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Hermenêutica da baioneta ou baioneta na hermenêutica?

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Quando me preparava para preencher essas linhas com propostas voltadas para uma participação popular mais efetiva na tomada de decisões políticas, eis que uma nova manifestação histriônica de um supremo togado me tomou de assalto e me forçou a redirecionar o curso dos meus dedos e dos meus pensamentos. Redirecionamento ma non troppo, pois todo o desenrolar das ideias segue girando em torno da dicotomia entre a realidade do autoritarismo crescente e o legítimo anseio de indivíduos livres de assumirem o protagonismo na condução dos assuntos pertinentes à coletividade por eles formada.

Em entrevista recente para o canal esquerdista Brasil 247, o ministro Gilmar Mendes defendeu uma revisão do artigo 142 da Constituição sobre a organização das forças de segurança e aproveitou para tecer críticas deselegantes a uma certa interpretação do jurista Ives Gandra sobre o dispositivo. “Nós temos uma imensa responsabilidade de corrigir esses rumos. De fazer as reformas necessárias e de dizer não a esse ‘poder moderador’, seja ele escrito pelo professor Ives Gandra, seja desenhado pelo general Villas Bôas.”, afirmou um exaltado Gilmar[1]. O togado se referia ao depoimento do ex-comandante do Exército, general Freire Gomes, que, no âmbito da Operação Tempus Veritatis, havia reportado à Polícia Federal certas conversas com o então presidente Jair Bolsonaro e sua equipe sobre a possibilidade de desconsiderar o resultado das eleições, à luz da suposta tese defendida por Gandra de que às forças armadas caberia uma atribuição constitucional de “poder moderador”. Em sua “indignação” contra o teor da norma e a postura do jurista, Gilmar desferiu seu disparo final: “se vamos reescrever o 142 da Constituição, onde o professor Ives diz que leu esse poder moderador que nós não lemos, nós não aceitamos e não interpretamos assim. A hermenêutica da baioneta não cabe na Constituição.”

Em mais uma evidência de menosprezo à institucionalidade, o magistrado prejulgou assunto ainda em trâmite na corte e deu ensejo ao seu indiscutível impedimento para atuar no caso, embora certamente não venha a afastar-se da apreciação das ditas “práticas golpistas”. Não satisfeito, assumiu uma indevida postura de legislador, ávido por “reescrever” dispositivo constitucional, e ainda atentou contra a inviolabilidade de eminente advogado na sua manifestação opinativa, em nova afronta à disposição expressa da Constituição que deveria guardar[2].

Curioso é que Gilmar, tão reativo às ideias de Gandra, tenha presenciado inerte, e talvez tenha até vibrado com posicionamentos de seus pares, de hoje e de ontem, sobre uma pretensa função do Supremo como “poder moderador”. A propósito, foram textuais as palavras de seu colega, ministro Dias Toffoli, durante o 9º Fórum de Lisboa de 2021, ao decretar que o Brasil vive um “semipresidencialismo com um controle de poder moderador que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal[3].” Igualmente explícito foi o comentário de Ayres Britto para a produtora Brasil Paralelo, diante da qual o ex-togado sentenciou que “não existe um congresso supremo, um executivo supremo, mas existe um supremo tribunal federal que está acima dos outros[4].” Deduz-se daí que Gilmar não hesita em reprovar a mera interpretação de um causídico, enquanto banaliza posturas anti-institucionais dos outros e as suas próprias.

Com lastro na lei maior do país, Gandra, advogado que exerce a profissão na esfera privada, dispõe da prerrogativa de manifestar suas ideias junto a seus clientes, alunos, e a todos os demais interessados em ouvi-lo. Por sua vez, Gilmar e seus colegas supremos já se comportam como onze “poderes moderadores” de fato, pois negligenciam as principais obrigações inerentes à toga para “moderarem” as atividades dos demais poderes, à margem da legislação e pautados apenas por seus desejos. Enquanto o notável Gandra, no plano do debate teórico, interpreta o artigo 142 da Constituição como autorização a uma atuação das forças armadas na garantia da ordem pública, os juízes de cúpula, em um âmbito prático que afeta a vida de milhões de jurisdicionados, abusam de suas canetas para a promoção de rupturas diárias no sistema constitucional sob seus cuidados. Haveria mesmo algum parâmetro de comparação entre a opinião do jurista e as extrapolações dos “empoderados” togados?

