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“Breve Manual de Conservadorismo”: síntese da perspectiva kirkiana

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O filósofo político, historiador, crítico literário e escritor Russell Kirk (1918-1994) é mais conhecido por sua influência sobre aquilo que, na metade do século XX, ficou conhecido como o movimento conservador norte-americano. Já abordei seus trabalhos algumas vezes, com resenhas, respectivamente, de seu livro A Política da Prudência para minha própria obra Guia Bibliográfico da Nova Direita e de seu A Mentalidade Conservadora para o Instituto Liberal. Chegou-me às mãos agora a segunda edição revista e ampliada em português de uma obra de menor extensão e proposta mais didática, o Breve Manual de Conservadorismo, pela editora Trinitas.

O prefácio é de Alex Catharino, que, mais uma vez, como nos lançamentos anteriores da lavra kirkiana no Brasil, se dedica a contextualizar e esmiuçar a biografia e as contribuições intelectuais do autor a que vem dedicando significativa parcela de seus esforços. A introdução à edição americana de 2019, traduzida neste volume, é de autoria de Wilfred M. McClay, diretor do Centro para a História da Liberdade, que considera a preocupação notável de Kirk com o problema cultural um recurso necessário a um cenário em que o conservadorismo norte-americano estaria em crise e “a maior tarefa a ser enfrentada pelos conservadores e pelo conservadorismo” talvez seja “a de transformar uma cultura irresponsável, desumana, que nega a vida, numa realidade mais condizente com o legado humano”.

O Breve Manual de Conservadorismo é, na verdade, o mesmo trabalho que Kirk publicou em 1957 sob o título O guia do conservadorismo para a mulher inteligente, uma provocação ao título O guia do socialismo e do capitalismo para a mulher inteligente, publicado por um socialista Fabiano, George Bernard Shaw (1856-1950). Tomando o cuidado, tipicamente kirkiano, de não se apresentar como uma cartilha ideológica rígida e abstratista, essa pequena obra é a apresentação mais simples e direta que o autor poderia fazer de seu tema.

Seu núcleo se subdivide em doze capítulos. O primeiro, “A essência do conservadorismo”, ratifica como marco do conservadorismo moderno a reação de Edmund Burke (1729-1797) à Revolução Francesa. Ressaltando a recepção de pendores conservadores entre os fundadores dos Estados Unidos, elenca os princípios do conservadorismo norte-americano como sendo fundamentalmente dez: o governo de homens e mulheres por leis morais, estando o âmago dos problemas políticos subordinado a problemas morais e religiosos, relativos ao respeito ou desrespeito à natureza humana e ao “delicado tecido de nossa ordem social”; a importância da variedade e da diversidade, rejeitando-se a uniformidade imposta, quer por um tirano, quer por uma oligarquia, quer pelo que Alexis de Tocqueville (1805-1859) chamaria de “despotismo democrático”; a justiça conjugada à inevitável diferença entre as pessoas, com a inevitabilidade, igualmente, da presença de lideranças; a importância da propriedade privada; a necessidade de contenção do poder político estatal por leis e costumes, dando preferência à descentralização; a crença no valor de nos guiarmos “pelas tradições morais, pela experiência social e por toda a complexa gama de conhecimento que nos foi legada por nossos ancestrais”; a importância de fortalecer a comunidade, a associação e o espírito público, sem que isso implique o coletivismo autoritário e dissolvedor da individualidade; a necessidade de não pretender uniformizar as nações do mundo sob o seu próprio padrão; a rejeição de esquemas utópicos e o imperativo de promover reformas de maneira prudente e sem “espírito presunçoso e entusiástico”.

O objetivo dos demais capítulos é destrinchar as aplicações desses princípios assumidos por Kirk. “O conservador e a fé religiosa” já começa dizendo que nem todos os conservadores são religiosos e que nem todos os religiosos são conservadores, mas que o conservadorismo não pode existir sem uma base religiosa, pois ela confere à maioria da sociedade os alicerces morais para resistir às tentações autoritárias do coletivismo e cultivar a caridade e a justiça. Embora claramente privilegie a tradição judaico-cristã e a religião cristã – Kirk era católico -, o autor também afirma que “outras grandes religiões, tais como o Budismo, o Islamismo e o Judaísmo, também exercem uma influência conservadora sobre seus fiéis”.

