Dia Mundial Sem Carro: Que tal um dia com transporte coletivo decente?
Uma única vez, apenas uma, eu gostaria que todas as pessoas atendessem ao clamor dessa campanha, e deixassem os carros em casa na hora de ir ao trabalho, para a faculdade ou seja lá que destino fosse – só para ver o tamanho do estrago. Seria no mínimo curioso constatar que não haveria transporte coletivo suficiente para todos (aliás, já não há hoje, dado o tempo de espera e a lotação intensa dos coletivos a que são submetidos os usuários), resultando no completo caos, com hordas de empregados tentando chegar ao trabalho a pé (saindo de casa às quatro da manhã), ou quase expelindo os pulmões pela boca enquanto tentam pedalar uma bicicleta por duas horas usando terno ou salto alto (e chegando ao trabalho totalmente esbaforidos e ávidos por um banho). Ainda bem que pouca gente lembrou que 22/09/2016 foi o dia sem carro. Menos mal.
Nesta tão bem intencionada data, é usual a administração publica impedir a circulação de carros em ruas normalmente muito movimentadas nas grandes cidades, para estimular os meios alternativos de transporte. Mas será que seria necessário o Estado compelir desta forma os cidadãos a usarem o transporte coletivo se ele fosse, intrinsecamente, atrativo?
Em cidades como Toronto, por exemplo, não faz o menor sentido adquirir um veículo automotor para fazer deslocamentos ordinários dentro do perímetro urbano, dada a qualidade do metrô que atravessa a maior cidade do Canadá. Pontualidade (não se espera mais do que cinco minutos por um trem em hipótese alguma, mesmo sendo utilizados por 1,5 milhão de passageiros em um dia comum), segurança (sem precisar encarar arrastões como em São Paulo), preços acessíveis e conforto dentro dos vagões, são atributos capazes de atrair as pessoas sem a necessidade de promover fechamentos de ruas em datas alusivas – até há algumas iniciativas neste sentido em nosso país, mas ainda insuficientes para reduzir o fluxo de carros nas ruas.
Quer dizer, o cidadão sabe o que é melhor para si, e não adianta tentar tirá-lo na marra de dentro dos carros (inviabilizando o trânsito com radares ou promovendo rodízio de placas), porque ele seguirá assim procedendo enquanto for essa a opção mais benéfica. No mesmo sentido, bastaria convencê-lo da maior conveniência de utilizar o transporte público, e ele passaria a adotá-lo de forma imediata, sem nem precisar pedir ou gastar dinheiro de pagadores de impostos em campanhas.
Esse, aliás, é um dos fatores que alavanca as margens de lucro das montadoras de carros no Brasil. Como muitas pessoas precisam utilizar seus veículos para os afazeres diários, devido ao fato de que o transporte coletivo não atende a suas necessidades, a demanda por este bem durável aumenta, em comparação com outros países – o que permite que o lucro das montadoras brasileiras seja o triplo dos obtidos nos EUA, por exemplo. Somado ao alto custo de produção (32% do valor total do veículo é constituído apenas por impostos), este fator faz com que o carro vendido no Brasil esteja entre os mais caros no mundo, e, ainda assim, uma considerável parcela de nosso povo o prefere em relação ao ônibus ou ao metrô. Sinal de que usar o transporte coletivo é, definitivamente, a última opção para muita gente.
Incutir tal hábito na cabeça dos cidadãos apenas sob a alegação de que seria “ecologicamente correto” simplesmente não vai funcionar, pois se trata de uma situação na qual, para contribuir com o meio ambiente, o indivíduo precisaria gerar prejuízo a si próprio. Diferente, por exemplo, de separar lixo orgânico de reciclável em casa, que não dá trabalho praticamente nenhum, mudar toda uma rotina e favorecer um meio de transporte desvantajoso consiste em “forçar a amizade” com a população. Não vai rolar, nem mesmo por uma boa causa.
Bicicleta? O mesmo raciocínio se aplica: algumas pessoas (especialmente as que perfazem deslocamentos menores) podem e vão beneficiar-se deste meio de transporte, mas não adianta empurrar a bike goela abaixo daqueles que moram longe do trabalho, ou cuja saúde não lhes permite pedalar (foi mal, Dilma) por quilômetros, que não querem passar o dia fétidos, que tem receio de sofrerem acidentes de trânsito. Enfim, uma vez mais, as pessoas irão escolher a melhor opção, sem que Fernando Haddad praticamente as obrigue a subir na magrela.
Caminhar? Claro, seria ótimo, não fossem os altíssimos índices de criminalidade de quase todas as cidades do Brasil. Andar apenas entre o último ponto do ônibus e a residência já é uma aventura involuntária para muitos brasileiros, o que dirá encarar distâncias maiores.
