Dos terrorismos aos factoides, as posturas Supremas diante da violência
Começamos o ano com uma torrente de “atos terroristas” e expressões análogas, que nos perseguiam nas manchetes do noticiário, nas vozes de âncoras televisivos e radialistas, nas inúmeras declarações de figuras públicas e nas decisões do Supremo. Por toda parte, a alusão recorrente ao “terror” como designação dos crimes de dano do 08.01 incutia, na imensa maioria da população, o pânico de derrubada de todo um sistema democrático. Na toada do discurso quase apocalíptico, nossos togados de cúpula, em união fraterna com os então restituídos ao Planalto, passaram, naquele dia, a avocar para si a condição heroica de “salvadores do Estado de Direito”, o que os teria autorizado à tomada de providências extremas, tais como prisões ilegais e censuras, tantas vezes discutidas neste espaço. Por paradoxal que seja, o elogio a medidas antidemocráticas como ferramentas para o suposto resgate democrático contaminou a grande massa, pouco informada e refém do medo.
Contudo, desde o último dia 7 de outubro, a palavra “terrorismo” e termos da mesma família vêm sendo progressivamente substituídos por “guerra”, “conflito” e demais substantivos escolhidos, a dedo, para promoverem uma equiparação artificial entre o grupo terrorista Hamas e o estado democrático de Israel. Para colocarem em pé de igualdade um bando de violadores de alvos civis e uma nação cujas forças armadas são treinadas para o combate com militares inimigos – e para traçarem a simetria falaciosa entre uma unidade política “filial” de teocracias totalitárias e um país onde são respeitados direitos individuais.
A exemplo de outras regiões afastadas da zona de beligerância, o Brasil não tardou a tomar partido e, sob a hipocrisia de uma falsa neutralidade, a “entortar” o dedo contra Israel, suavizando suas críticas às “ações” do Hamas. Conduta previsível em se tratando de um país governado pelo PT, cujo representante maior da intelligentsia diplomática prefaciou livro pró-Hamas[1], e cujos parlamentares já se orgulharam de assinar um manifesto contra a inclusão do grupo, pelo Reino Unido, na lista de organizações terroristas[2]. Assim, não causa espanto que a sigla do atual presidente tenha emitido nota oficial para condenar Israel por “realizar um genocídio contra a população de Gaza[3]”, e que o próprio Lula, sob o escudo da ONU, não ouse dar ao Hamas a designação que lhe cabe[4]. Tampouco surpreende que, sob a chancela de seus ícones políticos, militantes venham tomando as ruas de grandes capitais, em adesão à facção terrorista[5].
Em nossa cúpula togada, o silêncio impera. Aqueles que, nos últimos anos, trocaram a discrição de seus gabinetes pelas repreensões públicas e severas aos praticantes e fomentadores dos ditos “atos antidemocráticos” agora fingem não ver as adesões a um núcleo que, por meio de estupros em massa, degola de bebês e até martírio de idosos, cospe nos pilares de qualquer democracia. Os superpoderosos magistrados, que sempre zelaram pela preservação das “verdades” e pela repressão à “desinformação”, assistem impassivos à disseminação de mentiras em grandes veículos, a partir de fontes terroristas[6].
Como liberal, sigo defendendo a prerrogativa de cada indivíduo à manifestação de suas ideias, que, por mais estúpidas e até abjetas, não podem ser tolhidas por um aparato estatal. Insisto apenas em criticar, tanto à luz do direito quanto da ética, o já habitual duplo padrão togado, que se reflete em ditames arbitrários sobre quem deve ser silenciado e sobre quais as “condutas antidemocráticas” a serem castigadas.
Bem a propósito, vale mencionar o recente episódio de terror no Rio de Janeiro, onde se registrou, em um único dia, um recorde de ônibus incendiados por criminosos, em “retaliação” à operação policial que havia resultado na morte de um chefão da milícia local[7]. Sob a ótica da razoabilidade e da boa fé, não há condições de negar a índole terrorista da conduta de meliantes que privaram milhares de trabalhadores de seu meio de transporte, expuseram vidas humanas a riscos concretos e efetivamente geraram pânico junto à população civil.
