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A tirania das minorias

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Ray Bradbury conseguiu escrever uma ode à literatura, quando compôs Fahrenheit 451. Sua distopia, contrastando com outras mais famosas de seu tempo, não se passava em uma ditadura futurista, ou tampouco representava regimes totalitários contemporâneos em sua crueldade e insanidade – Bradbury, possivelmente, foi muito além do realismo político (e de como as ideologias controlavam o indivíduo) de Orwell ou do hedonismo como controle e norma pública, de Huxley.

O distópico, em Bradbury, foi conseguido pela tinta da lei; foi feito em cima de regimes democráticos, onde governos representativos ainda existem e eleições ocorrem normalmente. De fato, sem a importância que a democracia e seu sistema dão ao seu povo, isto é, nos recônditos mais profundos, marginais, distantes ou gerais da população, a distopia assassina do conhecimento jamais teria existido. Fahrenheit 451 – que, aliás, resenhei em uma primeira e uma segunda parte – sustenta que minorias, clamando por igualdade e paz perante a maioria, acabam coibindo a maioria de um povo em seus direitos de se expressar – com os decênios, séculos, o espírito democrático de integração, direitos e deveres, acabou por, em nome da não-agressão intelectual, eliminar qualquer conhecimento que ultrapassasse o nível técnico.

Bradbury não conseguiu, porém, prever com fidelidade que o próprio conhecimento técnico poderia ser inibido em nome desse espírito de igualdade das democracias. O autor não podia prever, em plena década de 50, o nível de loucura que o progressismo iria alcançar. Bradbury foi incapaz de pensar em algo tão irracional e louco como o desconstrucionismo que vemos atualmente; ele não conseguiu prever que mesmo a mera existência de padrões biológicos poderia ser contestada por ideologias, nem que a defesa das minorias geraria cadeia para quem ousasse expressar o que a maioria pensa, mas daria privilégios às minorias e romantizaria a expressão de pensamentos minoritários.

Malgrado Bradbury ter tido, como afirmei, mais êxito realístico do que Orwell e Huxley, nem ele pôde sair de sua década para cair no mar de lama em que vivemos. Em nome dessa pretensa igualdade, por exemplo, países como o Canadá estudam banir símbolos religiosos de locais públicos de trabalho; locais como a França permitem o direito à blasfêmia e ao ultraje ao culto, ao mesmo tempo em que seguranças de catedrais são presos por retirar, à força, feministas que urinam em altares. Ninguém de uma época e região mais decente poderia, de fato, prever esse tipo de coisa.

Possivelmente, a Natureza Humana é tão inclinada ao conhecimento que seria impossível criar qualquer mundo puramente técnico, alheio e agressivo para os grandes questionamentos existenciais do Homem e do cosmos em que vive. Essa característica natural do humano, no entanto, cria outro problema: a censura, em vez de ser apartidária, mira para apenas um lado, o lado dito opressor. Em nome do bem-estar de pequenos grupos, os grandes são ameaçados com retaliações legais. Os oprimidos se tornam os opressores, mas, diferente do que ocorria no passado, quando um grupo menor domava o maior e, assim, assumia o posto de dominante, atualmente a minoria oprimida se torna a opressora usando a justificativa de ainda ser a oprimida para continuar como opressora.

Atualmente, na maior parte do Mundo Livre (leia-se, do Ocidente), pautas progressistas simplesmente moldam a política de países inteiros. Não são apenas heróis pontuais, defendendo bravamente os direitos dos fracos contra os fortes: são esquemas de poder que têm grande parte das propostas e corpos políticos de regiões inteiras, quando não são majoritários ou mandatários. São conservadores que mandam nas câmaras da União Europeia? A França, Alemanha, toda a Escandinávia, são pautados pelos antigos costumes e valores cristãos? Mesmo os partidos ditos conservadores do mundo europeu, seja em parlamentos civis ou nobiliárquicos, seguem a religião, combatem o feminismo, a secularização, etc., em nome das tradições?

Apenas um consumidor muito assíduo de drogas (e daquelas que afetam a cognição a curto, médio e longo prazo) poderia responder que sim. Mesmo fora da Europa essas pautas não são episódicas, ou minoritárias, mas profunda e vastamente presentes nas propostas políticas sul-americanas e norte-americanas – o Partido Democrata praticamente vive de retóricas identitárias; o PT tem como uma de suas espadas o progressismo e a defesa de leis a favor de minorias.

Minorias, como qualquer um poderia verificar com facilidade, não têm problemas no mundo político, elas o dominam. Existe um problema intrínseco em querer, desse modo, moldar a sociedade a partir de réguas minoritárias, o que é, por definição, uma tirania.

É um fato facilmente constatável que minorias, necessariamente, mandam nos campos políticos. A maioria necessita de um grupo para organizar, administrar e comandar as sociedades e, precisamente, tal grupo se torna uma minoria. Assim é a minoria política de qualquer sociedade existente ou que já existiu e, portanto, tal grupo minoritário não é necessariamente tirânico; porém, minorias ideológicas e progressistas já representam um problema de outro nível.

