fbpx

Nós, o povo. Eu, o indivíduo

Print Friendly, PDF & Email

Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita…”. “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático…”. As passagens acima lhe soam familiares? Assim começam, respectivamente, os preâmbulos das Constituições dos Estados Unidos da América, de 1787, e da República Federativa do Brasil, de 1988.

Elemento presente em ambos os textos e imprescindível para a correta compreensão das estruturas de poder é a ideia de povo, hoje relegada ao imaginário e ao ostracismo popular. Quem ou o que é essa figura tão amplamente utilizada como alicerce de legitimidade da fundação desses países?Qual é o alcance semântico do vocábulo “povo”?

O jurista alemão Friedrich Müller tenta responder a essas perguntas trazendo quatro concepções (ou significados) para o signo povo. A primeira trata-o como povo ativo, ou seja, indivíduos dotados do poder de escolha ou nomeação de alguém por meio de votos, legitimador de toda assembleia constituinte e presente no preâmbulo de nossa Constituição. A segunda seria aquela outra, considerada como instância global de atribuição de legitimidade, presente no texto do artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal brasileira, quando prescreve que “todo o poder emana do povo”, trazendo a concepção de que as decisões judiciais apenas se legitimarão se compatíveis com o texto constitucional. A terceira grandeza semântica indica que povo seriam os indivíduos destinatários de prestações civilizatórias do Estado e que possuem uma pretensão de respeito aos seus direitos fundamentais em face dos atos estatais.

Não há como se negar que, no Brasil, é plenamente possível perceber a aplicação formal e conjunta desses três conceitos em nossas instituições, ainda que por razões e com intensidades diferentes durante o passar dos anos. De outro lado, também não é difícil notar que, em grande parte desses nossos primeiros 200 anos de secessão (ou independência), seria mais sensato, quiçá realista, referir-se ao povo, na prática diária do significado atribuído por relevante parcela dos brasileiros, pela quarta dimensão semântica trazida por Müller, a que o considera como ícone.

Um ícone nada mais é do que uma abstração metafórica de uma representação. Nessa dimensão de povo icônico, a referência singular do significado torna-se abstrata, remanescendo apenas sua dimensão teórica, afastada de qualquer práxis efetiva. Uma ficção carente de significado, que não diz respeito à pessoa ou coisa alguma. Conceito aparentemente próximo, mas que se mostra distante quando se tenta tangibilizá-lo.

E quanto mais abstrato e longe da concretude de significado o conceito de povo se torna, mais facilmente é utilizado para funções retóricas e demagogas de alguns poucos, mas determinantes, indivíduos que buscam entrar e se perpetuar no controle de nossas instituições. Afinal, se somos nós o povo, e todo poder é exercido pelo povo, não lhe parece incoerente que alguns poucos se utilizem deste poder para fins e benefícios pessoais?

Como tratar a causa dos problemas sociais e econômicos se sequer sabemos quem ou o que é o seu causador? A abstração dos conceitos nos afasta da verdadeira causa dos problemas, da possibilidade de atribuir responsabilidades aos verdadeiros causadores e da prevenção futura dos males atuais. E assim vivemos há 200 anos, tratando os sintomas e fechando os olhos para a causa.

É este, por exemplo, o caso da falácia do dinheiro do contribuinte, lastimavelmente tratado como dinheiro público. Pensa-se: se é público, não é de ninguém e de ninguém foi tomado. Se não é de ninguém, então posso dele me apropriar e fazer aquilo que melhor me aprouver para garantir os direitos daqueles que concretamente também não sei exatamente quem são, ou seja, o povo.

Enfim, povo nada mais é do que a somatória de indivíduos existentes em uma determinada cultura ou nação, detentores de direitos invioláveis e intransponíveis por terceiros. Indivíduos estes que devem ser tratados em sua completude como finalidade última de qualquer Estado de Direito.

Aliás, o princípio fundamental de um Estado de Direito é a ideia de que nenhum indivíduo, partido ou regime podem ser árbitros subjetivos da Constituição e das leis, devendo todos serem tratados igualitariamente perante elas. Um Estado de Direito deve, acima de tudo, garantir que as instituições que formam o governo – leis, agências e agentes – atuem para proteger os indivíduos e seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade, à propriedade e à busca da felicidade.