Dentre os casos mais emblemáticos de disrupção na estrutura democrática, merecem “honroso” destaque as reiteradas invasões da seara legislativa por supremos magistrados. No rol dessas irregularidades, não se pode silenciar sobre as deliberações em matéria de drogas e aborto, que os togados têm avocado para si, sempre sob a justificativa de que não estariam legislando, mas simplesmente “preenchendo lacunas” deixadas pelo parlamento. Porém, em assuntos como esses, tão sensíveis para as convicções e as organizações das famílias, as decisões só poderiam ser tomadas por representantes eleitos e, ainda assim, após exaustivas séries de audiências públicas e todas as demais formas de consulta direta aos mais diversos setores da sociedade civil.

Aliás, se a Constituição vigente, dita “cidadã”, fizesse mesmo jus ao seu epíteto, ela contemplaria a possibilidade de apresentação de propostas de emendas constitucionais por iniciativa popular, e até a obrigatoriedade de referendo a todas as PECs votadas pelo parlamento. Afinal, nada mais justo que o pagador de impostos possuísse voz audível o bastante para determinar as matérias a serem inseridas na lei maior, e os termos para tanto.

No entanto, bem distante de um modelo constitucional que refletisse uma sociedade participativa na deliberação de temas relevantes para sua rotina, o que vemos, na base da pirâmide, é uma massa analfabeta ou semialfabetizada, eleitora dos eternos caciques, e, no topo da hierarquia, um parlamento pasteurizado e “homogeneizado” em suas disputas mesquinhas pelo butim de emendas milionárias e demais privilégios estatais. Diante da aterradora inércia da maioria dos nossos senhores eleitos, os potentados não-eleitos ostentam sua verdadeira faceta política, colocando-se acima dos demais para assumir as rédeas da condução da nação. Eis, enfim, concretizada a profecia do ex-ministro Ayres Britto.

Enquanto a república norte-americana, hoje a democracia mais liberal do mundo, foi fundada sobre uma Constituição cujo preâmbulo se inicia com a expressão “nós, o povo”, nossa atual Nova República nasceu a partir de uma carta política de cunho assistencialista, dirigista, repleta de privilégios, e redigida por “nós, representantes do povo brasileiro”. Não se trata de firula semântica, mas da distinção prática entre uma sociedade adepta do voto distrital, do recall e do debate livre e amplo sobre assuntos de interesse direto da comunidade e o nosso “rebanho” de indivíduos apassivados, conduzidos por figurões em sua maioria desonestos e despreparados, onde, nos últimos anos, todo o poder tem emanado de um único órgão que deveria simplesmente atuar como tribunal constitucional.

Nesse contexto de falência do sistema de freios e contrapesos, onde os poderes deixaram de exercer seus mecanismos institucionais de controle recíproco, nada mais natural e até previsível que o surgimento de monstruosidades como investigações de ofício, censura e prisões ilegais, todas tão exauridas nesse espaço. Se, em diversos períodos da nossa história, foram as baionetas que ditaram a interpretação dos dispositivos legais, hoje não mais se faz necessário o uso da força para a repressão ilegítima às liberdades individuais. Em nossos tempos de “inovações”, tornou-se possível golpear a Constituição mediante o uso de certas canetas, auxiliadas por forças policiais que assumem gradualmente as feições de uma polícia política.

Só nos resta lutar pela disseminação das ideias de liberdade e fortalecer o tecido social a ponto de podermos pronunciar, diante dos supremos juízes, a invectiva lançada pelo próprio Gilmar contra as forças armadas. Somente então, sem receio das consequências da nossa manifestação, “dizer não, vocês têm o papel que a Constituição prescreve. quando os poderes (e as partes) os chamarem e para funções muito bem delimitadas.”

[1] https://informejuridico.net/index.php/2024/03/17/para-a-brasil-247-gilmar-defende-revisao-do-artigo-142-e-detona-gandra/

[2] Art. 133 da CF – O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

[3] https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/editoriais/a-confissao-de-toffoli-supremo-poder-moderador/

[4] https://www.youtube.com/watch?v=07kpUgz9aWI

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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