“O conservador e a consciência” sustenta que os conservadores defendem o cultivo da virtude na consciência individual, condenando a caricatura que faz deles cultistas do egoísmo ou da avareza. Contestam, porém, os apelos a uma suposta “consciência social”, que dissolve a lealdade e a relação com as pessoas em nome de um abstrato e perigoso “amor à humanidade”. Na mesma toada, “O conservador e a individualidade” faz uma argumentação bastante determinada favoravelmente “à individualidade, aos direitos individuais, à diversidade na sociedade”, conquanto conteste o conceito de individualismo entendido como a defesa de um egoísmo mesquinho que aniquile a relevância de qualquer senso comunitário ou de associação. É importante pontuar que, quando o liberalismo fala em individualismo, inclusive em um individualismo de raiz ocidental, não o faz necessariamente nessa acepção radical e negativa com que Kirk emprega o termo. Na visão do autor, “o conservador sabe que tanto a liberdade irrestrita pode levar à opressão ou à anarquia como um governo sem qualquer refreio pode levar ao coletivismo”.

O capítulo “O conservador e a família” ressalta a importância dessa instituição basilar para a sociedade, sobretudo como um primeiro anteparo contra o coletivismo destruidor. O autor entende que existem hoje ataques deliberados à instituição familiar, mas também alguns não-deliberados, como “determinados aspectos do industrialismo moderno, que rompem a antiga união econômica da família, além do entretenimento e do transporte baratos”. Kirk defende que o conservador busque “criar meios práticos a fim de reconciliar a unidade familiar com as exigências da vida moderna”, sem propor nenhum mecanismo autoritário para atingir esse objetivo.

“O conservador e a comunidade” reflete sobre a importância do caráter associativo e comunitário, diferindo-o do coletivismo, este último visto como a crença no “Estado de massas, uma dominação unitária consolidada na qual a compulsão é a ordem última, na qual a vida é regulamentada, em todos os aspectos, por uma espécie de entidade central, que, embora aja, em teoria, em prol do bem comum, em verdade favorece grupos exclusivos e classes privilegiadas”. Já “O conservador e o governo justo” contesta Thomas Paine (1737-1809) em sua categorização do governo como um mal necessário, alegando que ele é um bem, se for justo, alicerçado em instituições que se desenvolvem em diálogo com o legado do desenvolvimento histórico e cultural de uma nação.

“O conservador e a propriedade” confere à propriedade privada seu lugar de destaque entre os direitos humanos, ao mesmo tempo em que contesta a tese de alguns de que ela seria a fonte de um materialismo excessivo, pontuando que as nações que mais se fundamentaram no ataque à propriedade privada, como a União Soviética, também eram as que mais se assentavam no materialismo desbragado. Seguem-se “O conservador e o poder”, que discute o perigo do poder arbitrário; “O conservador e a educação”, uma crítica ao pensamento pedagógico de autores como John Dewey (1859-1952) e às teorias pedagógicas reconstrucionistas sociais em geral; “Permanência e mudança”, que se fundamenta na abordagem burkeana para defender o ritmo de progresso equilibrado e o senso de continuidade que os conservadores tendem a sustentar; e “O que é ‘República’?”, em que o autor reafirma o compromisso com o casamento entre a ordem e a liberdade. A edição, enriquecida por quase 160 notas de rodapé, termina com um questionário elaborado por Bruce Frohnen, pesquisador sênior do Russell Kirk Center for Cultural Renewal, para que o leitor possa pôr à prova a própria absorção do conteúdo lido, e um posfácio novamente rico de Alex Catharino, “Breves notas sobre o conservadorismo brasileiro”, contendo judiciosa síntese de nossa própria tradição conservadora, com ênfase para os estadistas do Partido Conservador do Império brasileiro.

Em minhas demais resenhas de obras de Russell Kirk, já deixei claros os pontos em que, em certa medida, me afasto do autor; contudo, parece-me evidente que, com exceção de determinadas vertentes do liberalismo e do libertarianismo, é perfeitamente possível para significativa parcela dos liberais ler o conteúdo desta obra e concordar com pouco menos do que a integralidade. A meu juízo, ela elabora equilibrado apelo à liberdade individual e, simultaneamente, à relação da pessoa humana com seu lugar no mundo, que merece ser objeto de reflexões em toda parte, postas essas reflexões em diálogo com as aplicações específicas dos problemas humanos a cada contexto, cultura e época.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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