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Mentiras em Nova Iorque: a arte Suprema de fabricar narrativas até no exterior

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Na atual degradação do cenário político, chega a ser difícil escolher a mais repulsiva dentre as imagens recentes, e sequer sabemos dizer se nossas vísceras se revolvem mais diante da recepção do ex-condenado Lula por togados supremos em êxtase, que ele parecia passar em revista antes do convescote custeado por nós[1], diante da viagem do ex-presidiário recém-eleito no luxuoso jatinho de um amigo, igualmente detido no âmbito da mesma Operação Lava-Jato[2], ou diante da turnê internacional de ministros da cúpula judiciária. Após a análise das três situações, opto pela última, inspiradora destas linhas, pois o desembarque dos magistrados em Nova Iorque e o teor de suas subsequentes “palestras” me parecem retratar os vícios mais graves que, governo após governo, maculam a nossa república desde o seu nascedouro.

O tal evento intitulado “O Brasil e o Respeito à Democracia e à Liberdade”, na verdade uma “boca livre explícita”, nas corajosas palavras de J.R. Guzzo[3], organizado e bancado pela empresa do ex-governador João Dória, com direito a hospedagem em glamouroso hotel de diária a partir de cinco dígitos, se desenrolou no nosso idioma, com apresentador e plateias brasileiros, e bem poderia ter sido realizado por aqui, ou por via remota. Porém, em mais essa ocasião protagonizada por uma elite estatal que adora visitar o mundo com fundos alheios, o “piquenique” oferecido a magistrados por um grupo empresarial, além de configurar prática vedada, descortina conexões promíscuas entre atores do mercado e altos funcionários públicos que, amanhã, virão a julgar os financiadores do seu tour cuja única finalidade foi louvar a nossa estrutura judiciária e a democracia supostamente “consolidada” por esta.

Após deixarem o hotel sob inflamadas vaias e acusações de “bandidos”, “vagabundos” e outros termos bem mais pejorativos proferidos por manifestantes que, em terra estrangeira, não poderiam ser censurados, os togados viveram seus instantes de celebridade e foram, diante de um público restrito de bajuladores, pronunciar as suas verdades. Ou mentiras, dependendo do grau de liberdade almejado pelo ouvinte.

Logo no início, Alexandre de Moraes, após um inapropriado comentário, nada institucional, pois revelador de sua preferência por um certo ex-presidente, que teria “permanecido pouco tempo” no poder, retomou o seu fetiche em torno do tal combate, tanto por parte do Judiciário quanto do Legislativo, à desinformação e aos discursos de ódio nas redes[4]. Sugeriu à plateia uma comparação com eventuais manifestações de teor agressivo no interior de empresas privadas, observação, aliás, comunicada de modo tão canhestro que, por mais que a tenha ouvido repetidas vezes, não entendi se ele se referia a campanhas difamatórias dentro de uma corporação, seja por empregados, gerentes ou acionistas, ou a políticas de denegrimento de imagem por parte da concorrência. Seja como for, a analogia não poderia ter sido mais absurda, já que entidades privadas carecem do poder, exclusivo dos braços estatais, de exercer coerção legítima sobre conduta alheia. Mais uma entre inúmeras falhas de raciocínio de Moraes, que vêm sendo frequentemente abordadas aqui.

Em sua defesa aguerrida da regulamentação do ambiente digital, o ministro alude aos seus paradigmas mundo afora, que seriam alguns estudos desenvolvidos pela União Europeia e pelos EUA sobre o tema. Ora, um magistrado que, diante da inexistência de uma legislação específica, ancora seus argumentos em meras pesquisas desmoraliza sua própria fala e reconhece implicitamente que nenhum país civilizado incorreu na insanidade de cercear a liberdade de expressão nas redes. Até porque, longe do que tenta fazer parecer Moraes, o direito penal não é alheio aos crimes efetivamente praticados pela via digital, contemplando, nesses casos, a possibilidade de punição de responsáveis por eventuais lesões à honra que venham a ser suscitadas pelos ofendidos. Isso sem falar nos crimes de homicídio, lesão corporal ou ameaça, cuja prática, ainda que em sua modalidade de tentativa, sempre foi punida por nossa legislação criminal.

As manifestações opinativas irrestritas são inerentes ao regime democrático, não cabendo a autoridades de qualquer espécie a emissão de juízos de valor para fins de censura do seu teor. Afinal, sendo, por definição, o espaço de institucionalização de conflitos e de tolerância aos intolerantes, o regime democrático confere ampla voz a todos, e não apenas àqueles que os togados entendam serem “bons democratas”, como tantas vezes discutido aqui no tocante à mordaça a jornalistas, formadores de opinião, produtoras e até políticos.