Quando uma ideologia criada ontem assume o posto de modificadora da sociedade, buscando desconstruir os séculos e milênios que moldam e definem quem nós somos (seja a nível individual ou coletivo), com uma evidente dificuldade de analisar a realidade, já que (ao menos as mais atuais) são pautadas em bases relativistas, irracionalistas ou niilistas, existe um problema. São grupos políticos dotados de um projeto de poder que visa destruir (uma palavra mais adequada do que desconstruir) a cosmovisão integral de um povo, decidindo e pautando até mesmo como alguém deve pensar, falar, se vestir e se comportar. Não há um peso da tradição e do movimento natural da sociedade aqui. É da artificialidade, projetada em mesas de universidades e enfiada goela abaixo para costumes e tradições que veem essas propostas sintéticas como alienígenas, de que falo.

Quando, em nome da igualdade, obras e pesquisas são suprimidas, com a justificativa de que estão sendo preconceituosas – é marcante o exemplo da proibição da mera investigação sobre as causas do homossexualismo e se é, ou não, possível fazer um homossexual se tornar heterossexual –, ou mesmo a discriminação dos pronomes de tratamento que definem quem é homem e quem é mulher; até mesmo a natural discriminação biológica – no Reino Unido, fez-se uma campanha para que os médicos deixassem de utilizar o termo “mulher grávida”, pois isso poderia afetar os sentimentos de certos transexuais –, temos exemplares de uma sanha nunca antes vista por controle e domínio social.

Em nome da igualdade, privilégios são criados para essas minorias (embora, principalmente, também sejam para seus representantes políticos). Existe a coibição da ciência, do saber, do conhecer – taxar alguém de homofóbico, sexista e racista, por exemplo, só porque é contra leis imprecisas que podem classificar quase qualquer coisa dirigida contra um homossexual como um ato homofóbico; se a mera objeção a uma pauta feminista significa ódio extremo e irracional; ou se se é contra a atitude claramente discriminatória das cotas raciais. Todo esse ódio progressista intimida e pretende calar todos que discordam das posturas. O diálogo e o debate se transformam em algo inócuo, irrelevante e sem propósito, já que um lado será necessariamente um santo e, o outro, um demônio.

Bradbury acertou quando previu que minorias iniciariam um processo tirânico em nome da igualdade e dentro de um sistema democrático, mas errou em pensar que nenhum grupo de interesse usaria essa mesma igualdade e esse mesmo sistema para tomar os espaços de ação e de discussão. Fahrenheit 451 fala da batalha do Homem pela busca pelo conhecimento após toda minoria ter seus “direitos” garantidos, a realidade atual, no entanto, fala da luta do Homem contra progressistas que monopolizam o que pode e o que não se pode conhecer – e em nome da própria Virtude, que também pensam monopolizar.

É claro que não apenas minorias progressistas geraram caos na História humana. Se, digamos, colonizadores cristãos impõem, ao extremo, seus padrões de conduta, pensamento e vida em sociedades ameríndias – e com todo um sistema que os permite controlar e gerir tais sociedades –, é claro que essa cristianização forçada irá criar um cenário desordeiro e violento dentro dessa sociedade indígena: haverá rebelião, assassinatos, invasões, depredações, em resposta aos colonizadores de ares totalitários.

Essas minorias progressistas, porém, se comportam de modo diferente de algum invasor estrangeiro que tenta impor sua cultura pela força. Tomam princípios igualitários necessários para a democracia e os levam ao extremo, tentando pôr toda uma sociedade na régua que eles mesmos criaram. Não são apenas grupos impondo ideias alienígenas em uma sociedade, mas sim sujeitos que querem desconstruir a própria razão, a própria noção de Verdade, para imporem seus modelos. Subtraem a possibilidade de debater e conhecer algo que vá para além de suas loucuras ideológicas; proíbem qualquer discordância em nome do bem, da virtude de proteger o fraco e oprimido.

A realidade, com efeito, se mostra a favor do conhecimento. É da nossa natureza, como já dito, conhecer e sempre ir ao conhecimento. Nenhum sistema poderia barrar essa busca, nenhuma maioria ou minoria conseguiria tolher essa característica do Homem; no entanto, como ocorre e já ocorreu inúmeras vezes, o conhecimento pode ser guiado, alterado, moldado de formas variadas e diversas. Hoje podemos ver que os caminhos da História seguiram vias diferentes da ficção de Bradbury, mas as similaridades não podem ser simplesmente ignoradas. Minorias na Europa – vindas da imigração em massa – criticando Shakespeare e sua literatura por serem “colonizadoras”, negando-a em sua validade e universalidade; grupos minoritários exigindo uma “descolonização” dos museus britânicos, em nome de uma reparação histórica, querendo uma desafronta por males que nunca sofreram, buscando a idolatrada igualdade, nem que isso solape os limites do bom senso.

Estamos em épocas novas e mesmo a tirania mudou. Ela, ao que parece, está potencialmente mais corrosiva do que nunca.

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Hiago Rebello

Hiago Rebello

Graduado e Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense.

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