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“O Caminho da Servidão”: o manifesto histórico de Hayek

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O CAMINHO DA SERVIDÃOEra 1944, nos estertores da Segunda Guerra Mundial, e o planeta acenava para uma tendência que incrementava os poderes do Estado sobre a economia. Foi nesse período difícil para as ideias liberais que, desafiando a corrente, o economista da Escola Austríaca Friedrich von Hayek (1899-1992), discípulo de Ludwig von Mises, tomou a cena ao publicar um livro que denunciava os perigos do planejamento central da economia e do intervencionismo estatal. Trata-se do épico manifesto O Caminho da Servidão, lançado originalmente no Brasil pelo Instituto Liberal.

Hayek, um tanto avesso a rotulações rígidas, ora dizendo-se liberal, ora dizendo-se libertário, tendo escrito um artigo intitulado Por que não sou conservador  – no entanto, diga-se de passagem, em Hayek no Brasil, obra também editada pelo Instituto Liberal reunindo registros das viagens que ele fez ao nosso país, Hayek alerta que as verdadeiras soluções para os problemas dos EUA e da Grã-Bretanha estariam no “retorno ao conservadorismo, ao liberalismo clássico, moeda estável e empresas livres”, e diz que “os liberais de sua espécie têm muito o que aprender com alguns pensadores conservadores”, o que prova que sua crítica se volta mais para um tipo de conservadorismo continental -, já foi um socialista fabiano na juventude. Seu pensamento, em seus contornos finais, pode ser mais objetivamente definido a partir da sua  vinculação ao Iluminismo escocês e ao Velho Whiggismo, com inspiração em figuras como Hume, Adam Smith e Edmund Burke, com o que ele rejeita fortemente um pensamento “construtivista”, oriundo em boa medida de segmentos amplos do Iluminismo francês, levando o racionalismo ao extremo de uma “falsa razão”, que se crê capaz de revolver todas as estruturas sociais e reorganizá-las rumo a uma “perfeição ideal”, supostamente mais eficaz do que a “ordem espontânea da sociedade”.

Aplicando-se a teoria geral hayekiana, de cores burkeanas nítidas, ao mercado, a conclusão natural é a de que, ao arrogar-se o poder de manipular a economia, o Estado ignora sistematicamente a pluralidade das forças e fatores envolvidos em sua dinâmica, acreditando-se o agente iluminado mais indicado para orientá-las e suprir suas supostas deficiências. Contra isso, Hayek acredita que vale à pena uma propaganda contundente, e seu livro se inscreve nesse contexto. Sem receios de ser mal compreendido pelos demais técnicos da Economia, o qualificativo de “manifesto” não foi atribuído a O Caminho da Servidão por terceiros; é o próprio Hayek que diz que seu livro é um “livro político”. Hayek sempre foi favorável a que os intelectuais liberais fossem como “agitadores”, abalando com intrepidez os alicerces da confiança vazia e sem fundamento dos socialistas no valor sacrossanto do Estado sobre os “males do setor privado interessado no lucro”.

A maior preocupação de Hayek é com o crescimento de ideias de matriz socialista na Inglaterra de seu tempo; ainda que ele enxergasse poucos, no Ocidente, que “querem reconstruir a sociedade a partir de seus alicerces com base em algum plano ideal, são, entretanto, numerosos os que ainda acreditam em medidas que, embora não visem a uma reforma completa da economia, podem, no entanto, produzir involuntariamente esse mesmo resultado, por efeito de conjunto”. Medidas intervencionistas perigam modificar, ainda que lentamente, segundo ele, o espírito e o caráter de um povo, por mais fortes que sejam suas tradições de liberdade.

hayekO princípio fundamental da tese do austríaco é o de que a liberdade econômica é imprescindível para a liberdade política. É preciso compreender que somente sob um sistema capitalista, isto é, “um sistema de concorrência baseado no direito de dispor livremente da propriedade privada”, é possível sustentar a democracia – embora seja verdade também que Hayek não toma a democracia como um fetiche, devendo ela ser vista, nas sociedades modernas, não como um fim em si mesma, mas como um meio utilitário para “salvaguardar a paz interna e a liberdade individual”. Para empreender sua análise, o exemplo em que Hayek centra suas atenções é a Alemanha nazista, apontada por muitos mal-intencionados como algo associado ao liberalismo e ao conservadorismo, como se Hitler estivesse mais próximo de Margaret Thatcher ou Winston Churchill que de Stálin ou Fidel Castro. Descrevendo a República de Weimar e o predomínio da social democracia alemã em sua duração, Hayek mostra que o nacional-socialismo hitlerista foi resultado da submissão da cultura política alemã ao estatismo; o enfrentamento entre o que se chama discutivelmente de “direita nacional-socialista” e a “esquerda” era, para ele, “o tipo de conflito que sempre se verifica entre facções socialistas rivais”. Hayek vê aí uma manifestação cruenta do abandono da “evolução da civilização ocidental”, que deságua nos princípios da ordem liberal, em prol de uma tirania que se justifica na retórica das boas intenções.