Já Dias Toffoli, outro togado responsável pela censura à Revista Crusoé, por inadmitir a delação de Sergio Cabral que o alvejava em cheio[5], e por diversas outras práticas não esperadas de um magistrado no Estado de Direito, dedicou seus minutos de fala a louvar a ciência e a “imprensa séria” durante a pandemia, e a conclamar as pessoas à “defesa da verdade factual”. Como se a gestão de uma crise sanitária coubesse ao Judiciário, e como se alguém que abusa do poder de sua caneta para impedir a veiculação de uma publicação soubesse lidar com a verdade em sentido amplo, tanto a sua própria quanto a de seus críticos…

Por sua vez, Barroso, visto, durante essa temporada novaiorquina, em um jantar com o advogado de Lula cujas condenações anulou[6], sustentou que o STF não teria “lado político, mas apenas o da democracia e o das instituições”. Não desperdiçarei linhas sobre episódios protagonizados por ele e discutidos aqui[7],[8], onde comentava suas facetas como prosélito e magistrado indevidamente inclinado a legislar, sempre que se vê diante da mínima chance para tanto. Aliás, Barroso, em suas miniférias patrocinadas por empresários, foi indagado por um cidadão, em tom respeitoso, sobre o momento de apresentação do código-fonte das urnas às Forças Armadas, ao que o tão democrático juiz supremo respondeu apenas “perdeu, mané; não amola[9], demonstrando, assim, um decoro e uma capacidade de diálogo singulares.

Ao tomar a palavra, Lewandowski louvou diversos marcos regulatórios no país, dentre os quais a lei de responsabilidade fiscal, a minirreforma trabalhista e, em particular, a Constituição Brasileira, que seria, a seu ver, o “maior de todos os marcos”. Trata-se, sem dúvida, da nossa lei maior, que esse magistrado, porém, tem se esmerado em desrespeitar amiúde, pelo menos desde sua icônica decisão sobre a elegibilidade da então defenestrada Dilma Roussef, como debatido em texto recente[10].

Por fim, Gilmar Mendes, o togado que se notabilizou sobremaneira após rejeitar o pedido de cassação da chapa Dilma-Temer apesar de abundância de provas, mas em nome de uma suposta integridade da nossa democracia[11], teceu elogios à nossa institucionalidade e não poupou críticas à postura, de parte da sociedade, de “questionar o exercício jurisdicional do Supremo e do TSE”, o que denotaria, a seu ver, um “estado de dissonância cognitiva”. Eis, aí, mais um magistrado ávido por aparições midiáticas, que descumpre o seu dever de ofício de manifestar-se apenas nos autos de litígios, ressalvada a atuação acadêmica, o que está bem longe de ser o caso do evento promovido nos EUA. Deixa a toga de lado para tornar-se dublê de sociólogo ou até de psiquiatra, tudo para tentar desacreditar os grupos sociais que exercem seu legítimo e inalienável direito ao questionamento, e fazer valer a sua verdade, única e indiscutível.

Na mitologia nórdica, a tribo de anões ferreiros Nibelungos, criaturas mesquinhas do mundo ínfero cujo líder havia conseguido a posse do ouro do Reno por meios fraudulentos, desenvolveu, na arte da aciaria, duas invenções notáveis. A primeira foi o conhecido Anel, que outorgava a seu detentor poderes absolutos sobre todas as demais criaturas, enquanto a segunda consistiu no Elmo, cujo titular era capaz de se desfigurar e assumir qualquer outra feição que desejasse. Assim, os tesouros Nibelungos não apenas investiam o seu possuidor de uma voz de mando incontrolável sobre os demais, como também lhe permitia renunciar à sua figura, aos seus traços característicos e à sua persona para se transfigurar em outra, conforme suas conveniências. Poder sem freios e disfarce da própria natureza, binômio que marca a trágica saga da tetralogia wagneriana O Anel do Nibelungo de muitas aniquilações e perdas, rumo ao crepúsculo de todo um universo fundado sobre o estelionato inicial.

Na rotina da elite do nosso Judiciário, temos visto certas canetas investirem seus titulares de poderes tão ilimitados quanto aqueles conferidos pelo Anel, assim como frequentes falas de togados, como as proferidas em Nova Iorque, servirem de narrativa perfeita para a transmutação de seu feitio autoritário em defesa heroica da democracia. O que falta para a consumação do enredo catastrófico?

[1] https://www.youtube.com/watch?v=WRGpS1bP7mc

[2]https://www.poder360.com.br/governo/junior-da-qualicorp-leva-lula-ao-egito-de-carona-em-jato-privado/

[3] https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/jr-guzzo/ministros-do-stf-passam-vexame-em-nova-york-e-nao-podiam-calar-ninguem/

[4] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/em-nova-york-moraes-fala-que-democracia-brasileira-esta-sendo-corroida-pela-desinformacao/

[5] https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-28/com-voto-do-proprio-toffoli-stf-anula-delacao-de-cabral-que-colocaria-o-ministro-na-mira-da-pf.html

[6] https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/barroso-janta-com-advogado-de-lula-em-restaurante-de-nova-iorque-1.923054

[7] https://www.institutoliberal.org.br/blog/ministro-do-stf-em-harvard-o-proselito-veste-uma-suprema-toga/

[8] https://www.institutoliberal.org.br/blog/o-togado-compassivo-e-suas-falacias-economicas/

[9] https://oantagonista.uol.com.br/brasil/perdeu-mane-nao-amola-diz-barroso-a-manifestante-em-nova-york/

[10] https://www.institutoliberal.org.br/blog/togados-superiores-fatores-determinantes-do-nosso-sinistro-eleitoral/

[11] https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2017/06/09/interna_internacional,875526/com-voto-de-gilmar-mendes-tse-rejeita-cassacao-da-chapa-dilma-temer.shtml

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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