Como a polarização e a cultura do cancelamento te deixam menos livre
“Penso, logo existo” – é como aprendemos na escola a icônica frase do filósofo francês René Descartes, que sintetiza a visão do movimento iluminista do século XVIII.
Descartes cunhou essa frase ao tentar traçar a metodologia para definir o que seria o “verdadeiro conhecimento”. Porém, a célebre frase, publicada na obra O Discurso do Método, foi originalmente assim escrita em francês: “Puisque je doute, je pense; puisque je pense, j’existe”. Em tradução livre, seria “porque duvido, penso; porque penso, existo”.
De acordo com o fundamento filosófico, ao duvidar de algo, somos obrigados a pensar, e é justamente o pensamento (ou seja, a razão) o cerne de nossa existência enquanto seres humanos. É a dúvida – e, portanto, o pensamento – que nos traz a certeza de nossa existência enquanto seres pensantes.
Essa coisa que pensa é aquilo “que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente”. Apenas somos indivíduos que pensam enquanto persistir o nosso pensamento. Cessado o pensamento, cessa o nosso próprio existir.
Entretanto, em um mundo polarizado, com opiniões radicais e politizadas, a condição de sermos livres para duvidar e discordar parece ameaçada. O mundo conspira contra a nossa autonomia de pensamento e raciocínio. As ideias difundidas trazem alta carga emocional, de modo que discordar de uma questão ou mesmo consumir determinados produtos passa a ter um forte viés político.
O debate se torna emocional quando paramos de discutir ideias e passamos a discutir pessoas. O mesmo fato, praticado por diferentes sujeitos, gera diferentes opiniões na mesma pessoa: quando praticado por aquele eleito como mártir (internamente, no imaginário de cada um) é elogiável, quando, se praticado por seu arqui-inimigo, é absolutamente criticável.
A armadilha da polarização
Uma vez polarizado o debate, todo aquele grupo assume uma posição ou opinião pré-determinada a respeito do fato. Ninguém para e pensa. Onde fica o pensamento? Onde fica nossa existência enquanto seres pensantes? Cada vez mais, e sem perceber, abrimos mão do ser e buscamos apenas pertencer.
Na história recente do Brasil, passamos por um período de graves violações à liberdade de expressão, o que fez com que, no retorno ao período democrático, houvesse uma nítida valorização à livre manifestação e também às instituições que garantem essa liberdade. Ocorre que, agora, vemos que a balança está desequilibrada, pendendo para o outro lado.
Explico: pessoas e instituições incumbidas constitucionalmente de proteger a livre manifestação, sob o argumento da necessidade de coibir a divulgação de “notícias falsas”, em nome do “bem-comum”, ou o “regime democrático” – ou qualquer outra expressão dotada de abstração suficiente para ninguém saber exatamente do que se trata (afinal, o que é real? O que é bem? Ou o que é a “vontade do povo”, na democracia?) – atacam aquelas manifestações que lhes contrariam ou vão de encontro às suas opiniões.
Cultura do cancelamento
Casos recentes de cancelamento mostram que, enquanto sociedade, estamos perdendo a capacidade de lidar até mesmo com as menores frustrações, e a própria ideia do que realmente é uma frustração foi alargada.
Alguém discordar de nossas opiniões e pensamentos passou a ser um fato grave. Ao invés de uma oportunidade de aprender, a mera divergência gera o sentimento de raiva ou desinteresse. No caminho da nossa construção enquanto sociedade livre, democrática e racional, esquecemo-nos das lições básicas dos filósofos iluministas, como a de Voltaire: “Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”.
Ao revés, fica cada vez mais em estranha moda a prática do cancelamento. Se discordo do que a pessoa fala ou se a ideia escapa à noção do politicamente correto, trato-a com todo o desrespeito possível, à base de xingamentos, excluindo-a da sociedade.
As redes sociais, nesse sentido, na mesma medida em que reduzem distância entre países e pessoas, e que nos permitem o acesso aos mais variados pensamentos, com especial ajuda do algoritmo, ajudam-nos a nos manter isolados dentro da mesma bolha de pensamentos, pessoas e perfis.
Vivemos a era do excesso de informação e, ao mesmo tempo da desinformação. Somos bombardeados com novidades todos os dias, temos de entender de cada vez mais assuntos e o volume de informação trocada no mundo cresce exponencialmente; não conseguimos acompanhar.
É difícil não sucumbir à tentação de simplesmente “pegar emprestada” a opinião do outro ou formar opinião depois de ler uma manchete e assistir somente ao início de um vídeo. Quanto mais extrema a opinião, maior sua chance de “viralizar” nas redes. Outras vezes, em prol da suposta defesa da sociedade democrática, vozes e opiniões impopulares são silenciados – poderia haver contradição maior?
Considerações finais
Pensar de maneira independente demanda tempo, disposição e muito trabalho, porque, para sermos verdadeiramente independente em nossos pensamentos e opiniões, temos de assumir nossa responsabilidade individual. Além de boa formação, em termos culturais e educacionais, pensar independente exige leitura atenta, pesquisa aprofundada e acareação das informações encontradas. O pensamento independente, para existir, carece ainda de uma formação moral sólida e alto grau de autoconhecimento.
O clichê é verdadeiro: com a liberdade, vem, também, a responsabilidade. Você está disposto a pagar o preço?
*Lívia Dalla Bernardina Abreu é Advogada e Associada II do Instituto Líderes do Amanhã.