Contra o crime de desacato

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sabe-com-quem-esta-falandoUma das normas mais autoritárias e anti-isonômicas do Brasil está dentro do Código Penal: o crime de desacato. Assim discorre o art. 331 do Código Penal:

“Desacato – Art. 331 – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.”

Mas afinal, o que é desacatar alguém? A ação de desacatar é extremamente fluida, dentro daquilo que em Direito se chama de conceito jurídico indeterminado, por ser de difícil conceituação.

Por isso, vamos usar o recurso do dicionário, que fala em “faltar com o devido respeito; tratar com irreverência; desprezar”.  A partir dessa definição, cria-se um novo problema, pois o que seria o devido respeito? O que faria um funcionário público poder exigir mais respeito do que o respeito que deve ser dado a qualquer cidadão em uma sociedade educada e civilizada? O que faz do funcionário público merecedor desse privilégio?

E é isso que o crime de desacato é na verdade: um privilégio para funcionários públicos poderem exercer péssimos comportamentos sem oposição, praticando intimidação e abuso de autoridade, tal como acontece em boa parte das repartições públicas em todo o país.

Respeito é bom e todos gostam, não apenas funcionários públicos, e essa não é uma matéria que devesse exigir criminalização de conduta, devendo ser resolvida em âmbito civil, caso houvesse, na prática, algum dano a alguém, fosse através de calúnia, injúria, difamação, ou mesmo alguma lesão corporal.

Isto posto, em deferência à honestidade intelectual, é com certo desprazer que informo que o péssimo Deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ), em um estranho arroubo de razoabilidade, apresentou no último dia 05, na Câmara dos Deputados, um projeto de lei que não só acaba com o crime de desacato, como também transforma o abuso de autoridade, uma das práticas patrimonialistas e estatistas mais lamentáveis do Brasil, em ato de improbidade administrativa.

Fico particularmente feliz, mas assustado, com a aprovação do PSOL a esse projeto, visto ser um partido de base sindical, e o projeto ataca privilégios de servidores públicos que fazem parte de sua base política.

O Projeto de Lei de Jean Wyllys, de fato, é um primor de bom senso e totalmente liberal. Sua justificativa, inclusive, é irrepreensível, atacando com vigor o ato da carteirada. Sendo um documento público, o republico abaixo ipsis litteris, mantendo a esperança que o “nobre” Deputado possa fazer novos bons projetos, mas, aqui entre nós, é bom não esperarmos por isso. Até porque, como sabemos, a defesa da liberdade por esquerdistas é seletiva, e ao mesmo tempo em que Jean Wyllys defende a descriminalização do desacato, vive a tentar criminalizar a liberdade de opinião sobre o homossexualismo.

PROJETO DE LEI Nº ___ , de 2015.

(Do Sr. Jean Wyllys)

Altera dispositivo do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940, e acrescenta dispositivos à Lei 8.429, de 2 de junho de 1992, e dá outras providências.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º O art. 11
da Lei 8.429, de 2 de junho de 1992 passa a vigorar acrescido dos seguintes dispositivos:

“XXII – invocar sua função ou cargo público para eximir-se de obrigação legal ou obter privilégio indevido.”

“Parágrafo único – No caso previsto no inciso XXII, qualquer autoridade deverá informar o fato ao órgão público onde o agente está lotado.”

Art. 2º Revoga-se o artigo 331 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

JUSTIFICAÇÃO

Cena 1: Uma servidora do Detran-RJ, numa blitz (em 2011), parou um veículo que estava sem placa. A nota fiscal que portava já tinha prazo vencido. O motorista, ademais, não portava a carteira de habilitação (tudo isso foi reconhecido em sentença da Justiça). Quem era o motorista? Um juiz de direito. A servidora (que fez uma dissertação de mestrado sobre ética na administração pública) disse que o carro irregular deveria ser recolhido. Essa providência, absolutamente legal e válida para todos, foi a causa do quid pro quo armado. O motorista queria que um tenente a prendesse. Este se recusou a fazer isso. Chegaram os PMs (tentaram algemá-la). A servidora disse: “Ele não é Deus”. O juiz começou a gritar e deu voz de prisão, dizendo que ela era “abusada” (quem anda com carro irregular, não, não é abusado). Ela processou o juiz por prisão ilegal. O TJ do RJ entendeu (corporativamente) que foi a servidora que praticou ilegalidade e abuso (dizendo que “juiz não é Deus”). Alegação completar da servidora: “Se eu levo os carros dos mais humildes, por que não vou levar os dos mais abastados?; Posso me prejudicar porque fiz meu trabalho direito”.

