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Só se pode falar a verdade onde não é crime contar mentiras

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De um tempo para cá, um termo inglês vem ganhando mais e mais relevância no cenário brasileiro, mantendo a nossa velha mania de dar mais valor a conceitos do que àquilo que poderíamos ter pensado sozinhos. Fake news, o termo da moda, um fenômeno que nossos avós simplesmente chamavam de mentira. Desde quando a mentira se tornou algo tão preocupante assim?

Não é que nossos avós não mentiam, ou mesmo que mentissem menos. Eu duvido muito disso. Alguns culpam a facilidade com que mentiras se espalham por aí, culpam a internet – tudo besteira. O problema é que nunca se mentiu tão pouco. Nunca a verdade foi tão enunciada assim.

Somos uma sociedade de profetas. Influencers, intelectuais, cientistas, comentadores, especialistas, ideólogos, filósofos, iluministas, racionais, juristas – tudo o que fazemos é produzir conteúdo. Não há mais pessoas simples que se enganam, que defendem seus próprios interesses, não há mais mentirosos, não há mais as meias-verdades dos cafajestes, não há mais escroques. Não, todos estamos preocupados com um bem maior, todos queremos um mundo melhor.

A dúvida de Pôncio Pilatos já não mais paira sobre nós[1]. Ao contrário do que dizem por aí, não falta credo ao nosso povo – sobra. Em uma sociedade de messias, só há verdade ou heresia. Não há meio termo. Acreditamos ou negamos tudo o que escutamos[2], sem considerar nem um pouco o conteúdo do que nos chega, sem tentar separar o joio do trigo, captar a mentira oculta na verdade dita e a verdade não dita na mentira contada[3]. Somos uma sociedade de crédulos e cruzados.

O que nos falta é o ceticismo de quem sabe que mentiras serão contadas, e que, ainda assim, a verdade triunfará. O ceticismo, que é o amigo da prudência. Confiamos demais em nossas verdades elegidas, a ponto de achar que tudo o que a elas contraria é um ataque à verdade em si, a todo o universo e a todas as coisas. Confiamos tão pouco em nossas verdades que as vemos frágeis o suficiente para perecer diante de qualquer mentira. Não nos vemos capazes de sustentar nossas próprias verdades face às mentiras alheias.

Não, o maior inimigo da verdade não é a mentira. O maior inimigo da verdade é a certeza. Em lugar onde mentiras são contadas, a verdade sempre se sobressairá. Em lugar onde certezas são eleitas, a verdade pode ser chamada de mentira. E será combatida, sempre. Nada é mais covarde que a certeza, pois ela não procura a verdade, ela procura coesão[4].

Muitos estão surpresos com os rumos de como nossa corte constitucional vem lidando com a liberdade de expressão nesses últimos tempos, mas nada disso é novidade. Não canso de repetir: a audácia dos togados vem se desenhando faz tempo, e ela é de inteira responsabilidade nossa[5].

Como já disse em outros textos, com a Lava-Jato, o Poder Judiciário descobriu o que pode fazer com os indesejáveis – nunca foi tão fácil acessar e se utilizar do direito penal. Com a pandemia, porém, o Poder Judiciário descobriu que pode facilmente determinar quem são os indesejáveis – basta elencar uma verdade.

E, assim, foram escolhidos os “negacionistas”. Hereges, em outras épocas – aqueles que negavam a ciência. Foi neste exato momento que os juízes viram o quão acovardado está nosso povo[6], o quanto acreditamos em qualquer verdade absoluta ou o quanto as negamos absolutamente.

Uma sociedade sadia não se preocupa tanto assim com a verdade. Não enquanto sociedade. Isso porque, quando uma sociedade começa a se preocupar demais com a verdade, emerge o risco quase onipotente de que seja confundida com o consenso. E nada é mais perigoso do que a verdade enquanto consenso[7].

Uma verdade dita mil vezes é só uma verdade. Uma mentira dita mil vezes é só uma mentira. Uma certeza compartilhada por mil pessoas se torna perigosa, seja ela verdade ou mentira[8]. Isso porque numa sociedade de consenso já não se tolera mais o dissenso – não é a mentira que ela combate, é a divergência. Mentira é o nome dado a tudo aquilo que não concorda com as certezas públicas.

