Dois pesos e duas medidas

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Quando José Roberto Batochio sustentou o caso de Lula perante o Supremo Tribunal Federal, ele criticou, duramente, o comportamento de ignorar as garantias constitucionais. Veja-se a contundência de suas palavras:

“Senhores ministros, os jornais de ontem de todo o planeta publicaram a prisão do ex-presidente Nicolas Sarkozy, da França. Esta prisão teria ocorrido para que os agentes do Estado, encarregados da investigação criminal, pudessem ouvir aquele que foi por duas vezes presidente da República — que no passado foi modelar, e, através do iluminismo, exportou liberdade e democracia para o mundo — para que ele pudesse ser ouvido em um inquérito, numa indagação que versava sobre recursos de contribuição de campanha.

Dei-me, então, conta de que esta maré montante de autoritarismo que se hospeda em determinados setores da burocracia estável do Estado não é um fenômeno que ocorre apenas em território brasileiro. Preocupantemente, isto está sucedendo em todo o planeta.  

Na França, não se pode conhecer o conteúdo das investigações nem o investigado e nem os seus representantes. Na Itália, o processo penal está sofrendo um recrudescimento como nunca antes visto. Isso me preocupa porque, a continuarem as coisas como vão, eu não sei qual é o futuro que nos aguarda. Se ele for assim, confesso aos senhores que eu não tenho nenhum interesse em conhecê-lo, porque, como disse José Bonifácio, a liberdade e os princípios libertários são uma coisa que não se perde se não com a vida. É impossível viver em um sistema que não seja um sistema de liberdades.

Inspirado por este acontecimento de ontem, decidi começar essa peroração trazendo a vossa excelência as palavras ditas por Chrétien Guillaume de Lamoignon de Malesherbes, que foi um grande jurista francês e advogado de Luís XVI no julgamento que o conduziu à bastilha e à guilhotina. Tinha sido ministro do rei e foi o seu advogado, sabia que ia ter de enfrentar a opinião pública e os jacobinos sedentos de sangue e punição a qualquer preço. Ele começou a defesa de Luís XVI, perante a corte francesa, dizendo o seguinte: “Trago à convenção a verdade e a minha cabeça. Poderão dispor da segunda, mas só depois de ouvir a primeira” [o advogado citou a fala originalmente em francês]. Eu aqui trago a vossa excelência também duas coisas. São dois preceitos do nosso ordenamento jurídico democrático.”[1]

A verve da tribuna foi inflamada – como, aliás, ela deve ser –; o Dr. Batochio, nitidamente, colocou o Supremo Tribunal Federal em julgamento pelos seus atos, que, de acordo com a sustentação, tinham um quê de autoritários. Lembro-me de que houve uma pequena argumentação na qual Batochio citou o fato de o ministro Barroso ter defendido uma tese contrária enquanto advogado. Em todo caso, o importante foi que todos os ministros elogiaram e teceram loas à sua sustentação. Tudo isso ocorreu em 2018. No ano seguinte, foi criado o Inquérito nº 4.781/DF – apelidado, pelo ministro Marco Aurélio de “Inquérito do fim do mundo”.

Pois bem. Agora, vamos avançar no tempo para 2024. Recentemente, Elon Musk teceu críticas à condução desse inquérito. Pode-se admoestar tudo, a pessoa de Musk, a forma das críticas e o comportamento agressivo do empresário. Pode-se até dizer – como vimos na grande mídia – que um estrangeiro não pode falar sobre nossas instituições. Todos os questionamentos, per se, são válidos. A sociedade só progride graças à dialética; são teses e antíteses, sucessivamente, que ocorrem graças à liberdade de expressão.

Após as críticas de Musk, o ministro Alexandre de Moraes resolveu incluir o empresário no Inquérito nº 4.781/DF. O editorial do Estadão do dia 09/04/2024 criticou a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, de investigar Elon Musk por críticas (opiniões) feitas à corte, enquadrando-o em um inquérito sobre “milícias digitais”. Comparando Moraes à Rainha de Copas, uma alusão alegórica ao autoritarismo, o texto argumenta que a ação contra Musk é um exemplo do caráter arbitrário dos inquéritos sobre fake news e ataques digitais, que prejudicam os princípios democráticos. O editorial destaca a preocupação com a aceitação tácita dos demais ministros do STF às decisões controversas de Moraes e defende a liberdade de opinião, criticando a expansiva interpretação de crimes contra a democracia. Conclui ressaltando a necessidade de o STF ser menos proeminente em questões políticas e de a democracia ser defendida pelo estrito respeito à Constituição.