Quais foram mesmo as consequências do terrorismo carioca? Esquecimento quase imediato do assunto pela grande mídia, detenção, pelo tribunal local, de apenas 3 suspeitos – uma gota no oceano da narco-milícia fluminense! -, concessão de liberdade provisória a um deles, e designação de audiência de custódia para outro[8]. Nada que se compare ao espetáculo promovido por nossa cúpula togada e seus sabujos em torno do 08.01, que, reitere-se à exaustão, acarretou a prisão, pelo próprio Supremo, e, logo no dia seguinte, de autoridades da segurança pública do Distrito Federal, e de mais de mil outros seres humanos, todos eles sem foro privilegiado, sem antecedentes criminais, e sem sequer provas de envolvimento nas depredações.
Aliás, no dia do terror orquestrado por criminosos fortemente armados contra a população carioca, o ministro Zanin fez questão de suspender a realização de concurso para a polícia militar fluminense[9], sob a alegação de que o certame contemplaria um percentual insuficiente de vagas para mulheres. No auge da inflamação da nossa já caótica segurança pública, o “neo-magistrado” priorizou seus sonhos identitários ao reforço no policiamento, em mais um escárnio de togados que parecem lançar suas canetadas de um universo bem distante daquele habitado por seus jurisdicionados.
Em meio a tantos atentados graves contra milhares de vidas, tanto no exterior quanto no país, eis que nossa cúpula togada ressuscita o “caso Roma”, envolvendo uma pseudo-agressão, jamais provada, contra o ministro Moraes e seus familiares. Como se não bastassem todos os arbítrios togados que, de tão sucessivos e “inovadores”, nos atordoam mais a cada dia, o ministro Toffoli acaba de superar todas as nossas expectativas em termos de distopias kafkianas: recusou o acesso dos acusados ao vídeo chegado da Itália e jamais periciado, e ainda nomeou seu colega Moraes como assistente de acusação[10]! Além do descabimento da figura do assistente em pleno inquérito e da inadequação do rito (pois a suposta injúria no aeroporto ensejaria ação privada, e não pública, proposta pelo MP), é bem possível que venhamos a presenciar o togado-censor no desempenho simultâneo das funções de acusador e julgador de seu próprio caso. Coincidência ou não, essa nova demonstração de poder sem limites sucedeu a conclusão da polícia italiana, segundo a qual o principal acusado teria apenas impactado levemente os óculos do filho de Moraes[11].
Ora, por que será que, aos olhos da nossa elite togada, o terror orquestrado por grupos paramilitares contra civis, seja com o fim de desestabilizar as instituições (incêndios no RJ), seja com o propósito de aniquilar um Estado (ataques do Hamas), assume pouca ou nenhuma relevância, enquanto crimes de dano praticados sem qualquer organização militar (eventos do 08.01) e até ninharias duvidosas (caso Roma) adquirem proporções de verdadeiros “assuntos de Estado”? Só se pode intuir que, para a cúpula da magistratura nacional, o primeiro tipo de violência seja, em maior ou menor grau, tolerável, enquanto o segundo constitua verdadeira abominação.
Em uma de suas famosas críticas à obra do pensador existencialista e autointitulado comunista J.P. Sartre, Raymond Aron abordou com mestria o tema da violência, e sua relativização pelo marxismo. Para Aron, um dos maiores conhecedores de Marx no século XX, não surpreendia ver seu ex-amigo Sartre glorificar a massa revolucionária na tomada da Bastilha (durante a Revolução Francesa), como ilustração da “ruptura com a passividade” e “da aurora da humanidade”. De fato, sob o prisma marxista da História vista como o desenrolar da luta de classes, a violência dita “revolucionária” encontraria plena justificativa, enquanto reação legítima ao que seria a violência “burguesa” assentada sobre as estruturas de poder, as hierarquias e as próprias leis. Afinal, para pensadores alinhados a Sartre, “a violência, destruidora da ordem, desfruta de uma espécie de privilégio moral, de superioridade de valor sobre a violência estabilizada na lei[12].”