Tales de Mileto foi o pai da filosofia. Aristóteles, o pai da ciência e da política. Sócrates, o pai de todos os mentirosos. É em tempos de crise civilizacional, em que a verdade se confunde com a sociabilidade e agradabilidade das ideias, que aquele que é tratado como um mentiroso hábil ganha seu valor. Em tempos em que todos sabem tudo, nada mais importante do que aquele que nada sabe, que confunde, que engana – corruptor de novas mentes, injuriador de tradições[9].

Não há, aos olhos da certeza e do consenso, diferença entre a verdade e a mentira. Não há, aos olhos da sociedade de massa, aos olhos do regime democrático, aos olhos do estado burocrático, diferença entre a verdade e a mentira. Há a opinião vigente, a ciência, o dogma[10]. E há a heresia[11].

Mas, se é a verdade o que falam, por que temem tanto a mentira[12]? Não confiam no que acreditam? Que deixem a mentira ser falada, que a soltem na arena. Que deixem que a fúria da verdade a fira, que sua falsidade escorregue pelos poros de suas sentenças, que seus verbos nos insultem as virtudes. A mentira deve ser tolerada, desde que a verdade possa combatê-la[13].

A mentira deve ser combatida a todo custo – mas há uma arena para isso: o discurso. O problema não são os mentirosos que contam mentiras – o problema é o povo que acredita sem refletir. A existência de perigos faz reluzir a beleza da paz, a existência das mentiras faz reluzir a virtude na verdade.

Porém, numa sociedade de consenso, não é a veracidade ou a falsidade de uma ideia que sentencia o seu interlocutor – é sua agradabilidade, é o quão útil ela é. Há um lugar reservado em uma cela para cada verdade desagradável a ser dita, a mesma cela em que descansam as mentiras desagradáveis. Juntas, são somente prisioneiras, transgressoras.

O problema, então, não é o que se fala – é a liberdade de pensar. Com ela, abole-se o discurso. Trancafiada a retórica, fechada a arena do debate, quem perde, ao fim, é a verdade, que precisa do combate sincero para triunfar[14]. Assim, crescem as mentiras, encobertas pela permissão dos poderosos, longe dos ataques da razão.

Então, digo uma verdade inconveniente: só há necessidade de leis que protejam a liberdade de expressão quando essa liberdade de expressão não é bem-vinda[15]. Liberdade de expressão é a liberdade de desagradar[16].

Pense em um discurso que agrade a todos. Em dois pontos diferentes, esse discurso não se aplica à ideia de liberdade de expressão. O primeiro deles é que não há liberdade alguma no mero agradar. Ao discurso agradável, falta-lhe o impulso primordial da reflexão individual, da falibilidade de ser livre e, portanto, pensante – prefere a segurança da maioria ao risco de chocar. Só pensa quem pode se enganar, só pensa quem pode enganar o outro. Imprevisibilidade é o tônus da liberdade[17].

O segundo é que discurso agradável e conformado nunca será contestado, jamais será posto à prova, por dois motivos simples – ele não incomoda e, mesmo que incomodasse, não há interlocutor a ser responsabilizado pela fala. Não há quem seja responsabilizado pelo que um papagaio diz, ainda mais quando tudo o que o papagaio diz é ensinado para agradar às visitas.

E é neste cenário onde tudo é dito sem ser dito, tudo é falado por ninguém, só o falar, só o pensar, já é um ato revolucionário. Onde a verdade incômoda é tratada como mentira, mentir e incomodar é um ato de virtude[18].

Não, liberdade de expressão não é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro[19]. Liberdade de expressão é a liberdade de dizer que dois mais dois são cinco[20], sem que ninguém seja obrigado a acreditar nisso[21][22]. No entanto, num lugar onde falar que dois mais dois são cinco é tratado como crime, pode chegar o dia em que dizer que dois mais dois são quatro se torne também.

