Common Law não se aplica à Constituição dos EUA: um esclarecimento para advogados brasileiros

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Muitos advogados brasileiros, acostumados ao sistema civil law, acreditam que a Constituição dos Estados Unidos é aplicada da mesma forma que o common law, ou seja, evoluindo a partir de precedentes judiciais sem depender do texto escrito. Esse é um equívoco comum. O sistema constitucional norte-americano funciona de maneira distinta, com base na interpretação textual da Constituição e no papel central do Congresso na formulação das leis. Enquanto o common law rege áreas como contratos, responsabilidade civil e direito de propriedade, a Constituição está sujeita a um processo interpretativo específico, que não se confunde com a criação de regras por meio de precedentes judiciais.

O common law é um sistema baseado na doutrina do stare decisis[1], em que as decisões judiciais passadas servem como guia para julgamentos futuros. Ele se desenvolve organicamente, sem a necessidade de legislação específica para cada nova situação. Isso significa que, ao longo do tempo, as cortes moldam e refinam o direito por meio de casos concretos, criando um corpo de regras que complementam ou preenchem lacunas deixadas pela legislação. Esse processo ocorre em diversas áreas do direito nos Estados Unidos, mas não na aplicação da Constituição.

A Constituição dos Estados Unidos é um documento escrito e rígido, cuja interpretação cabe principalmente à Suprema Corte dos EUA (SCOTUS). Sua aplicação não segue a lógica do common law, mas sim princípios próprios de interpretação constitucional. Existem diferentes abordagens interpretativas adotadas pelos juízes, sendo as mais conhecidas o textualismo, o originalismo e a teoria da Constituição viva. O textualismo busca interpretar a Constituição conforme suas palavras, sem levar em conta fatores externos. O originalismo procura compreender o significado original do texto no momento em que foi adotado. Já a teoria da Constituição viva defende uma leitura dinâmica, adaptando seus princípios às circunstâncias contemporâneas.

Além da interpretação constitucional, há ainda a interpretação statutory, que diz respeito às leis aprovadas pelo Congresso. Os juízes não podem simplesmente criar novas normas com base em precedentes, como no common law, mas devem analisar o texto da legislação e sua compatibilidade com a Constituição. Isso significa que, diferentemente do Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal pode reinterpretar princípios constitucionais para justificar decisões, nos EUA a Suprema Corte deve respeitar os limites impostos pelo próprio texto constitucional.

Outro ponto de confusão para advogados brasileiros é a questão dos precedentes constitucionais. Quando a SCOTUS decide uma questão constitucional, todos os tribunais inferiores devem seguir sua interpretação, pois ela é a autoridade final na interpretação da Constituição. Esse princípio foi estabelecido na decisão histórica Marbury v. Madison (1803), que introduziu o judicial review (poder de revisão judicial), tornando a SCOTUS a guardiã última da Constituição.

Entretanto, essa obrigatoriedade não significa que o direito constitucional americano funcione como common law. No common law, os tribunais podem desenvolver regras jurídicas progressivamente, baseando-se na jurisprudência e criando novas doutrinas ao longo do tempo. Já no direito constitucional americano, os tribunais inferiores não têm essa liberdade: eles devem obrigatoriamente seguir a interpretação da SCOTUS e não podem reinterpretar a Constituição de maneira independente.

Além disso, os precedentes constitucionais nos EUA não são absolutos. A própria SCOTUS pode reverter seus entendimentos anteriores caso conclua que uma decisão passada estava errada ou que a interpretação constitucional precisa ser ajustada. Um exemplo marcante foi a reversão da decisão Plessy v. Ferguson (1896), que legitimava a segregação racial, por Brown v. Board of Education (1954), que declarou a segregação inconstitucional. Isso demonstra que a aplicação da Constituição nos EUA não evolui como o common law, mas sim por mudanças pontuais e deliberadas na interpretação da Suprema Corte.

Outro ponto relevante é que o Congresso tem um papel essencial na definição do direito constitucional aplicado. Nos EUA, muitas mudanças jurídicas ocorrem por meio de emendas constitucionais ou da edição de novas leis federais. Os tribunais não têm a prerrogativa de modificar a Constituição por meio de decisões judiciais; eles apenas interpretam e aplicam o texto conforme suas competências. Isso contrasta com a visão equivocada de que a SCOTUS poderia “criar” common law constitucional, como ocorre com outras áreas do direito nos EUA.

Uma dúvida recorrente entre advogados brasileiros é porque os juízes americanos utilizam os Artigos Federalistas como fundamento em seus julgamentos, mesmo que esses documentos não tenham força normativa. Isso significa que a Constituição está subordinada a costumes ou ao common law? A resposta é não. O uso dos Federalist Papers e de outros documentos históricos se justifica pelo método de interpretação originalista, que busca entender o significado original do texto constitucional no momento de sua adoção. Esses artigos foram escritos por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay justamente para explicar e defender a Constituição recém-proposta. Assim, quando um juiz recorre a esses textos, ele não está criando direito consuetudinário ou aplicando costumes, mas sim buscando evidências históricas para interpretar o que os redatores da Constituição pretendiam.

