudos introdutórios escritos, respectivamente, por Eduardo Kugelmas (1940-2006) e por José Murilo de Carvalho (1939-2023), que enriquecem esses trabalhos de leitura obrigatória para o entendimento tanto de nossa primeira carta constitucional quanto da vertente conservadora do liberalismo brasileiro. Embasado na perspectiva oriunda do liberalismo britânico que marcaria a ação de muitos membros do Partido Liberal nas últimas décadas do Império, o advogado e estadista liberal Zacarias de Góis e Vasconcelos (1815-1877) lançou, em 1860, o livro Da Natureza e Limites do Poder Moderador, relançado em edições publicadas, em 2002, na “Coleção Formadores do Brasil”, com apresentação de Cecilia Helena de Salles Oliveira, e, em 2022, pelo “Clube Rebouças”, com prefácio de Rafael Nogueira, sendo o trabalho em questão uma defesa da limitação das prerrogativas monárquicas em favor da ampliação da experiência parlamentarista. Por fim, no ano de 1864, o jurista, professor e estadista conservador Braz Florentino Henriques de Souza (1826-1870) publicou o volumoso tratado Do Poder Moderador: Ensaio de Direito Constitucional contendo a Analyse do titulo V, capítulo I da Constituição Politica do Brazil, que discute a questão tendo como base o ponto de vista tradicionalista, sendo amparado nas reflexões filosóficas de Aristóteles (384-322 a.C.), de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) e de Francisco Suárez, S.J. (1548-1617), dentre outros, tendo sido relançado, em 2021, pelo “Clube Rebouças”, com prefácio de Marcus Boeira.

Ao longo do século XX, importantes representantes do conservadorismo ou do liberalismo brasileiro elaboraram algumas digressões fundamentais acerca da importância da primeira constituição de nossa pátria. Dentre essas análises, a primeira a ser destacada foi a elaborada pelo jornalista, crítico literário, historiador e diplomata Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) na obra O Império Brazileiro, 1822-1889, lançada pela primeira vez em 1922, no contexto das celebrações do centenário da Independência do Brasil, na qual, ao comparar o projeto da Assembleia Constituinte de 1823 com o trabalho do conselho redator que elaborou a Constituição de 1824, ressaltou que:

“A obra do conselho redator é mais detalhada e mais adstrita à terminologia legal do que a da Constituinte, vendo-se que resultou do trabalho do gabinete feito sem precipitação que um grupo de jurisconsultos possuindo experiência de administração e não do concurso febricitante de uma assembleia de legisladores improvisados nessa lida, se bem que muitos superiormente dotados para ela. O espírito liberal do tempo permeou, contudo, em muitos tópicos, as duas obras, aproximando-as fortemente nas duas variantes, e evidenciando-se em outros o espírito tradicional em igual concorrência ou em divergência” (LIMA, Manoel de Oliveira. O Império Brazileiro, 1822-1889. São Paulo: Avis Rara, 2021. p. 90).

Nosso finado mentor Ubiratan Borges de Macedo (1937-2007), em seu livro A Ideia de Liberdade no Século XIX: O Caso Brasileiro, de 1997, lançado, originalmente, em 1977, com o título A Liberdade no Império: O Pensamento sobre Liberdade no Império Brasileiro, defendeu que “a sociedade imperial era uma sociedade liberal”, tendo enfatizado que “a Carta de 24, apesar de outorgada, incluía uma carta de direitos avançada para seu tempo” (MACEDO, Ubiratan Borges de. A Ideia de Liberdade no Século XIX: O Caso Brasileiro. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2ª ed., 1998. p. 26). O já mencionado historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, em seu livro A Monarquia Brasileira, de 1993, seguiu a mesma linha de raciocínio ao ressaltar que o documento constitucional brasileiro de 1824, ao ser comparado às constituições de outras monarquias do período, “era o mais liberal de seu tempo” (CARVALHO, José Murilo de. A Monarquia Brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1993. p. 25). Percepção semelhante foi defendida em A Consciência Conservadora no Brasil, de 1965, no qual o advogado e filósofo Paulo Mercadante (1923-2013) destacou que:

