Maus ventos que sopram da Mãe Rússia

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O levantamento de suspeitas acerca da morte do opositor russo Boris Nemtsov, que havia dito temer por sua vida em razão das críticas que fez ao conflito na Ucrânia, não chega a ser uma surpresa, tampouco um evento isolado. Mesmo após o fim oficial da União Soviética, abundam evidências de que a situação da desejada “democracia”, naquele verdadeiro colosso que é a Rússia, não anda muito boa.

Em notícia de O Globo de 23 de novembro passado, medidas excessivas de regulação da Internet e das atividades artísticas foram relatadas, numa escalada repressiva do governo do ex-membro da KGB – ou não; como se costuma dizer, uma vez KGB, sempre KGB. A retórica nacionalista e “anti-Ocidente” também marca presença, de forma cada vez mais explícita e confessada.

Falamos de um país, para começo de conversa, que iniciou sua história de concentração de poderes com o czarado e as monarquias absolutistas, cuja continuidade foi interrompida com a Revolução Russa de 1917 para que se pusesse em seu lugar… O totalitarismo soviético! As ideias liberais e democráticas parecem jamais ter apresentado presença consistente na história russa; os brasileiros nos queixamos, e acertadamente, de nossa situação atual e da sucessão de governos coletivistas e intervencionistas que acumulamos em nossa história republicana, mas a grande verdade – se isto servir de consolo – é que, nesse particular, estamos e sempre estivemos numa situação melhor do que a do grande país a Oriente. Desde a formação e desenvolvimento de nossa monarquia, figuras como José Bonifácio e Joaquim Nabuco já sustentavam princípios estruturalmente liberais e constitucionais, e o impacto do liberalismo faz eco também na República, por meio de figuras como Rui Barbosa, Roberto Campos, Carlos Lacerda, entre outras. Ideias de mercado, Estado de Direito, separação de poderes, mesmo que de forma irregular e profundamente comprometida em diversos aspectos, fazem parte de nossa trajetória de pensamento como nação. Um país que perfaz quase toda a sua história com governos monárquicos absolutistas e uma longa ditadura comunista assassina e expansionista está, naturalmente, em situação mais complicada a esse respeito. Considerando o peso que a Rússia teve e tem no concerto dos países, as implicações disso são muito sérias.

Nada, entretanto, me deixou mais estupefato do que fazer uma observação geral da configuração ideológico-partidária do quadro político local. Essa herança estatizante e de pouco respeito aos limites de poder marca presença, em maior ou menor medida, em quase todos os partidos! O legado das aspirações ocidentais e capitalistas que surgiram na década de 90, imediatamente após o fim da União Soviética – aspirações essas que foram alvo de polêmica interna e ingrediente para conflitos dolorosos, como a crise constitucional de 1993, ao tempo de Boris Ieltsin -, é verdade, permanece representado. Há a SPS (em inglês, Union of the Right Forces), que, desde 2011, deixou de ser um partido político e se tornou apenas uma associação pública, filiada à International Democratic Union (IDU). Alguns partidos menores, vinculados a esses ideais, estão distribuídos nos parlamentos regionais.

