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Liberalismo militar: qual o papel das forças armadas na defesa da democracia?

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As Forças Armadas são organizações inerentemente hierárquicas, baseadas numa cadeia de comando onde a lealdade e a obediência são virtudes fundamentais. Como exatamente esse modelo pode ser compatível com uma democracia igualitária? Pode o militarismo servir à democracia, mesmo sendo em sua essência o oposto? Há um papel para os militares fortalecerem as democracias fora de casa também? E como fica essa função numa época em que imagens chocantes da guerra correm o mundo instantaneamente?

Essas são algumas questões interessantes que Victor Davis Hanson aborda em uma parte de seu livro The Father of Us All, em que traça um histórico das guerras antigas e modernas. No meio militar, não há oportunidade para decisões por maioria (um soldado, um voto), o que seria fatal. O processo decisório não é pela maioria. Quando as balas são disparadas, há pouco tempo para avaliar questões mais abrangentes ou abstratas, tais como “justiça”. Impaciência, audácia, resolução: essas são qualidades necessárias no mundo militar que legisladores e burocratas não necessariamente apreciam.

Mas as democracias, para sobreviver, dependem dos militares. Sempre haverá inimigos externos ameaçando a liberdade dos povos mais avançados. Ainda assim, democracias costumam ter um relacionamento ambíguo com seus militares, pois sempre temem que o militarismo permeie a sociedade civil, uma preocupação constante de que o culto às armas transcenda o campo de batalha e se torne uma ideologia que celebra o poder, a disciplina rígida, ou uma devoção fanática a alguma causa. Se para os militares é crucial um grau de coesão e coletivismo, nas democracias isso pode ser perigoso.

Quando militares resolvem se meter na política, então, o resultado costuma ser algum golpe anticonstitucional, em vez de o fortalecimento de instituições republicanas ou democráticas. Isso não quer dizer que, de tempos em tempos, especialmente em meio ao caos, militares não tenham interferido no processo social para resgatar a ordem e impor obediência com algum sucesso. Mas costuma ser temporário. Historicamente, há vários casos, desde quando Júlio César cruzou o Rubicão.

Ainda assim, seria injustiça demonizar os militares. Há uma tradição menos lembrada, que Hanson chama de “liberalismo militar”, quando militares permitiram ou facilitaram a criação de governos livres. É o caso dos militares americanos, especialmente durante e depois da Segunda Guerra. Na Coreia, na Sérvia, no Japão e na Alemanha os militares americanos atuaram para fortalecer regimes democráticos, não o contrário. É raro pensar em países livres que, de fato, não nasceram de guerras, e a própria América é um ótimo exemplo.

Com frequência esquecemos, no conforto da civilização, que inimigos mortais da liberdade, como o nazismo, o comunismo, o fascismo, a escravidão e o militarismo japonês, foram todos derrotados graças ao uso da força dos militares. Não foi a diplomacia, a conversa, o amor ou as passeatas com pombas pela paz que impediram o avanço desses regimes malignos, e sim homens fardados carregando armas e lutando pela liberdade.

Esses militares democráticos sentem que estão participando de uma luta justa contra tais inimigos e estão imbuídos de uma lógica moral de que há uma inconsistência ética quando se protege a democracia em casa enquanto a enfraquece mundo afora. Por isso é tão controverso para os militares quando, em nome do realpolitik, as Forças Armadas precisam ajudar e treinar grupos autocráticos, antidemocráticos, para derrotar um inimigo considerado ainda pior. Há vários exemplos históricos, como com Pinochet, no Irã, na Nicarágua, ou mesmo bin Laden, sem falar da aliança com os soviéticos para derrotar Hitler.

Guerra costuma ser não a escolha entre o bom e o ruim, e sim entre o ruim e o ainda pior. Não obstante, os militares de países democráticos sentem que o certo é sempre lutar para avançar com a agenda liberal em países dominados por regimes autoritários. Em suma, diz Hanson, enquanto as democracias se preocupam com oficiais de direita tomando o controle do governo civil, mais comum será os oficiais de direita seguirem as agendas civis para promover, em vez de destruir, governos constitucionais no exterior. Enquanto políticos promovem tal agenda por idealismo ou cálculo político, muitos militares sabem, no fundo, que mais democracias no resto do mundo significa mais segurança interna, e menos chance de guerras, uma vez que democracias raramente declaram guerra a outras democracias.

Mesmo assim, fica cada vez mais complicado para os militares terem apoio popular e vencer as guerras ao mesmo tempo, já que para vencê-las é necessário impor um grau de violência e destruição que dificilmente terá aprovação na era da internet. Como seria a Segunda Guerra hoje, com o Facebook? Truman teria autorizado o lançamento das bombas atômicas, que finalmente convenceram os fanáticos japoneses de sua inevitável derrota, após batalhas suicidas com milhares de mortes, como em Okinawa? As imagens comoventes de mortos geram imediata reação, e os civis acabam demandando o impossível: uma vitória sem a inexorável sujeira da guerra.