“A carta outorgada em 1824 trazia, em seu contexto, o espírito do ecletismo tendencial aspirado pela conciliação de 1822. Foi toda ela decalcada sobre o modelo do projeto da Constituinte de 1823, mas as arestas jacobinas cuidadosamente limadas. Em linhas gerais, as disposições eram tão generosas quanto as do projeto [anterior]. Além de superior quanto à distribuição das matérias, havia propriedade de linguagem e melhor sistema administrativo.

A soberania popular era proclamada fonte de todos os poderes, o que se fazia por um príncipe ao arrepio da Santa Aliança. Os direitos individuais declarados: a inviolabilidade do lar, o sigilo da correspondência, a entrada e saída livre do território com suas pessoas e bens, a exigência de culpa formada para impor-se a prisão, os direitos de liberdade de pensamento, reunião e petição. Estabelecida como oficial a religião católica, permitidas porém todas as outras com o seu culto particular. Considerados cidadãos brasileiros os que tivessem nascido no Brasil ou os nascidos em Portugal e suas possessões que, residentes do Brasil na época em que se proclamou a Independência, a ela aderiram. Com relação à eletividade dos estrangeiros, a Carta aspava a exigência do lapso de doze anos de domicílio no Brasil dos nacionais nascidos em Portugal ou seu casamento com mulher brasileira.

A Constituição também organizara, como o projeto anterior, a estrutura dos poderes políticos, estabelecendo as disposições gerais e garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos. Tais garantias, ainda que abstratas e teóricas, estão escritas e protegidas pelo caráter constitucional para o efeito de não poderem ser alteradas pelas legislaturas ordinárias.

A pacificação de portugueses e brasileiros era expressamente reconhecida nas mudanças introduzidas. Preocupação também de transferência robora-se na adoção de duas câmaras. Fugia-se do modelo francês de câmara única para evitar o radicalismo, tornando possível librar o elemento liberal com o elemento conservador” (MERCADANTE, Paulo A Consciência Conservadora no Brasil: Contribuição ao Estudo da Formação Brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 4ª ed. rev. e ampl., 2003. p. 124-25).

Em seu já mencionado livro A Democracia Coroada, de 1957, o historiador e filósofo João Camilo de Oliveira Torres afirmou que, “reagindo contra a tendência centrífuga do período colonial, a Constituição de 1824 preferiu acentuar a liberdade do indivíduo e desprezar as divergências: a República una e indivisível”, tendo explicado que o documento não instituía “nem províncias autônomas nem corporações privilegiadas”, pois “o Império do Brasil é a associação política dos cidadãos” (TORRES, João Camilo de Oliveira. A Democracia Coroada: Teoria Política do Império do Brasil. Brasília: Edições Câmara, 2017. p. 83). Na mesma obra, em uma passagem anterior, ao comparar a postura dos estadistas do Império com a dos primeiros políticos republicanos, o autor ressaltou que “o regime monárquico procurou ampliar as franquias constantes da Constituição de 1824, enquanto que a República agiu, sempre, no sentido de reduzir as liberdades da Carta de 1891” (Idem, Ibidem., p. 81).

Segundo a pertinente análise comparativa entre a constituição monárquica, de 1824, e a primeira constituição republicana, de 1891, desenvolvida pelo filósofo tradicionalista José Pedro Galvão de Sousa (1912-1992), na obra Raízes Históricas da Crise Política Brasileira, de 1965, “há, sem dúvida, uma diferença muito grande no tocante à conformidade do texto jurídico com a realidade constitucional histórica”, sendo que a nossa segunda constituição pode ser tomada como uma espécie de “modelo estrutural das que lhe seguiram” (SOUSA, José Pedro Galvão de. Raízes Históricas da Crise Política Brasileira. In: Obras Seletas I. Rio de Janeiro: Centro Dom Bosco, 2022. p. 268). Ainda ao discutir a mesma temática, acrescentou que, “infelizmente, quando veio a república, a consciência do nosso direito histórico já estava amortecida”, visto que, havia algum tempo, “iniciara-se o fenômeno do desenraizamento das elites” (Idem, Ibidem., p. 269). Finalmente, mais adiante, concluiu que:

“A monarquia pôs a salvo o Brasil, na época da independência, de um traumatismo que lhe teria sido fatal, assegurou-lhe a unidade territorial, evitou as crises tão frequentes no regime parlamentar e impediu a formação do caudilhismo.

