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A toga a serviço do loteamento das estatais

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Na última semana, marcada pelo debate, entre togados e outras autoridades, sobre as perspectivas de oficialização da censura, e pelo caos na segurança pública no estado do Rio Grande do Norte, ao qual os assentados no Planalto dão de ombros, outra vedete do noticiário foi a decisão monocrática do ministro Lewandowski, que, mediante uma canetada de final de expediente, ceifou o fruto de árduos esforços em prol da profissionalização na gestão de estatais. Destruição promovida no longo arrazoado em “juridiquês”, repleto de elogios desafinados à lei podada, e onde o magistrado se arvorou a nobre âncora de garantias constitucionais. Será mesmo?

Em outro espaço, já havia comentado os significativos avanços trazidos pela Lei das Estatais (Lei no 13.303/2016)[1], que, uma vez defenestrada a última presidente petista, vinha contribuindo para transformar indicações políticas à chefia de empresas públicas e sociedades de economia mista em escolhas por quadros profissionalmente qualificados, desvinculados de interesses ideológico-partidários. No mesmo artigo, ainda havia discutido uma emenda à aludida lei, já aprovada na Câmara, mas pendente no Senado, destinada a reduzir de 36 meses para 30 dias a quarentena para as nomeações, e a elevar para 2% o teto com despesas de marketing.

Porém, as negociações políticas durante o trâmite legislativo são demoradas e penosas demais para aqueles dominados pela cobiça do retorno, a qualquer preço, à administração de ativos bilionários, e ao poder inimaginável de ditar contratações na esfera pública. Para tanto, uma outra instituição na Praça dos Três Poderes pode oferecer solução mais célere, a depender das particularidades do litígio. Não à toa, o PC do B, em paralelo ao apoio às mudanças na lei, propôs, junto ao STF, uma ação de inconstitucionalidade contra a vedação às nomeações políticas.

Sob a relatoria de Lewandowski, o partido contou com um primeiro voto favorável ao seu pleito (o do próprio relator) e deve ter se sentido um tanto desapontado diante do pedido de vista do próximo ministro a votar, André Mendonça. Tanto assim que, premida por uma suposta urgência das suas razões, a sigla comunista, menos de um dia após o envio do assunto ao gabinete de Mendonça, cuidou de requerer uma liminar, prontamente deferida por Lewandowski[2]. Antes mesmo de adentrar no cerne da questão, a decisão do magistrado, proferida em pleno período de vista de um colega, e sem consulta a seus pares sobre tema de tamanho impacto econômico e até político, violou o princípio da colegialidade a ser observado por qualquer corte de justiça, como bem pontuado pelo Partido NOVO, em petição dirigida ao tribunal[3].

Ainda no terreno do rito em si, me parece bem difícil sustentar, com honestidade, a plena isenção do togado para apreciação do assunto. De fato, em se tratando de magistrado unido por elos fraternos a uma organização como o MST, como reconhecido pelo próprio[4], e sendo o órgão invasor de propriedades umbilicalmente atrelado ao partido autor da ação[5], Lewandowski deveria ter se dado por suspeito para analisar uma causa ajuizada por grupo político com cujos membros confraterniza nos finais de semana.

Contudo, não o fez, e, em um esforço hercúleo, diga-se de passagem, utilizou um tripé argumentativo que representa quase um louvor à preocupação do PC do B em mitigar o que chamou de “excessos” incorridos pela lei questionada. Como primeiro pilar de seu raciocínio, o togado afirmou ser inconstitucional a ampliação de exigências para a nomeação de gestores de estatais, em comparação à lista de requerimentos da Lei das Sociedades Anônimas, sem mencionar, no entanto, que a legislação sobre as S.A havia sido concebida precipuamente para reger empresas privadas, por serem estas as protagonistas, por excelência, da atividade econômica, à luz da própria Constituição. Daí ter sido, no mínimo, infeliz a primeira premissa do togado, que acabou por cotejar banana com laranja.

Aliás, curioso que adeptos da ideologia à qual se inclina o magistrado tracem tal comparativo, logo em um país como o nosso, onde funcionários de empresas públicas e sociedades de economia mista, embora não gozem da estabilidade garantida aos servidores da administração direta, desfrutam de benesses impensáveis no setor privado, dentre as quais, por exemplo, a necessidade de uma exposição de motivos para seu eventual desligamento, como decidido pelo STF, em caso relatado pelo próprio Lewandowski[6]. Por que será que siglas partidárias não costumam se insurgir, em juízo, contra tamanha disparidade?

De toda forma, até mesmo no Brasil dos privilégios criados pelo e para o estado, ainda assim, já alcançamos um estágio civilizatório que nos propiciou um arcabouço normativo dotado de exigências específicas à administração pública. Bom exemplo reside na Lei de Licitações (Lei 14.133/21), cujos dispositivos acerca de aquisições, locações e contratações pelo poder público são mais restritivos que os do Código Civil sobre os mesmos negócios empreendidos entre partes privadas. E nem poderia ser diferente! É indispensável sujeitar a disposição do patrimônio público ao crivo de requisitos rigorosos e de transparência na fiscalização, enquanto nas relações privadas, onde os interesses não envolvem a coletividade, o que deve imperar é tão somente o respeito às vontades das partes.

Assim, conduzindo o raciocínio de Lewandowski às últimas consequências, a própria Lei de Licitações poderia, se atacada por alguma sigla partidária alinhada à vertente ideológica do togado, ser declarada inconstitucional, pelos mesmos fundamentos ora empregados contra a Lei das Estatais – o que só demonstra a dimensão da insensatez com a qual deparamos nesse caso.