Quando uma Corte Suprema de Justiça decide calar vozes desagradáveis da discordância; quando um Poder Executivo propõe aumentar o salário de seus procuradores em 74%, enquanto o de seus professores em 6% (para um mesmo período inflacionário); ou, ainda, quando um Poder Legislativo aprova e um Executivo sanciona o repasse de 4,9 bilhões de reais para fins puramente eleitoreiros, retirados forçadamente da propriedade do povo, então não pairam dúvidas de que ainda não somos independentes como indivíduos.

Convivemos permeados pela ideia de uma responsabilidade social que suprime a responsabilidade individual. Do “nós sobre o eu”. Do “um por todos e todos por todos”. Nesse cenário os grandes culpados, escondidos atrás da capa da invisibilidade da coletividade, são exaltados pela política do “rouba, mas faz” e, ainda mais surpreendente, são ajudados por isso.

Como nos alertou Donald Stewart Júnior, no Brasil, a ideologia intervencionista que quase sempre nos dominou é sustentada, dentre outros, pelos empresários poderosos que não querem correr o risco de mercado; pelos socialistas que idolatram o Estado; pelos políticos populistas que usam o Estado para dar consequência à sua demagogia; pelos burocratas das estatais que não querem perder suas vantagens e mordomias; e por todos aqueles que, enfim, sensíveis às necessidades do povo, defendem a atuação do Estado provedor sobre os direitos do indivíduo.

Esses se esquecem, contudo, de que a liberdade de todos é formada pela liberdade de cada um. Tal qual nos ensina Ayn Rand, a menor minoria na Terra é o indivíduo e todos aqueles que negam os direitos individuais não podem se dizer defensores de minoria alguma. Acaso não respeitados os direitos individuais, qualquer nação constituída sob as bases de um Estado Democrático de Direito poderá se tornar apenas uma ditadura da maioria, sem que as pessoas sequer se atentem a isso.

Há 200 anos, nos tornamos um Estado soberano, independente de Portugal. Contudo, mesmo após dois séculos, ainda não nos tornamos independentes do Estado. Se podemos dizer que possuímos, ao menos formalmente, um país livre, soberano e dono do seu próprio destino, ainda não podemos dizer o mesmo sobre nós mesmos.

Há o Brasil daqueles que se foram embora para Pasárgada e lá vivem, onde são amigos do rei, com o parceiro que querem, na cama que escolhem. E há o Brasil daqueles que construíram e constroem uma nação livre e soberana, mas que são forçados a sustentarem Pasárgada através da ilegítima espoliação daquilo que lhe pertence, fruto do afinco de seu trabalho. Os primeiros, destruidores de valor e de valores; os segundos, virtuosos pela essência de seus labores.  

Quando Dom Pedro I passou pelo campo do Ipiranga, em 1822, e lá quisera dar voz, num brado retumbante, a um processo de secessão que ainda se arrastaria por algum tempo, dificilmente imaginou que 200 anos depois não teríamos apenas um, mas vários pretensos imperadores no Brasil, cada qual desejando reinar sobre suas próprias interpretações das regras e dos direitos. Do Sol que no horizonte de 1822 raiou a liberdade, jaz agora pelo Brasil a outrora ideia de pátria livre, permanecendo o temor servil. Até quando?

Até entendermos que não devemos servir ao governo e, sim, ser por ele servidos. Que Estado algum deve estar acima do indivíduo e que aquele existe apenas para assegurar o direito deste de contratar, de adquirir, usar, gozar e fruir da sua propriedade, daquilo que construiu ou criou, de ir e vir, de se expressar livremente, de defender a própria vida e de, enfim, buscar a própria felicidade da forma que melhor lhe aprouver.

Então, a você que produz, cria, transforma e trabalha de forma honesta, sem prejudicar direitos alheios, sempre que lhe oferecerem uma passagem para aquela Pasárgada do amigo do rei, incapaz de se sustentar com as próprias pernas, diga ao povo que você fica, não apenas pela felicidade geral da nação (e infelicidade de alguns) mas, principalmente, pela sua própria felicidade e daqueles que você ama. Brade que fica nesta nação que lhe pertence e aja de forma a não mais permitir que os próximos 200 anos sejam governados pelos moradores do Brasil de Pasárgada que ainda ousam se manter acima de você.

*Vander Giuberti – Associado Alumni do Instituto Líderes do Amanhã. 

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Instituto Liberal

Instituto Liberal

O Instituto Liberal é uma instituição sem fins lucrativos voltada para a pesquisa, produção e divulgação de idéias, teorias e conceitos que revelam as vantagens de uma sociedade organizada com base em uma ordem liberal.

Pular para o conteúdo