Num confronto do itinerário político do Brasil com a marcha tumultuária seguida pelos povos irmãos do continente, aí está a nota diferencial por excelência.

Veio a república, e tudo igualou, suscitando entre nós, a mesma crise constitucional desses povos: instabilidade política, comoções eleitorais, golpes e revoluções, demagogia e caudilhismo.

Negá-lo é negar a história” (Idem, Ibidem., p. 280).

Em seu livro Os Construtores do Império, de 1968, o já citado João Camilo de Oliveira Torres, ao tentar apresentar uma definição sintética do conservadorismo em nosso país, afirmou que “o Partido Conservador lutava pela unidade nacional e considerava como instrumento adequado o conjunto de instituições consubstanciadas na Constituição de 25 de março de 1824”, tendo, em seguida acrescentado que “os conservadores admitiam que o sistema político, vigente no Brasil, sobre ser legítimo, era útil e vantajoso para o fim supremo: a unidade nacional fundada sobre a democracia liberal” (TORRES, João Camilo de Oliveira. Os Construtores do Império: Ideais e Lutas do Partido Conservador Brasileiro. Brasília: Edições Câmara, 2017. p. 31). Acerca das divisões partidária entre os conservadores, denominados por seus adversários de “saquaremas”, e os liberais, que receberam a jocosa alcunha de “luzias”, nosso finado mestre Antonio Paim (1927-2021), em seu livro História do Liberalismo Brasileiro, publicado, originalmente, em 1998, ressaltou que:

“No seio do sistema representativo, por toda parte onde surgiu, surgiram duas grandes facções, geralmente denominadas de conservadores e liberais. Essa tradição deve-se à Inglaterra, onde primeiramente se formaram os Partidos Conservador e Liberal. A denominação deste último não significa que encarne preferentemente o ponto de vista do sistema representativo.

Na verdade, tanto conservadores quanto liberais encontram-se nos marcos do liberalismo, isto é, daquela corrente de pensamento político que se bateu pela adoção de uma Constituição e pela eliminação do poder absoluto do Monarca, propugnando a sua divisão com uma parte da sociedade que, para tanto, eleve representantes.

No Brasil, a grande divisão que se estabeleceu desde logo seria entre radicais e moderados. O processo de constituição dos partidos políticos compreende o isolamento dos radicais. Os moderados é que se fracionariam em conservadores e liberais” (PAIM, Antonio. História do Liberalismo Brasileiro. São Paulo: LVM Editora, 2ª ed., 2018. p. 126)

Segundo a análise de João Camilo de Oliveira Torres, “os conservadores eram, convém recordar, (…) igualmente liberais”, pois, conforme ressaltado, em Os Construtores do Império, “eles aceitavam os princípios gerais e os grandes dogmas da fé liberal”, tendo acrescentado que “eles conheciam grandemente os tratadistas da época, franceses, ingleses, americanos”, e, finalmente, concluído que “eram liberais de razão, não de paixão” (TORRES, João Camilo de Oliveira. Os Construtores do Império. Op. cit., p. 226). Em seu livro A Ideia de Liberdade no Século XIX, a mesma questão foi discutida por Ubiratan Borges de Macedo, tendo sustentado que “a diferença entre os dois partidos imperiais era tática e não ideológica”, visto que, tal como ressaltado por outros analistas da temática, “ambos eram liberais, só com a diferença de que os conservadores eram pragmáticos apegados à terra e muito pouco amigos da retórica” (MACEDO, Ubiratan Borges de. A Ideia de Liberdade no Século XIX. Op. cit.,. p. 41).