O nazismo, tal como o comunismo, seriam, para Hayek, uma negação do individualismo ocidental, que não se confunde com o egoísmo, mas que “a partir de elementos fornecidos pelo cristianismo e pela filosofia da antiguidade clássica pôde desenvolver-se pela primeira vez em sua forma plena durante a Renascença e desde então evoluiu e penetrou na chamada civilização ocidental”, caracterizando-se pelo “respeito pelo indivíduo como ser humano, isto é, o reconhecimento da supremacia de suas preferências e opiniões na esfera individual, por mais limitada que esta possa ser, e a convicção de que é desejável que os indivíduos desenvolvam dotes e inclinações pessoais”. Em vez do postulado central de que “devemos utilizar ao máximo as forças espontâneas da sociedade e recorrer o menos possível à coerção”, o que Hayek pontua sempre como um norte metodológico e moral, mas nunca como um dogma absoluto, muitas correntes de pensamento preferiram crer que esses princípios liberais que possibilitaram o progresso são, em realidade, “obstáculos à rapidez desse progresso”. Acreditaram que ter o poder nas mãos para ditar o caminho seria mais efetivo e mais produtivo. Pavimentaram, com isso, o caminho da servidão de que fala o título da obra, aquele em que os indivíduos se submetem ao agigantamento do Estado e suas áreas de influência.

Com pontaria certeira, Hayek delineia a história de autoritarismo do pensamento socialista desde Saint-Simon e o parentesco ideológico entre sua filosofia central e o pensamento fascista clássico; para ambos, socialistas e fascistas, o “liberal da velha escola”, o guardião das conquistas ocidentais em sua síntese mais dinâmica e consolidada, era o inimigo em comum. Em seguida, põe-se a criticar a planificação econômica, o que ele define como “um controle centralizado de toda a atividade econômica de acordo com um plano único, que estabeleça a maneira pela qual os recursos da sociedade sejam ‘conscientemente dirigidos’ a fim de servir, de uma forma definida, a finalidades determinadas”, o que leva à tentação de controlar preços e quantidades de mercadorias. Hayek sustenta, inspirando-se no seu professor Mises, que essas tentativas impedem “que a concorrência promova uma efetiva coordenação dos esforços individuais, porque as alterações de preço deixarão assim de registrar todas as alterações importantes das condições de mercado e não mais fornecerão ao indivíduo a informação confiável pela qual possa orientar suas ações”. A determinação dos preços, isto é, dessas informações transmitidas aos agentes econômicos, depende necessariamente de sua negociação livre nas relações do mercado, não dispondo um núcleo central das condições imperiosas para concatenar e organizar todos os elementos da sociedade que influenciam nesse resultado.

hayek2Insistir nesse propósito seria abrir caminho para uma invasão desse planejamento em todas as esferas da vida individual, da existência privada, o que tem chances robustas de desembocar no totalitarismo. É preciso reconhecer, de uma vez por todas, que a razão central não pode “decidir todas as questões sobre a importância relativa dos desejos de diferentes pessoas ou grupos” e que a “fórmula da igualdade” arbitrariamente produzida não oferece soluções reais aos problemas humanos, antes os incrementa. Também não é possível abdicar da liberdade em prol de uma segurança absoluta, artificialmente fabricada pelo Estado, de determinadas posições na sociedade – embora Hayek defenda programas que garantam um mínimo de alimentação, roupas e habitação, a fim de “conservar a saúde e a capacidade de trabalho”. Nesse ponto, ele faz referência ao founding father americano Benjamin Franklin: “aqueles que se dispõem a renunciar à liberdade essencial em troca de uma pequena segurança temporária não merecem liberdade nem segurança”. Nem mesmo para combater monopólios se justifica essa restrição à liberdade, sendo, ademais, os mais comuns e prejudiciais monopólios aqueles que são obtidos não por méritos, mas pela cumplicidade ilegítima com o Estado que supostamente deveria eliminá-los.

Hayek identifica nos coletivismos insidiosos e na organização de todas as forças da sociedade em torno de um fim estabelecido pelos tiranos no poder o ataque mais profundo à verdade e às regras morais. Para esse supremo propósito, tudo vale; multiplicam-se Goebbels e Joãos Santanas. As mentiras se disseminam e dispõem os espíritos à passividade servil.  Em um debate profundamente atual, por fim, Hayek discorre sobre a criação de organismos internacionais, acreditando ser muito necessário mantê-los em níveis de abrangência restritos, a fim de não passarem por cima das soberanias nacionais e se converterem em uma forma de planificação supranacional das economias globalmente consideradas.

O Caminho da Servidão, pelo seu conteúdo e pela oportunidade histórica em que veio à luz, é um dos livros mais importantes do século XX. Provocou o barulho que foi criado para provocar, e por isso, para as más e tolas línguas da esquerda, ficou conhecido como “a obra fundante do neoliberalismo”, o que quer que eles queiram dizer com isso. A dimensão e popularidade só engrandecem a obra, e constatar que Hayek não se limitou à função de técnico ou pesquisador e decidiu ir à luta, com as ferramentas retóricas de que dispunha, em defesa da sua causa, só torna este livro de consulta obrigatória para a formação do pensamento de todos nós.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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