No entanto, dentro do originalismo, há uma abordagem ainda mais moderna e rigorosa, defendida por Randy Barnett, conhecida como “public meaning originalism”. Nesse método, além dos Federalist Papers, utilizam-se dicionários da época, discursos, registros legislativos e outros textos históricos para verificar qual era o significado público das palavras e cláusulas constitucionais no momento em que foram escritas. O objetivo não é aplicar normas consuetudinárias, mas sim garantir que a interpretação constitucional respeite o sentido original compreendido pela sociedade e pelos legisladores do período de ratificação da Constituição.

Isso é diferente do common law, porque no common law os precedentes podem modificar substancialmente o direito ao longo do tempo, criando novas regras a partir da jurisprudência. No direito constitucional americano, o uso dos Federalist Papers e de outros documentos históricos não substitui a Constituição, mas serve como um recurso auxiliar para interpretar sua intenção original. Esse tipo de abordagem está dentro do método tradicional de interpretação de qualquer documento normativo e não implica a criação de novas regras ou a evolução do direito por meio de costumes.

Essa distinção é ainda mais clara à luz do pensamento de Randy Barnett, especialmente no que diz respeito ao papel da Constituição como a “lei que governa aqueles que nos governam”. Se a Constituição fosse aplicada como common law, isso significaria que os juízes teriam o poder de moldá-la ao longo do tempo, acima da própria vontade do legislador e do povo que a ratificou. Isso criaria um sistema no qual o poder judicial se tornaria superior ao próprio poder legislativo e executivo, contrariando o princípio fundamental da separação de poderes e da soberania constitucional. A Constituição dos EUA não é um conjunto de normas flexíveis sujeitas ao desenvolvimento judicial contínuo, mas um documento que impõe limites claros ao governo, garantindo que seus agentes não possam reinterpretá-la arbitrariamente para expandir seu próprio poder. É precisamente por isso que a Constituição não pode ser aplicada como common law: ela existe para limitar o governo, não para ser moldada por aqueles que deveriam estar submetidos a ela.

Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, um dos Fundadores e Presidente da Lexum


[1] Stare decisis é um princípio jurídico do common law que determina que tribunais devem seguir os precedentes estabelecidos em decisões anteriores para garantir estabilidade e coerência ao sistema jurídico. No common law, esse princípio permite que o direito evolua continuamente por meio da jurisprudência, criando novas normas e doutrinas com base nas decisões judiciais anteriores. Nesse modelo, os tribunais têm maior flexibilidade para modificar, expandir ou até mesmo substituir regras jurídicas ao longo do tempo, à medida que novas interpretações surgem e se consolidam. A própria essência do common law está na adaptação progressiva do direito, moldada pelos julgamentos e precedentes acumulados.

Já na interpretação constitucional, o stare decisisfunciona de maneira muito mais restritiva, pois os juízes não estão apenas lidando com precedentes, mas com a aplicação de um documento escrito e superior a qualquer decisão judicial. A Constituição impõe limites claros ao que pode ou não ser interpretado, e os tribunais não têm liberdade para modificar ou expandir suas disposições como fariam no common law. Assim, enquanto no common law o stare decisis permite a evolução normativa com base nos julgados, no direito constitucional ele atua mais como um mecanismo de estabilidade institucional, garantindo que as interpretações da SCOTUS sejam seguidas pelos tribunais inferiores.

No âmbito constitucional, a SCOTUS pode até reverter seus próprios precedentes, mas essa mudança ocorre de forma deliberada e excepcional, e não como um processo natural e contínuo, como acontece no common law. A reversão de um precedente constitucional geralmente exige uma justificativa robusta, seja por erro na interpretação original, por mudanças sociais profundas ou pela necessidade de restaurar a coerência com o texto constitucional. Esse foi o caso de Brown v. Board of Education (1954), que reverteu Plessy v. Ferguson (1896), corrigindo um erro histórico e realinhando a jurisprudência com o princípio da igualdade perante a lei.

Portanto, a grande diferença entre o stare decisisno common law e na interpretação constitucional está no fato de que, no common law, os precedentes moldam o próprio direito, enquanto no direito constitucional, os precedentes apenas interpretam um documento normativo que já impõe seus próprios limites. Isso significa que, ao contrário do que ocorre no common law, os juízes não podem criar novas normas constitucionais a partir de precedentes; eles apenas aplicam e interpretam a Constituição dentro dos limites que ela mesma impõe.

*Artigo publicado originalmente no site da Lexum.

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