Indubitavelmente, graças à Constituição de 1824, foi possível a existência no Brasil, ao longo do Império, de um verdadeiro regime liberal caracterizado tanto por um legítimo Estado de Direito quanto por um robusto sistema representativo, ambos protegidos pela autoridade do Poder Moderador, exercida com notável imparcialidade e sabedoria pelo imperador Dom Pedro II (1824-1891), que, sem abuso de poder, utilizou sua autoridade como instrumento para o apaziguamento de alguns conflitos partidários e também para a expansão da liberdade. Conforme enfatizado, em Os Construtores do Império, por João Camilo de Oliveira Torres, “a liberdade, dirão os conservadores, não se funda na ausência de constrangimentos, na geral indisciplina, na desordem”, pois, de acordo com a narrativa camiliana, “a liberdade somente existe quando o regime do arbítrio, corrente nas ocasiões em que a desordem e o despotismo devastam as sociedades pela força das paixões desaçaimadas, vem a ser substituído pelo império da lei” (TORRES, João Camilo de Oliveira. Os Construtores do Império. Op. cit., p. 31). Ao discutir a finalidade do Poder Moderador, em uma passagem de seu Ensaio sobre o Direito Administrativo, o Visconde do Uruguai afirmou que: “o poder Moderador não tem por fim nem tem nas suas atribuições meios para constituir nada de novo. Não é poder ativo. Somente tem por fim conservar, moderar a ação, restabelecer o equilíbrio, manter a independência e a harmonia do demais poderes, o que não poderia fazer se tivesse assemelhado, refundido e na dependência de um deles” (URUGUAI, Visconde de. Ensaio sobre o Direito Administrativo. In: Visconde de Uruguai. Org. e intr. José Murilo de Carvalho. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 353).

Uma análise comparativa entre a liberal Constituição de 1824 e a intervencionista Constituição de 1988 demonstra o quanto, ao longo do século XX, o contínuo processo revolucionário iniciado com golpe militar republicano acarretou diminuição da estabilidade política e das liberdades em nosso país, especialmente nos últimos anos, devido ao chamado “ativismo judicial” praticado por alguns magistrados, cuja finalidade é reordenar ideologicamente a sociedade por intermédio da legislação. Em uma passagem do longo posfácio que escrevemos como anexo para a edição brasileira do livro A Mentalidade Conservadora, de Russell Kirk (1918-1994), lançada em 2020, afirmamos o seguinte:

“Acreditamos que o ocaso do Império foi, também, o ocaso do conservadorismo no Brasil. O golpe republicano eliminou a figura visível da autoridade constitucional, encarnada no monarca com suas prerrogativas de Poder Moderador, tendo deixado um vácuo que, em diferentes momentos, os militares buscaram ocupar e que, atualmente, os magistrados do Superior Tribunal Federal (STF) parecem querer usurpar” (CATHARINO, Alex. “Evolução Histórica do Conservadorismo no Brasil”. In: KIRK, Russell. A Mentalidade Conservadora: De Edmund Burke a T. S. Eliot. São Paulo: É Realizações, 2020 p. 767).

Tais palavras foram escritas no mês de fevereiro de 2020, muito antes da atual conjuntura na qual diversas arbitrariedades, contrárias aos princípios liberais que devem sustentar o Estado de Direito e o sistema representativo, são praticadas com a justificativa de serem necessárias para a preservação da democracia. Acreditamos que o bicentenário da Constituição Política do Império do Brasil, outorgada em 25 de março de 1824, pode ser uma ocasião propícia para refletirmos sobre os princípios que nortearam nossa primeira magna carta, bem como redescobrirmos as importantes análises conservadoras e liberais acerca do documento constitucional.