Em uma segunda alegação, sustentou o togado que a lei questionada acarretaria suposta privação de direitos em decorrência de convicção política, em violação ao princípio da isonomia no tratamento aos diversos indivíduos, fundamental a qualquer democracia. Porém, não há que se falar aqui no exercício de um direito, pois ninguém dispõe da faculdade a priori de desempenhar funções gerenciais em uma estatal. Pelo contrário, o direito a exercer o comando da empresa configura situação jurídica constituída somente após a nomeação do escolhido pelos órgãos corporativos competentes, segundo a legislação aplicável a esse tipo de indicação.

Nesse particular, a Constituição atribui apenas à lei (e, por óbvio, não às normas constitucionais!) o poder de dispor sobre “os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores[7]”. Ora, se incumbe à legislação, neste caso específico, à Lei das Estatais, regulamentar os mandatos dos gestores, é decorrência lógica que essa mesma legislação poderá contemplar as formas de eleição e remoção de administradores, os períodos de seus mandatos e até as causas impeditivas de sua nomeação – exatamente como fez a Lei das Estatais, seguindo à risca o dispositivo constitucional mencionado acima, que Lewandowski deveria guardar com todo o zelo.

Por fim, argumentou o togado que a restrição às nomeações políticas em estatais seria uma afronta à “ampla acessibilidade a cargos, empregos e funções públicas”, partindo da premissa de que posições de comando estariam ao alcance de qualquer cidadão indistintamente, da mesma forma como os empregos públicos, aos quais se acede via concurso. No entanto, o raciocínio se baseou em uma confusão conceitual entre empregos públicos em geral e cargos de chefia, pois, como ensina a melhor doutrina sobre a matéria, “ao lado dos titulares de cargos e empregos dos entes da Administração, direta e indireta, existem servidores estatais que não ocupam cargo nem emprego, mas apenas funções públicas autônomas ou strictu sensu, correspondentes a encargos de direção, chefia ou assessoramento, que podem ser exercidas por pessoas alheias ao serviço público[8].” Traduzindo esse cansativo “juridiquês”, todas as companhias, incluindo as estatais, devem ser dirigidas por profissionais tão experientes e qualificados que o exercício da gestão, na esfera pública, dispensa até a exigência de concurso.

Em síntese, a tradição republicana que, segundo o trecho final da decisão em debate, imporia “aos cidadãos o dever de participar da vida pública”, não possui qualquer conexão com a rotina de uma empresa, muito menos com suas decisões gerenciais. Afinal, corporações não são a Ágora ateniense, e se destinam à finalidade de produzir riquezas. Ainda que tal conclusão prosaica não seja do agrado de um togado de orientação marxista.

Por isso mesmo, tanto no setor privado quanto no público, a condução das operações tem de ser confiada a profissionais experientes, sempre em benefício dos interesses da corporação e de seus acionistas e não com vistas ao favorecimento de conluios politiqueiros espúrios, como descortinado em tantas operações policiais nos últimos anos. Foi esse propósito que norteou a promulgação da Lei das Estatais, e, como afirmou com propriedade o ora senador Moro, caberá ao STF, muito em breve, “decidir se as estatais pertencem ao povo ou ao PT[9]”. Embora seja uma ferrenha opositora à própria existência de empresas estatais, torço para que prevaleça um laivo de decoro e para que os martelos se alinhem em uma direção mais benéfica aos interesses da população.

No momento em que escrevo, a decisão aqui comentada, em vigor desde o último dia 16 de março, já “abriu a porteira” às indicações políticas, permitindo que quadros técnicos sejam prontamente substituídos por militantes a serviço de suas siglas, com todos os efeitos nefastos daí advindos. Aliás, segundo informações trazidas por uma conhecida jornalista, haveria “nome e sobrenome” por trás das vinte e sete páginas, cuidadosamente redigidas pelo togado após suposta pressão direta do Executivo para a nomeação de político de sua confiança ao Banco do Nordeste[10].

O jogo está em curso, pois a liminar de Lewandowski ainda poderá vir a ser confirmada ou rechaçada pelo plenário da Corte. Espero de coração que, pelo menos desta vez, as supremas togas prestem um serviço relevante ao país. Caso contrário, a porta do nosso inferno se escancarará ainda mais por sobre um pandemônio de ingerência e corrupção.

[1] https://www.sbtnews.com.br/noticia/justica/233926-o-golpe-na-lei-das-estatais-porteira-aberta-para-a-avalanche-da-corrupcao

[2] https://www.poder360.com.br/justica/lewandowski-suspende-parte-da-lei-das-estatais/

[3] https://www.estadao.com.br/politica/novo-aciona-o-stf-contra-decisao-que-permitiu-a-indicacao-de-politicos-para-estatais/

[4] https://www.poder360.com.br/justica/lewandowski-vai-a-evento-do-mst-e-fala-em-crise-na-democracia/

[5] https://pcdob.org.br/tag/mst/

[6] RE 589998 / PI

[7] Art. 173, parágrafo 1º, V da CF

[8] https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/dout20anos/article/view/3440/3564

[9] https://twitter.com/SF_Moro/status/1636669598870142976

[10] https://oglobo.globo.com/blogs/malu-gaspar/post/2023/03/a-indicacao-politica-que-fez-lewandowski-atropelar-o-julgamento-da-lei-das-estatais.ghtml

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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