Nos países democráticos, a pressão pode se tornar insuportável, o que coloca os militares num dilema claro: arriscam mais vidas e até a vitória para causar o menor dano possível no inimigo, ainda que ele esteja disposto a uma “guerra total”, sem código de honra, sem qualquer respeito a princípios mais elevados. A guerra assimétrica ocorre quando um lado precisa respeitar a sensibilidade de seus eleitores e seus valores morais, enquanto o outro está disposto a sacrificar seu próprio povo, suas crianças!, em nome da vitória, causando o maior dano possível no adversário. Eis como Hanson resume a questão:

Numa era de comunicações globalizadas e populações confortáveis, é muito difícil reunir apoio para um nível de violência suficiente para levar as guerras a suas conclusões completas – isto é, derrotar o inimigo e humilhar suas forças armadas a tal ponto que ele se submeta aos ditames da paz. 

Os militares democráticos não conseguem mais, como consequência, acabar com regimes autoritários para promover a democracia. Optam por ataques pontuais, que matam lideranças do regime inimigo, mas dificilmente vão empreender uma guerra nas proporções necessárias para colocar fim ao velho regime e ajudar a construir um novo, mais livre. O nível de mortes – de ambos os lados – que historicamente foram necessárias para vitórias efetivas não é mais tolerável pelas democracias confortáveis.

Ficou mais desafiador – se não impossível – usar os recursos militares para construir democracias. A solução encontrada para o Japão e a Alemanha, ambos atualmente países prósperos e relativamente livres, não parece disponível para a bagunça no Oriente Médio, com o dinheiro do petróleo, o fundamentalismo islâmico e a provável posse de armas nucleares, sem falar da internet.

Para piorar, a culpa incutida nos próprios ocidentais por “intelectuais” de esquerda faz com que enxerguem o legado de seus militares não com o orgulho que deveriam, mas como uma sequência de atos violentos infundados e mortes desnecessárias, além de erros terríveis que justificariam o próprio terrorismo atual. Tamanha inversão coloca os militares na defensiva, tendo que enfrentar não só inimigos mortais lá fora, mas a campanha difamatória do lado de dentro.

Mas nem tudo precisa levar ao pessimismo ou ao desespero. Como o próprio Hanson recorda,

A longa história da civilização ocidental – a guerra persa, as guerras púnicas, as guerras napoleônicas, as guerras mundiais I e II, a guerra fria – muitas vezes sugere que os povos livres, se lentos para enfrentar os inimigos no horizonte, têm podido, entretanto, com mais frequência do que o contrário, derrotar seus inimigos autocráticos. É por isso que hoje o Ocidente é definido por governos consensuais em vez de algo mais parecido com os modos de governo napoleônicos, hitlerianos ou stalinistas que combinavam a ciência ocidental com a autocracia. 

Quando se falar de Ocidente, não se pode ignorar que os inimigos não vêm só de fora, mas muitas vezes de dentro. Vários países europeus viveram em guerras eternas, por exemplo. Mas, até aqui, os que lutavam por liberdade foram capazes de sobreviver, via de regra. Não há garantias, e sem dúvida em nada ajuda demonizar os militares como antagônicos à democracia.

Também será preciso uma dose de realismo, para se compreender que há um trade-off entre liberdade individual e capacidade militar. Calibrar esse equilíbrio é fundamental para não destruir a própria liberdade, mas também para não enfraquecer nossos instrumentos de defesa. O dilema gerado com o Patriot Act é um ótimo exemplo das decisões delicadas à frente, assim como a manutenção da prisão de terroristas em Guantánamo, em Cuba, ou o uso de tortura para obter informações que podem salvar inúmeras vidas inocentes. Não há resposta simples e fácil para esses temas.

Por fim, e talvez o ponto mais importante: será imprescindível atacar a “equivalência moral” imposta pela narrativa do multiculturalismo, como se todos fossem iguais, como se não existisse uma civilização melhor e mais avançada, e bárbaros que pretendem destruí-la, como se simplesmente falar em “eixo do mal” fosse paranoia de um cowboy maluco. Se os civis sequer sabem que existe o certo e o errado, como querem os pós-modernos, então como seus militares poderão lutar e morrer para defender a democracia, a liberdade, o lado certo?

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Rodrigo Constantino

Rodrigo Constantino

Presidente do Conselho do Instituto Liberal e membro-fundador do Instituto Millenium (IMIL). Rodrigo Constantino atua no setor financeiro desde 1997. Formado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), com MBA de Finanças pelo IBMEC. Constantino foi colunista da Veja e é colunista de importantes meios de comunicação brasileiros como os jornais “Valor Econômico” e “O Globo”. Conquistou o Prêmio Libertas no XXII Fórum da Liberdade, realizado em 2009. Tem vários livros publicados, entre eles: "Privatize Já!" e "Esquerda Caviar".

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