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Beth Carvalho, esquerda, direita e hipocrisia: liberalismo dá samba?

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Créditos: George Magaraia
Créditos: George Magaraia

A cantora Beth Carvalho, personalidade de relevo no meio do samba, comemorando 50 anos de carreira, decidiu há algum tempo se somar à já longa lista de artistas brasileiros que parecem ter prazer em comprovar que é melhor se aterem aos seus específicos ramos e calar a boca quando o assunto é política. Apoiadora confessa da esquerda, presidente de honra do PDT e defensora dos mandatos petistas, Beth já havia repudiado o uso de uma música sua em manifestações contra o governo Dilma e já havia dado uma entrevista em que dizia até que havia um plano dos malignos “ianques” para acabar com o samba e “dominar o mundo através da cultura” (sic).

É uma perfeita representante da categoria que Rodrigo Constantino chama de “esquerda caviar”; Beth acredita que o socialismo é o melhor modelo para a sociedade, mas não abdica de aproveitar as benesses do capitalismo. Vive em seu apartamento na Zona Sul – o que não é problema nenhum, para quem reconhece a importância de as relações econômicas serem o mais livres possível, com cada um desfrutando do retorno do valor que oferece em troca a potenciais consumidores do que produz ou desenvolve. Se sua voz e sua arte geram esse resultado, ela tem todo o direito de usufruir. No entanto, ao torpedear todo o sistema econômico que lhe faculta essa possibilidade, exerce a hipocrisia na sua mais perfeita definição. Beth faz pior; em entrevista ao Último Segundo, cedida em 2011, ela exaltou os principais tiranos da América Latina, de Hugo Chávez a Fidel, passando por Che Guevara, demonstrando não entender nada de democracia. Uma lástima de fazer vergonha.

Em entrevista à Folha, na última sexta (23/10), Beth soltou mais uma. Disse que “o samba é mais de esquerda, é o povo”. Amante do gênero, entusiasta e integrante, em alguma medida, do meio do samba do Rio de Janeiro, este colunista que vos escreve se sentiu pessoalmente provocado a escrever algumas linhas sobre isso, oferecendo seu ponto de vista. Afinal, levada ao pé da letra, a frase de Beth poderia fazer crer que estou escrevendo no lugar errado, e deveria ser, quem sabe, colunista da Revista Fórum ou da Carta Capital. Desde já, além de determinismos e generalizações serem normalmente equivocados, afirmo que Beth está, quanto aos fundamentos, errada. Porém, podemos enxergar nela, infelizmente, alguma dose de razão. Explico.

Em primeiro lugar, é óbvio o equívoco intrínseco em associar esquerda com povo. Quer dizer que pessoas com tendências mais liberais ou conservadoras não fazem parte do povo? A chamada “direita” seria apenas a “elite”? O preconceito imbecil por trás de afirmativas como essa já foi exaustivamente demonstrado. A grande elite econômica é, ao contrário, muitas vezes, financiadora das castas burocráticas da esquerda que, em sua grande maioria, enriquecem a olhos vistos. Ou alguém, comparando Lula a qualquer um dos colunistas desta página, ou da Revista Veja, poderia dizer que ele é “povo” e nós somos “elite”?

Em segundo lugar, abordemos o próprio samba. A começar pelo óbvio ululante: resultando de uma mescla complexa de interações sociais e diferentes ritmos, com acentuada influência africana, caracterizando bem, portanto, o sincretismo étnico e cultural que molda o Brasil, o samba é um gênero musical e, por isso mesmo, apolítico. Isso é bem evidente; não entendo o que levaria alguém a dizer que o rock, a música clássica, o choro, a bossa nova, ou até mesmo o funk, qualquer que seja o valor que se dê a cada um deles, são de “esquerda” ou de “direita” em si mesmos. Ocorre que, sobretudo no Rio de Janeiro, especialmente a partir do desenvolvimento das escolas de samba, o samba transcendeu o gênero e se tornou uma cultura, um movimento social que existe em torno dele. Nada que seja, é verdade, exclusivo do samba; cada região tem suas músicas típicas e elas estão integradas a conformações sociais e hábitos tradicionais de suas localidades.

E que cultura é essa, como se desenvolveu? Pode-se falar que ela é de “esquerda” ou de “direita”? Na origem, as escolas de samba surgiram em faixas muito humildes da sociedade, nos morros, onde, teoricamente, uma politização ideológica bem consistente não era a tônica. No entanto, e aqui entra a dose de razão de Beth Carvalho, ele se estendeu, se popularizou, foi divulgado como elemento da cultura nacional pela propaganda governamental, e uma classe média (com o perdão da expressão “classe”, mas que empregamos por convenção) se aproximou muito dele. Na interação entre esses diferentes grupos sociais, muitos dos sambistas e compositores mais humildes foram cooptados pelos ideólogos de esquerda que ingressaram ao movimento do samba nessa torrente e acabaram criando pautas e temas. Sambas que exaltam Zumbi dos Palmares, por mais lindos que sejam, não deixam de perpetuar um símbolo de “resistência” caro às esquerdas, mas que em nada condiz com a realidade – sabemos bem que Zumbi tinha escravos. Temos também muitos sambas-enredo exaltando figuras notórias de esquerda, como Luís Carlos Prestes (Grande Rio 1998).