No mesmo dia, a Folha de São Paulo teve um editorial semelhante e, na véspera, Demétrio Magnoli fez ponderações firmes na Globo News, destacando que, mesmo tendo ameaçado, Musk não havia descumprido nenhuma ordem do Supremo.

Com o calor aumentando, há por óbvio uma preocupação com os funcionários do X (anteriormente Twitter) no Brasil. O próprio Musk, questionado pelo deputado Nikolas Ferreira se iria disponibilizar os documentos sobre as ordens recebidas pelo X, disse: “precisamos levar nossos funcionários no Brasil para um local seguro ou que não estejam em posição de responsabilidade, então faremos um dump (despejar) de dados”.

Pelo que se noticiou na mídia, no dia 09 de abril, representado pelo escritório Pinheiro Neto, o X Brasil pediu que as intimações para cumprimento de ordens judiciais fossem feitas diretamente à X Corp. Em uma explicação simples, a mensagem é a seguinte: o acionista majoritário nos EUA, por meio da pessoa jurídica brasileira, disse “eu estou assumindo a bronca”. Noutros termos: deixem os empregados de fora.

É uma atitude nobre. Qualquer um, em uma situação como essa, preferiria ficar com a proteção da pessoa jurídica brasileira. Ela seria uma barreira a mais. Inclusive, é justamente em razão de situações como essa que o artigo 5º do Código Civil trata da desconsideração da personalidade jurídica.

Talvez tenha faltado à X Corp. entrar efetivamente nos autos do Inquérito nº 4.781/DF, de modo a afastar qualquer dúvida quanto ao comportamento ético, digno e moral de tirar os funcionários da zona de conflito. Eles definitivamente não decidem o que Musk posta ou decide em relação ao X e, por essa razão, não devem sofrer as consequências.

O ministro Alexandre, diante dessa manifestação, poderia ter respondido, nesse sentido, pedindo que a X Corp se apresentasse nos autos, informando endereço eletrônico para citações e abrindo mão, por exemplo, de uma rogatória. Isso seria absolutamente dentro da normalidade. Entretanto, a resposta foi extremamente agressiva, já com ameaça de condenação em litigância de má-fé.

Nesse particular, litigância de má-fé parece inadequado se não há litígio. O inquérito não é processo litigioso. É meio de investigação, sem pretensão civil ou penal firmada. Não há lide e não há litígio, portanto é difícil falar em litigância, que dirá de má-fé. Esse parece ser o ponto. A informação ou solicitação serão apenas oportunos ou não.

São, infelizmente, dois pesos e duas medidas. Quando José Roberto Batochio colocou os atos do Supremo em julgamento em sua sustentação oral, ele recebeu loas; quando o escritório Pinheiro Neto faz uma consideração legítima, que, ao fim e ao cabo, quer tirar os funcionários e colocar o acionista majoritário na linha de frente, recebe uma ameaça de punição processual.

Não custa lembrar que as críticas de Musk foram dirigidas ao ministro Alexandre de Moraes. Logo, em princípio, ele seria parte na eventual contenda. Com relação especificamente às suas últimas decisões, não houve pedido que as justificasse, não houve citação para o contraditório nem foi oportunizada a possibilidade de exercer a ampla defesa. Termino, assim, com as palavras de Mauro Cappelleti, na obra Juízes Legisladores?: “O juiz que decidisse a controvérsia sem pedido das partes, não oferecesse à parte contrária razoável oportunidade de defesa ou se pronunciasse sobre o seu próprio litígio, embora vestindo a toga de magistrado e a si mesmo se chamando de juiz, teria na realidade cessado de sê-lo.”

[1] https://www.conjur.com.br/2018-mar-24/leia-sustentacao-oral-batochio-defesa-lula-stf/

*Artigo originalmente publicado pelo Instituto Mises Brasil. 

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Leonardo Correa

Leonardo Correa

Advogado e LLM pela University of Pennsylvania, articulista no Instituto Liberal.

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