Porém, observando as legendas mais amplamente representativas no Parlamento federal, a Duma, ficam bem claros os motivos de minha preocupação; o cenário interno daquele país é tão sério, que achei por bem fazer um resumo que desperte a atenção dos leitores para esse problema. O maior partido na Duma é o Rússia Unida (em português), a sigla de Putin. Não é uma legenda que se defina muito claramente em termos ideológicos, sendo apresentada até como uma vertente que preza pelo equilíbrio e o pragmatismo. O que demonstra a gestão autoritária do presidente, que deixou o mundo em alerta, é algo bem diferente do discurso oficial. A personalidade de Putin parece ser a de alguém que manipula todas as peças a seu dispor para conservar e aprimorar o poder, inclusive fazendo uso de um poderoso marketing que procura passar uma imagem imponente e altiva do líder. Neste momento, ganha voz uma estranha síntese entre uma espécie de “conservadorismo religioso”, a partir da vinculação direta com a Igreja Ortodoxa Russa, e uma concepção de Estado centralizadora e avessa ao liberalismo. Essa mistura consegue sustentação teórica no pensamento de Alexandr Dugin, um intelectual de fortes relações com a elite política. Dugin propõe o que chama de “Eurasianismo”; seu discurso é o de que os pensares políticos clássicos, como liberalismo, socialismo e fascismo, estariam ultrapassados, e seria necessária uma nova configuração que defenderia, fundamentalmente, a manutenção das tradições regionais, numa plataforma de oposição a uma suposta ameaça imperialista cultural americana. Na prática, como fica claro, por exemplo, em seu debate com o pensador brasileiro Olavo de Carvalho (publicado em português sob o título “Os EUA e a Nova Ordem Mundial”), a doutrina de Dugin é um fascismo mal disfarçado, que já angariou adeptos e simpatizantes por aqui. Aliás, essa questão nos afeta diretamente, tendo em vista as articulações do Brasil dentro dos BRICS, e as referências de Dugin ao país, como tendo um campo cultural distinto do restante do Ocidente e apresentando possibilidades interessantes de articulação com seus delírios geopolíticos. Essas ideias são especialmente perigosas porque têm apelo, em alguma medida, tanto para personalidades oriundas do socialismo – que se identificam com seu antiamericanismo -, quanto para personalidades mais identificadas com um certo  viés “moralmente tradicionalista” em dose equivocada e intrusiva, prontas a aplaudir um político apenas por tomar medidas que sinalizem para uma repressão aos homossexuais e à “defesa de valores cristãos”. Muito que bem, mas a que preço? Parece o tipo de dilema vivido na Europa, em que certos partidos nacionalistas e intervencionistas ganham peso por sustentarem uma agenda moralmente contrária aos projetos da Nova Esquerda, do feminismo e do multiculturalismo radical e inconsequente, mas cuja alternativa não é, a meu ver, realmente desejável. Lembremo-nos: os fascistas clássicos eram anticomunistas. Para deter o socialismo, eles seriam opção?

O segundo maior partido da Federação Russa é o… Partido Comunista! Isso mesmo. Lembrando muito certas “lenga-lengas” latino-americanas, a legenda nefasta se apresenta como a opção para concretizar um “socialismo do século XXI”, ainda inspirado nas lições marxistas-leninistas que protagonizaram tantas tragédias por aquelas paragens – e ali como em quase nenhum outro lugar. Em essência, tanto o Partido Comunista quanto Putin apelam a um sentimento nostálgico de um suposto passado glorioso em que a União Soviética dividia o poder no mundo com os EUA – mas retomamos, a que preço? Sabemos as consequências deploráveis dessas inclinações. A história já as desnudou.

O mesmo ufanismo cego aparece na terceira legenda, curiosamente designada “Partido Liberal-Democrático da Rússia”. O nome, atualmente, entra em choque profundo com a sua realidade prática: nacionalista, considera as reformas capitalistas dos anos 90 um avanço do “capitalismo selvagem” e ecoa a ideia de que as “pretensões imperialistas ocidentais” representam um perigo à “glória da Rússia”. O quarto partido na Duma, finalmente, a “Rússia Justa”, é declaradamente social democrata, embora também use a patética expressão “novo socialismo do século XXI”.

Eurasianistas, membros da KGB, comunistas, nacionalistas extremados e, incrivelmente menos mal, social democratas. Esse é o perfil dominante no espectro político? Não é surpresa que maus ventos estejam soprando de lá. Sendo esse um país enorme e decisivamente relevante, deve ser alvo da mais cuidadosa observação e preocupação de todos nós, na medida em que fornece mostras preocupantes e apimentadas da sua fragilidade democrática. Um amigo disse certa vez que a Rússia, dado esse quadro, poderia ser vista como uma “bomba-relógio”. Os amantes da liberdade em todo o mundo esperam que ela não exploda.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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