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A campanha pela lei seca na prova do ENEM

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BERNARDO SANTORO*

O tema da redação da prova do ENEM ontem foi a lei seca. A lei seca dispõe que só é permitido dirigir se o motorista não tiver praticamente nenhum traço de álcool no sangue, com o intuito de diminuir a quantidade de vítimas no trânsito do Brasil, que, convenhamos, é muito alta.

O enunciado pede que se fale sobre “efeitos da implantação da lei seca no Brasil”, e que essa resposta deve respeitar os “direitos humanos”. Mas é interessante ver que, a seguir, o governo (que produz a prova) junta duas reportagens a favor da lei seca, dando a entender que quer ver o candidato defendendo a lei seca, mesmo que ele entenda que os efeitos da Lei Seca foram ruins, ou simplesmente ineficazes.

Alguns professores, inclusive, declararam que atacar a lei seca seria fugir do tema. Como acho absurdo o governo impor uma direção de resposta de redação, ou seja, impor um pensamento, já critico de cara a questão na sua forma. Quanto ao conteúdo da questão, vou expor o que penso sobre a lei seca adaptando um texto meu de 2011.

A lei seca foi promulgada em 2008 com o objetivo nobre de reduzir o número de acidentes no trânsito, sob a alegação que o uso de álcool, em qualquer quantidade, reduz significativamente a atenção e reflexos do motorista, aumentando assim a probabilidade de um eventual acidente. A grande mídia incorporou esse objetivo e vem divulgando ações da lei seca sob uma perspectiva extremamente favorável. 
Desde já deixo claro aqui que dirigir sem condições físicas ou psicológicas é uma atitude absolutamente lamentável. Desde já pugnamos para que todos os motoristas só trafeguem nas ruas quando estiverem em plenas condições, e isso inclui não somente não dirigir alcoolizado, mas também drogado, machucado ou sem condições psicológicas, tal como acontece no momento subseqüente a uma tragédia familiar, perda do emprego, briga com companheiro ou amigos, entre outros. 

Vamos argumentar, contudo, que a Lei Seca, apesar da sua aparente boa intenção, é intrinsecamente imoral e não surte os efeitos desejados pela sociedade, qual seja, a redução de acidentes de trânsito, vindo a ser apenas mais um meio de arrecadação de receitas para o Estado

A Lei 11.705/2008, também conhecida como Lei Seca, entrou em vigor no dia 20/06/2008, e dispõe que a tolerância para consumo de álcool é zero, sob pena de multa e suspensão da carteira de motorista por 12 (doze) meses. 

Por que essa lei é imoral? 

Argumentamos que toda lei que impõe uma sanção para uma conduta que não causa vítimas é moralmente injustificável. Esse pensamento não é novo e nem é uma criação do moderno movimento liberal. Na Roma antiga, era um chavão jurídico a seguinte frase: “nullum crimen sine iniuria”, que pode ser traduzido como “não há crime sem dano”. 

Isso significa que não faz sentido classificar uma conduta como criminosa se tal conduta não traz, por si só, uma vítima. 

No caso da Lei Seca, a conduta criminosa (ainda que esse crime seja punível apenas com multa) é a seguinte: “dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. 

Pegando essa frase, utilizando-se apenas o ato criminalizado, que é o verbo “dirigir”, vemos que não há, a princípio, uma vítima. Uma pessoa que dirige alcoolizada do bar até a sua residência, não causou dano a ninguém. Logo, essa conduta não deveria ser um crime. 

Os governantes em geral admitem que a conduta em questão não cause danos por si só, mas argumentam que ela aumentaria exponencialmente a possibilidade de ocorrer outra conduta que, essa sim, causaria um dano a outra pessoa. 

Ainda que déssemos razão aos governantes e à mídia em geral, esse pensamento é extremamente perigoso. 

No momento em que damos a um governo o poder de decidir que condutas podem ser criminalizadas não porque causa danos, mas sim porque podem eventualmente ajudar a criar uma conduta verdadeiramente danosa, abre-se uma porta para a tirania e a opressão. O que impediria um governo com tal poder de proibir o consumo de batatas fritas porque elas podem causar colesterol? Opa, isso já acontece. O Ministério da Saúde, recentemente, passou a chantagear empresas de alimentos para diminuir o sal, açúcar e gordura de alimentos

Esse argumento do dano potencial é tão absurdo que o governo poderia ainda nos proibir de usar carros, facas, pedras, eletricidade, bicicletas, etc. Até mesmo o sexo, atividade mais natural do planeta, poderia ser criminalizado, já que pode servir com transmissor de doenças. 

O fim do caminho desse tipo de política é só poder fazer sexo com autorização do governo, depois de um processo administrativo iniciado com um requerimento em três vias e com pré-agendamento de um fiscal do governo para garantir que a camisinha esteja no lugar. 