Muito pior que isso: num lugar onde falar que dois vezes dois são cinco, onde errar e mentir é proibido, sobra pouco ou nenhum espaço para que haja a reflexão ou a expressão de ideias verdadeiras. Dá-se o nome de chilling effect ao efeito pelo qual o uso constante de medidas coercitivas do Estado contra um tipo de discurso acaba por fazer com que as próprias pessoas se autocensurem para conformar suas ideias às ideias aceitas.

A autocensura da fala, então, se torna a autocensura do pensar. Sem espaço para respirar[23], sem a possibilidade de falar o que se pensa, os indivíduos começam a sufocar seus pensamentos[24] – fagulha da combustão que é a expressão humana. No momento em que a expressão do pensamento se torna caso de polícia, é o próprio pensar que se enclausura por detrás das grades[25].

E, por último e mais importante, deixar que o poder público delimite o que é mentira ou não é colocar uns homens numa posição muito superior ao que são capazes[26], e outros em um patamar muito inferior ao que podem ser.

É isso, então? Somos tão patéticos, tão ignorantes, que se faz necessário que as ideias sejam filtradas antes de chegarem a nós?

Toda ideia proibida será procurada nos porões de alguma biblioteca. Todos os livros, todos os discursos, todos os manifestos, emergirão das sombras da ilegalidade para aqueles que procurarem. Ideias não cabem atrás das grades, não precisam de anuência para se manifestarem e se reproduzirem, para vagarem livres pelo mundo[27]. Abençoados sejam todos os livros proibidos e todos os porões que os abrigam.

Mas chegará – na verdade, já chegou – o dia em que uma grande parcela da sociedade acreditará que o ponto máximo de suas vidas é obedecer a alguém superior, que o senso comum perecerá aos pés de um iluminado. E é nesse dia, neste exato dia, que a mentira se fará tão importante, pois é assim que a verdade será chamada[28].

Talvez esse seja, afinal, o ato mais prudente a ser feito no momento – ser imprudente. Talvez, nos tempos em que vivemos, conservar seja destruir[29]. Talvez…

[1] Quid est veritas? — o que é a verdade? PÔNCIO PILATOS (JÓ), 18, 38.

[2] Uma vida não examinada não vale a pena ser vivida. SÓCRATES (PLATÃO), Apologia de Sócrates.

[3] Mas muitas vezes a verdade se esconde nas mentiras. JRR TOLKIEN, Senhor do Anéis.

[4] O verdadeiro objetivo da propaganda totalitária não é a persuasão, mas a organização. HANNAH AREDNT, As origens do Totalitarismo

[5] Essas pessoas não veem que se você encorajar métodos totalitários, virá o tempo em que eles serão usados contra você ao invés de para você. GEORGE ORWELL, The Freedom of the Press.

[6] Neste país a covardia intelectual é o pior inimigo que um escritor ou jornalista tem que enfrentar, e esse fato não me parece ter tido a discussão que merece. GEORGE ORWELL, Prefácio original de Animal Farm.

[7] Em uma sociedade em que não há lei e, em teoria, nenhuma compulsão, o único árbitro do comportamento é a opinião pública. Mas a opinião pública, por causa do tremendo desejo de conformidade em animais gregários, é menos tolerante do que qualquer sistema de lei. GEORGE ORWELL, Politics vs. Literature: An Examination of Gulliver’s Travels” Polemic.

[8] A teoria nazista de fato nega especificamente que tal coisa como “a verdade” exista. Não existe, por exemplo, algo como “Ciência”. Existe apenas ‘Ciência Alemã’, ‘Ciência Judaica’, etc. GEORGE ORWELL, Looking Back on the Spanish War.

[9] Torne-se tão livre que toda a sua existência é um ato de rebelião. ALBERT CAMUS, The Rebel.

[10] Assim, o totalitarismo parecer ser apenas o último estágio de um processo durante o qual a ciência tornou-se um ídolo que, num passe de mágica, cura os males da existência e transforma a natureza do homem. HANNAH ARENDT, As Origens do Totalitarismo.

[11] Esse sentimento de segurança, resultante da violência contra o mundo exterior, é tão importante para a integridade do mundo fictício da organização quanto o medo do seu terrorismo. HANNAH ARENDT, As Origens do Totalitarismo.

