Ainda existe escravidão no Brasil
Recentemente tivemos a comemoração dos 20 anos da criação dos grupos móveis de fiscalização contra o trabalho escravo no Brasil, destinado a reprimir a escravidão privada moderna, que é mais branda que a escravidão privada antiga, pois enquanto esta era baseada em contratos e direitos de propriedade, aquela é baseada em servidão por dívida. Ambas são, sem dúvida, moralmente condenáveis e devem ser extirpadas da vida social brasileira, sempre, é claro, rogando-se pela criação de um arcabouço jurídico claro que defina o que é ou não é condição análoga à escravidão.
Isto posto, e louvando o trabalho dos fiscais contra a escravidão privada, vou comentar hoje sobre outro tipo de escravidão igualmente condenável do ponto de vista moral: a escravidão pública.
Robert Nozick já fez o seguinte exercício: na escravidão privada clássica, 100% da produção econômica do escravo é destinada a seu senhor. Mas isso é impossível, pois o escravo tem custos, o que significa que nunca há completa transferência de recursos do escravo para o senhor. Sendo baixa a produtividade do escravo, vamos chutar que o senhor fica com 80% do que o escravo produz, e isso de maneira absolutamente violenta.
Nozick então cria o exemplo de um senhor que também rouba violentamente aquilo que é produzido pelo escravo, mas sendo mais benevolente, toma apenas 60% do que o escravo produz. Outro, mais benevolente ainda, toma 50% apenas, e assim sucessivamente.
Então Nozick pergunta: em que nível de exploração violenta o escravo deixa de ser escravo? 40%? 30%? 20%? Cada um tem sua resposta.
Agora vamos pro caso brasileiro. De acordo com o IPEA, um brasileiro que ganha até 2 salários mínimos por mês paga 56% do que ganha em tributos, normalmente indiretos, ou seja, tributos que ele não vê que está pagando, por estar embutido nos preços dos produtos, mas que o pobre não tem condições de fugir. Esse pagamento é cobrado com violência, de forma que o cidadão não tem como resistir à sua realização.
56% de expropriação violenta caracteriza escravidão? Se fosse um caso de escravidão privada, sem dúvida que sim. E por que essa violência, praticada pelo Estado brasileiro contra seu cidadão pobre, é aceito como prática democrática? Me parece claro que não existe legitimidade na escravidão, seja de que matiz for, mas, no Brasil, a escravidão pública é justificada, desde que nosso senhor de engenho faça promessas de serviços públicos que nunca cumpre, pela sua própria natureza de senhor.