São tantas as coisas que podem servir de instrumento de dano que a própria vida em sociedade ficaria inviabilizada. Certamente não é essa a solução. Não vou aqui negar que beber é extremamente prejudicial para qualquer motorista. Logo, a punição deveria ocorrer para quem bebeu, dirigiu e acidentou alguém. Do ponto de vista liberal, não há problema nenhum em usar o consumo de álcool como agravante para a pena, ou seja, se a pessoa bebeu, dirigiu e machucou outra pessoa, a pena poderia ser agravada fortemente pela bebida, mas apenas se houve o dano, nunca se nada ocorreu

Discutida a moralidade, vamos falar agora dos efeitos práticos da Lei Seca. É extremamente comum ouvir falar que a Lei Seca diminuiu os acidentes de trânsito no Brasil. Isso é MENTIRA! 

Os dados mais confiáveis para acidentes de trânsito são os do DPVAT, que é o seguro obrigatório pago para pessoas que se acidentaram no trânsito. 

Como a Lei Seca entrou em vigor no meio de 2008, vamos apresentar os dados dos anos anteriores: 

2005 
Mortes: 55.024 
Invalidez: 31.121 
Danos que não resultaram em invalidez: 88.876 
Total: 175.021 

2006 
Mortes: 63.776 
Invalidez: 45.635 
Danos que não resultaram em invalidez: 83.707 
Total: 193.118 

2007 
Mortes: 66.838 
Invalidez: 80.333 
Danos que não resultam em invalidez: 104.959 
Total: 252.130 

Vamos desconsiderar os dados de 2008, visto que a Lei Seca entrou em vigor no meio do ano, e não temos como saber exatamente a influência do período sem a lei e com a lei em vigor. Seguem os números dos anos com a Lei Seca em vigor: 

2009 
Mortes: 53.052 
Invalidez: 118.021 
Danos que não resultam em invalidez: 85.399 
Total: 256.472 

2010 
Mortes: 50.780 
Invalidez: 151.558 
Danos que não resultam em invalidez: 50.013 
Total: 252.351 

A média de acidentes nos anos anteriores à Lei Seca ficou assim: 

Mortes: 61.879 
Invalidez: 52.363 
Danos que não resultam em invalidez: 92.514 
Média total de acidentes: 206.756 

A média de acidentes nos anos posteriores à Lei Seca ficou assim: 

Mortes: 51.916 
Invalidez: 134.790 
Danos que não resultam em invalidez: 67.706 
Média total de acidentes: 254.412 

Com esses dados, podemos ver que, efetivamente, apenas as mortes no trânsito diminuíram durante a lei seca, em cerca de 20%, caindo de 61.879 para 51.916. Por outro lado, houve um aumento absurdo de acidentes com invalidez de pessoas, em mais de 150%, saindo de uma média de cinco dígitos (52.363) para uma média de seis dígitos (134.790). Os acidentes com danos que não resultam em invalidez até diminuíram um pouco também, mas, no total, durante a Lei Seca, a média total de acidentes aumentou em 20%, saltando de 206.756 para 254.412. 

E essa média tende a aumentar, é claro, principalmente porque temos cada vez mais pessoas dirigindo. Alguém poderia citar o pensamento de Bastiat para argumentar que esse é o resultado que se vê, e que se não houvesse lei seca talvez esse número aumentasse mais (o que não se vê), mas isso também fica na hipótese, e o fato concreto é que pessoas continuam se acidentando muito e a lei seca não tem feito um bom papel.

Ora, se a Lei Seca não diminuiu efetivamente os números de acidentes de trânsito, além de ser imoral, qual o sentido da sua existência? 

Do ponto de vista liberal nenhum. Do ponto de vista estatista, total, porque é mais uma fonte de renda do governo. Por ser uma multa, ela não é um tributo do ponto de vista clássico do direito tributário, mas, de fato, funciona como tal. 

Apenas nesse ano, que, como visto, tende a ser o mais violento da história do país em matéria de trânsito, o Estado do Rio de Janeiro já aplicou mais de R$ 45.000.000,00 (quarenta e cinco milhões) em multas em virtude da Lei Seca, e isso apenas até agosto. Ademais, estamos falando de apenas um estado da federação brasileira. A Lei Seca levanta, no mínimo, meio bilhão de reais para o Estado brasileiro por ano, e essa é uma estimativa modesta. 

Portanto, não se iluda quando ouvir de uma autoridade que a Lei Seca é boa e previne acidentes. Basta ver os dados. Além de não evitar (ou evitar modestamente) os acidentes, serve como mais um instrumento de arrecadação e corrupção, sem contar que a filosofia que a sustenta leva a um estado totalitário e opressor, sendo absolutamente imoral. 

Precisamos dizer não para a Lei Seca, sem deixar de conscientizar as pessoas sobre o risco de beber e dirigir. 

*DIRETOR DO INSTITUTO LIBERAL

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