[12] Não posso elogiar uma virtude fugitiva e enclausurada, não exercitada e não respirada, que nunca sai e vê seu adversário, mas foge da corrida onde aquela guirlanda imortal deve ser disputada, não sem poeira e calor. JOHN MILTON, Aeropagitica.

[13] O erro de opinião pode ser tolerado no lugar em que a razão estiver livre para combatê-lo. THOMAS JEFFERSON, First Inaugural Adress (4 March 1801).

[14] Dê-me a liberdade de saber, de proferir e de argumentar livremente de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades. JOHN MILTON, Aeropagitica.

[15] Se liberdade significa alguma coisa, ela significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir. GEORGE ORWELL, Prefácio à edição inglesa de Revolução dos Bichos.

[16] É no desfrute da total liberdade de manifestação do pensamento e de expressão lato sensu que se pode fazer de qualquer dogma um problema. MIN. AYRES BRITTO, ADPF 130.

[17] O fato de o homem ser capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. HANNAH ARENDT, A Condição Humana.

[18] Sob um governo que aprisiona qualquer pessoa injustamente, o verdadeiro lugar para um homem justo também é uma prisão. HENRY DAVID THOREAU, On the Duty of Civil Disobedience.

[19] Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro. GEORGE ORWELL, 1984.

[20] Eu admito que dois mais dois são quatro seja uma coisa excelente, mas se estamos a dar tudo lhe é devido, duas vezes dois são cinco é uma coisa muito charmosa também. FYODOR DOSTOYEVSKY, Notas do Subterrâneo.

[21] O objetivo implícito dessa linha de pensamento é um mundo de pesadelo em que o líder, ou alguma classe dominante, controla não só o futuro, mas o passado. Se o Líder diz de tal e tal evento, “Isso nunca aconteceu” — bem, isso nunca aconteceu. Se ele diz que dois e dois são cinco — bem, dois e dois são cinco. Essa perspectiva me assusta muito mais do que as bombas. GEORGE ORWELL, Looking Back on the Spanish War.

[22] No final, o Partido anunciaria que dois e dois fazem cinco, e você teria que acreditar. Era inevitável que eles deveriam fazer essa reivindicação, mais cedo ou mais tarde: a lógica da sua posição exigia. Não apenas a validade da experiência, mas a própria existência da realidade externa, foi tacitamente negada por sua filosofia. A heresia das heresias era senso comum. E o que foi aterrorizante não era que eles iriam matá-lo por pensar de outra forma, mas que pode estar certo. Pois, afinal, como sabemos que dois e dois são quatro? Ou que a força da gravidade funciona? Ou que o passado é imutável? Se tanto o passado como o mundo externo só existem na mente, e se a mente em si é controlável — o que então? GEORGE ORWELL, 1984.

[23] JUSTICE POWELL, City of Houston v. Hill (1987).

[24] Em vez disso – ela não sabia por que – eles chegaram a um momento em que ninguém ousava falar o que pensava, quando cães ferozes e rosnando vagavam por toda parte e quando você tinha que ver seus companheiros serem despedaçados depois de confessar crimes chocantes. Não havia nenhum pensamento de rebelião ou desobediência em sua mente. GEORGE ORWELL, Animal Farm.

[25] A falácia é acreditar que sob um governo ditatorial você pode ser livre por dentro. GEORGE ORWELL, As I Please.

[26] Um estado totalitário é, na verdade, uma teocracia, e sua casta dominante, para manter sua posição, deve ser considerada infalível. GEORGE ORWELL, The Prevention of Literature.

[27] There is no gate, no lock, no bolt that you can set upon the freedom of my mind. VIRGINIA WOOLF, A Room of One’s Own.

[28] Ficar calado é dar a impressão de que não se tem opinião, que não se quer nada e, em certos casos, é realmente não querer nada. ALBERT CAMUS, The Rebel.

[29] Estamos em um estranho período da história em que um revolucionário tem que ser um patriota e um patriota tem que ser um revolucionário. GEORGE ORWELL, Patriot after all.

 

*Igor Damous é advogado criminal.

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