Trocando em miúdos: o brasileiro não é tão otário quanto possa parecer. Se for melhor para ele deixar o carro na garagem (ou nem comprar um carro) e sair de casa de outra forma, ele assim o fará, em proveito próprio, contribuindo, destarte, para o benefício mútuo. Os pensadores adeptos do Laissez-faire costumavam propugnar que “pelo funcionamento das leis naturais, indivíduos que perseguem o próprio interesse com esclarecimento e condições de liberdade sempre tendem a promover o interesse geral; o bem público é o somatório dos interesses próprios individuais de todos os indivíduos combinados”.
E onde o interesse público, cantado em verso e prosa em época eleitoral, esbarra nesta questão? Quais seriam os principais obstáculos existentes para o transporte de qualidade e barato (não estou falando de “catraca livre”, como queriam os baderneiros do Movimento Passe Livre, esquecendo que o subsídio total do Estado neste setor implicaria em aumento de impostos)?
Ora, claro, eles, os monopólios e oligopólios artificiais: O Estado costuma limitar o número de fornecedores de serviços de transporte (como faz com as licenças de táxi), criando uma reserva de mercado, cuja lógica consiste em agradar ao órgão regulador, e não aos clientes. Abolindo as licitações e demais barreiras, toda empresa que desejasse prestar um serviço de transporte poderia planejar e decidir suas rotas.
A livre entrada neste setor produtivo aumentaria a concorrência no setor, trazendo mais opções para os passageiros. Neste novo cenário de livre mercado, o governo não mais poderia fixar o valor das tarifas. A liberdade na prestação do serviço traria novos modelos de veículos, e haveria maior variedade de preços e serviços prestados.
Até mesmo “caronas cobradas” deveriam ser liberadas – na verdade, é esse serviço que os motoristas de Uber e demais aplicativos prestam, com o único diferencial de que estes contratam os serviços de uma empresa que os conecta com seus passageiros, obedecendo, voluntariamente, a suas regras (sem perder de vista que outros aplicativos de celular com a mesma finalidade já estão entrando em nosso mercado, inclusive oferecendo corridas gratuitas para atrair interessados). Ou seja, a liberdade de qualquer um que possuir um veículo poder cobrar para transportar pessoas a determinados destinos deve ser irrestrita. Se o indivíduo considerar inseguro subir em um van de procedência desconhecida, bastaria não fazê-lo, e escolher outra opção de transporte, as quais passariam a existir aos borbotões.
Os únicos que teriam algo a perder nesta nova conjuntura seriam os próprios empreendedores (a quem cabe o risco da atividade econômica) e os políticos que trocam favores (quase todos, no caso). Decisões erradas levariam empresas que não agradassem seus usuários à bancarrota, e à consequente absorção por investidores que geram mais valor para a sociedade. Sobreviveria apenas quem pudesse prestar um bom serviço. Onde houvesse demanda por transporte, haveria oferta – especialmente se enormes dificuldades para empreender no Brasil, como juros estratosféricos, burocracia e infraestrutura precárias, forem atenuadas.
As possibilidades que adviriam da ausência de regras seriam inúmeras, entre elas: sistema de cobrança de passagem debitada em conta corrente, valor da viagem de acordo com a distância percorrida, sorteio de transporte gratuito em promoções, cobrança de passagens mais baratas fora do horário de pico, e tudo o mais que a criatividade e a necessidade de atrair clientes concebessem. As possibilidades seriam infinitas.
Tais soluções não iriam piorar ainda mais o trânsito? Talvez em um primeiro momento; todavia, com empresas concorrendo livremente, os preços tenderiam a baixar. Preços mais baixos e veículos com maior qualidade e conforto incentivariam o uso de transportes coletivos, reduzindo, em muito, o uso dos próprios…veículos automotores! Voilà, organizadores do dia mundial sem carro!
Ademais, os próprios consumidores, com suas escolhas subjetivas, “expulsariam” do mercado muitas empresas, o que, gradativamente, reduziria o número de prestadores de serviço de transporte (levando em conta que, logo após a desregulamentação, haveria, de fato, um boom), atingindo, eventualmente, um ponto de equilíbrio, onde o número ideal de prestadores de serviço seria determinado, de forma indireta, pelos próprios usuários – e não por algum tecnocrata da prefeitura, cuja mão está sempre disponível para ser molhada.
Existe um último fator que já está ajudando nosso trânsito a melhorar, mas pode contribuir muito mais, especialmente se o Congresso Nacional aprimorar a redação do Artigo 6º da CLT, o qual trata da prestação de trabalho à distância, e que hoje ainda gera insegurança jurídica para empregadores e trabalhadores. Diversas empresas já estão adotando o sistema de home office para determinadas atividades de seus empregados, e tal medida retira das ruas um número significativo de motoristas.
Em vez do dia sem carro, quem sabe não seria interessante organizar o “Dia sem Regulações Estatais”. Desse eu seria capaz de participar.
Sobre o autor: Atua como Auditor-Fiscal do Trabalho, e no exercício da profissão constatou que, ao contrário do que poderia imaginar o senso comum, os verdadeiros exploradores da população humilde NÃO são os empreendedores. Formado na Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAR) como Profissional do Tráfego Aéreo e Bacharel em Letras Português/Inglês pela UFPR. Também publica artigos em seu site: https://bordinburke.