Prossegue Aron: “sendo a violência – dominação de alguns sobre outros ou sobre a maioria – constitutiva de todo e qualquer regime econômico ou político conhecido, a negação do regime existente equivale à violência revolucionária contra a violência institucional. A violência revolucionária, por postulado, projeta um porvir não-violento, embora nada permita conferir a este postulado qualquer tipo de plausibilidade. O fascismo, também ele, partia da ubiquidade da violência para pregar aos mestres, designados pela história ou por si mesmos, a violência vitoriosa[13].”
Portanto, é bem plausível conceber que nossa elite togada, formada a partir de Sartre e seus seguidores e avessa a intelectuais como Aron, enxergue grupos como o Hamas e as facções criminosas cariocas como agentes de derrubada da dita ordem burguesa, pois o próprio modus operandi de todas essas “células” consiste na instrumentalização da violência para limar valores como vida, liberdade e propriedade. Em outras palavras, para romper com a ordem constituída, e dar vez e voz aos ditos “excluídos”, seja do concerto das nações (Hamas), seja do sistema capitalista de produção (meliantes do Rio). Antes que você, caro leitor, imagine que eu esteja delirando, recorde a fala reveladora de R. Lewandowski, em evento do MST – talvez o maior agente de terrorismo rural no país! -, durante o qual o ex-togado manifestou críticas duríssimas ao que ele mesmo chamou de “democracia liberal burguesa”[14].
Por fim, quanto aos crimes de dano do 08.01 e ao hipotético “bate-boca” no aeroporto, não parece tão difícil especular sobre as razões para tamanha reatividade dos togados, que talvez tenham enxergado ambas as situações como afrontas ao seu poder exercido de forma personalista, bem ao estilo Luís XIV. Não à toa, ouvimos, dos próprios magistrados e da imprensa servil, absurdos como, por exemplo, a equiparação entre a destruição do patrimônio público e a tentativa de supressão do Estado de Direito – e, mais grave ainda, a classificação de pseudo-ofensas à pessoa física e mortal de Moraes como atentado à ordem democrática em si.
Quando a institucionalidade perece em prol do personalismo tóxico, nos vemos fadados ao convívio com distorções dessa magnitude – e aí não surpreende que a justiça, já sem a venda nos olhos, passe a gastar tempo, dinheiro e holofotes com “terrorismos de fancaria”, enquanto deixa a sociedade entregue à crueldade do terrorismo real e diário.
[1] https://revistaoeste.com/politica/celso-amorim-assessor-de-lula-prefaciou-livro-pro-hamas/
[2] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/petistas-se-manifestaram-contra-classificar-hamas-como-terroristas-em-2021/
[3] https://veja.abril.com.br/coluna/radar/em-nota-pt-diz-que-israel-nao-tem-moral-para-falar-de-direitos-humanos/
[4] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/brasil-segue-onu-e-nao-reconhece-hamas-como-terrorista-afirma-lula/
[5] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/hamas-partidos-esquerda-manifestacao-brasilia-sao-paulo-rio/
[6] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/missil-que-atingiu-hospital-de-gaza-nao-foi-ataque-de-israel-aponta-analise-da-cnn/
[7] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/rio-de-janeiro-teve-nesta-segunda-23-maior-numero-de-onibus-queimados-em-um-unico-dia/
[8] https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/justi%C3%A7a-decreta-preventiva-de-tr%C3%AAs-suspeitos-de-envolvimento-em-ataques-a-%C3%B4nibus-no-rio-de-janeiro/ar-AA1iSLPg
[9] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/10/24/zanin-suspende-concurso-pm-rio-de-janeiro.htm
[10] https://diariodopoder.com.br/justica/ttc-justica/moraes-vira-assistente-de-acusacao-contra-seus-supostos-agressores
[11] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/policia-da-italia-diz-que-confusao-com-filho-de-moraes-em-aeroporto-teve-leve-impacto-nos-oculos/
[12] “Histoire et dialectique de la violence”, R. Aron – Ed. Gallimard, 1973, pg. 242, tradução livre de minha autoria
[13] Ibid
[14] https://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/uma-era-de-togados-com-partido/