A título de conclusão, ressaltamos, de modo semelhante ao expresso no parágrafo IV do Artigo ¨da Constituição de 1988, ao defender que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2016. p. 13), que a Constituição de 1824 estabeleceu, no inciso IV do Artigo 179, que “todos podem comunicar os seus pensamentos, por palavras, escritos, e publicá-los pela Imprensa, sem dependência de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos, que cometerem no exercício deste Direito, nos casos, e pela forma, que a Lei determinar” (NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras – Volume I: 1824. Brasília: Senado Federal, 3ª ed., 2012. p. 85). Em seu tratado Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, ao analisar essa necessária garantia constitucional, o Marquês de São Vicente afirmou que:

“A imprensa política é a sentinela da liberdade, é um poder reformador dos abusos e defensor dos direitos individuais e coletivos. Quando bem manejada pelo talento e pela verdade esclarece as questões, prepara a opinião, interessa a pública, triunfa necessariamente. É o grande teatro da discussão ilustrada, cujas representações têm mudado a face do mundo político. Encadeá-la fora entronizar o abuso e o despotismo” (SÃO VICENTE, Marquês de. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. In: Marquês de São Vicente. Org. e intr. Eduardo Kugelmas. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 475-76).

Mesmo tendo reconhecido que tal direito não deve ser abusado, sendo transformado em “instrumento de calúnia ou injúria, de desmoralização, de crime”, ao repreender os usos da imprensa para promover “os ataques grosseiros, os sarcasmos, as perfídias, a desordem e a anarquia”, o grande jurista do império defendia a necessidade de “evitar a parcialidade” na repressão legal de tais abusos (Idem. Ibidem. p. 476). Em sua análise, o Marquês de São Vicente reafirmou o fato de o documento constitucional de 1824 ter garantido que “o direito de livre publicação não pode ser impedido”, que “não pode haver censura prévia” e, finalmente, que “o julgamento da criminalidade será competência do júri”, além de ter, em seguida, ressaltado que “tudo mais pertence à lei regulamentar, que é sujeita à reforma e a perfeição, e que não pode ser imutável” (Idem. Ibidem. p. 476).

O bicentenário da Constituição de 1824 pode ser uma ocasião propícia para que os liberais e os conservadores, principalmente aqueles que atuam diretamente no Legislativo, redescubram o modo como os princípios de ordem, de liberdade e de justiça foram defendidos por juristas e parlamentares no Império e, também, nortearam a ação prudente dos mais insignes estadistas do período. Em nossos dias, muito precisa ser feito para o avanço da liberdade em nossa pátria. Entretanto, para isso, é fundamental que medidas autoritárias do Executivo ou do Judiciário não sejam implementadas em detrimento da livre manifestação de opiniões. Cabe aos atuais membros do Legislativo, preferencialmente orientados pelos mesmos princípios liberais que guiaram os mais ilustres defensores do arranjo constitucional estabelecido em 1824, lutar para que o Brasil volte a ser uma nação livre, justa e próspera.

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Alex Catharino

Alex Catharino

É historiador, professor de Filosofia Política, editor de livros e consultor empresarial. Cursou a graduação em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e realizou em diferentes instituições no Brasil e no exterior estudos diversos, particularmente nas áreas distintas de História e Filosofia, principalmente com foco nas relações entre política e cultura. Além de conselheiro do Instituto Liberal (IL), atualmente é membro da diretoria do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), especialista da Fundação da Liberdade Econômica (FLE), e pesquisador do Russell Kirk Center for Cultural Renewal, bem como associado da Edmund Burke Society, da T. S. Eliot Society e da Philadelphia Society, dentre outras renomadas instituições de pesquisa. Desde o ano de 1992, esteve envolvido no trabalho de diferentes instituições liberais ou conservadoras no Brasil e no exterior. É autor de inúmeros artigos publicados em diferentes periódicos acadêmicos, de capítulos de livros e de verbetes de obras de referência, bem como do livro “Russell Kirk: O Peregrino na Terra Desolada”. No momento está concluindo um livro sobre o conservadorismo brasileiro.

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