Cena 2: O TJ do RJ condenou a servidora a pagar R$ 5 mil por danos morais ao juiz “ofendido” em sua honra (a servidora agiu mesmo sabendo da relevância da função pública por ele exercida). Diz ainda a sentença (acórdão): “Dessa maneira, em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais restou ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a própria magistratura e tudo o que ela representa”. “Além disso, o fato de o recorrido se identificar como Juiz de Direito não caracteriza a chamada “carteirada”, conforme alega a apelante.” Uma “vaquinha” na internet já arrecadou mais de R$ 11 mil (a servidora diz que dará o dinheiro sobrante para entidades de caridade). Ela foi condenada porque disse que “juiz não é Deus” (ou seja: negou ao juiz essa sua condição). Heresia! Isso significa ofensa e deboche (disse o TJRJ). O CNJ vai reabrir o caso e apurar a conduta do juiz. Em outra ocasião a mulher de um “dono do tráfico” no morro também já havia dito para a servidora “Você sabe com
quem está falando?” (Luiz Flávio Gomes, jurista e professor de Direito)

“Como cidadã fiquei muito decepcionada. É melhor colocar uma emenda na Constituição que juiz não pode ser multado, pode humilhar, pode ofender. Se eu sou fiscal da lei vou cumprir.” (Luciana Tamborini, fiscal da Lei Seca)

O abuso de autoridade, em especial, a prática da “carteirada”, é uma mazela comum no Brasil e merece atenção especial da lei. Uma das infelizes causas para tal prática é a existência de um tipo penal específico para o crime contra a honra praticado contra autoridade ou funcionário público, o desacato. A figura do desacato é, de certa forma, a legitimação jurídica da pergunta “Você sabe com quem está falando?” que, como diz o antropólogo Roberto DaMatta, “engendra um impasse pela introdução de uma relação [hierárquica] num contexto que teoricamente deveria ser resolvido pela aplicação individualizada e automática da lei”.

Esse tipo penal não é comum em outros países de tradições jurídicas similares ao Brasil. Sua origem é um resquício da autoridade monárquica e da corte portuguesa no país e não nos parece conciliável com a prática democrática e com nossa Constituição Cidadã, muito menos com os mais relevantes tratados internacionais de direitos humanos (em especial, o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948). De fato, o tipo penal do desacato foi questionado na Corte Interamericana de Direitos Humanos pela Defensoria Pública de São Paulo e, tendo em vista a gravidade de uma condenação em tal corte, parece-nos oportuno que o legislativo se adiante ao julgamento dessa representação.

Por tais razões, consideramos por bem acabar com tal tipo penal. Ademais, para garantir que a prática da “carteirada” seja desestimulada, e entendendo seu caráter precípuo de infração administrativa, o presente Projeto de Lei altera a Lei 8.429/92, tornando o abuso de autoridade da “carteirada” um ato de improbidade administrativa atentatório aos princípios da Administração Pública (princípio da moralidade administrativa), punível com perda da função pública, suspensão dos direitos políticos ou multa. Dessa maneira, pretendemos gerar um desestímulo real à prática do abuso de autoridade.

Por enfrentar a causa e punir administrativamente os perpetradores, esperamos que a presente proposta dê suficiente resposta à sociedade brasileira sobre alguns recentes casos de abuso de autoridade que tanto nos envergonham.

Diante do exposto, contamos com o apoio dos nobres pares para a aprovação deste projeto de lei.

Sala das Sessões, em 5 de março de 2015.

Deputado JEAN WYLLYS

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Bernardo Santoro

Bernardo Santoro

Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ), Mestrando em Economia (Universidad Francisco Marroquín) e Pós-Graduado em Economia (UERJ). Professor de Economia Política das Faculdades de Direito da UERJ e da UFRJ. Advogado e Diretor-Executivo do Instituto Liberal.

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