Isso, porém, não torna a cultura do samba uma cultura socialista. Além de haver também sambas-enredo exaltando figuras que não seriam caras à esquerda, como a princesa Isabel, Pedro Álvares Cabral, os imperadores e figuras de destaque da monarquia e até mesmo o regime militar (Beija-Flor dos anos 70), notemos o que bem destacaram o colunista de Veja, Felipe Moura Brasil, e o diretor-geral do Instituto Liberal Alexandre Borges, em seu primeiro programa Contexto: sob muitos aspectos, a cultura do samba pode ser vista é como conservadora! Afinal, há muito repertório no gênero defendendo a preservação de uma tradição – “não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar” – que deve ser passada entre gerações, prestando reverência e respeito às anteriores – “quando eu não puder pisar mais na avenida, (…) entrego o meu anel de bamba a quem mereça usar”. As escolas de samba são ambientes bastante hierarquizados, em que, congregadas em torno de um imaginário e uma simbologia comuns, de um objetivo comum – a socialização de uma comunidade, e, ressaltemos, a COMPETIÇÃO com as demais agremiações na época do Carnaval -, as pessoas têm total consciência das suas diferentes posições e prestígios, seja na Velha Guarda, na diretoria, na Ala de Baianas, na bateria ou demais segmentos. Têm total consciência do respeito que devem a essa estrutura, e promovem cotidianamente o culto a essas divisões e funções. Uma sistemática, como se pode perceber, nada socialista.

Porém, e aí entra mais uma dose de razão da equivocada Beth Carvalho, ela também não é uma cultura liberal. E aí eu me obrigo a citar a mim mesmo, em artigo que publiquei em janeiro passado, Carnaval, empreendedorismo e economia de mercado, em que menciono que, nascidas nos anos 30, e respondendo, em alguma medida, às elaborações culturais e relações sociais do país em que surgem, as escolas de samba se desenvolvem no período Vargas, que lhes imprimiu um forte caráter nacionalista, exigindo a realização de enredos ufanistas, e se ligaram, como nós sabemos, ao jogo do bicho, interdito no Brasil oficialmente, assim como qualquer jogo de azar (o que, desde já, é discutível, mas por ser assim, o jogo se construiu com grande ligação com a criminalidade). Organizando-se e estruturando-se em uma época em que o Brasil vivia sob um condão de traços profundamente fascistóides, as escolas de samba, com sua fórmula que difunde e consagra o meio do samba como um todo, se submetem ao esquema da subvenção, passando a receber contribuições financeiras diretas do Estado.

O modelo econômico que regula o espetáculo continua, até hoje, muito pouco liberal. Existe um monopólio da emissora que realiza a transmissão televisiva, e as agremiações continuam pecando, sob muitos aspectos, na exploração de recursos potencialmente comerciais, sustentando modelos mais arcaicos (umas mais do que outras, diga-se de passagem; escolas como a Unidos da Tijuca já investem em um modelo mais empresarial). Continuam recebendo subvenções do Estado – o que, na prática, tem um retorno financeiro e turístico poderoso, mas continua sendo, em termos de valores liberais clássicos, inadequado. Há uma tentativa de se limitar cada vez menos às restrições que as verbas públicas impõem e investir em parcerias e patrocínios; os desfiles do Carnaval de Passo Fundo, por exemplo, desde o ano passado, são realizados apenas com recursos da iniciativa privada. No entanto, a regra não é essa. A culpa é do samba? Dizê-lo, penso, seria reducionismo. A meu ver, a culpa é do Brasil: a cultura organizacional do samba acaba repercutindo o caldo cultural, econômico, estrutural e ideológico do estado e do país.

Minha esperança é de que os novos ares possam, a longo prazo, estimular e fomentar a introdução de pendores liberais em todas as áreas, e o mundo do samba, que eu tanto aprecio, também seja atingido. Não é impossível e acredito que, como todo espetáculo, o Carnaval das escolas de samba também é capaz de se aprimorar e se robustecer, andando com as próprias pernas, dependendo cada vez menos dos recursos públicos. Elas são parte da vida do carioca, assim como as festas juninas do Nordeste ou o festival de Parintins no Norte; são um modelo de entretenimento e narrativa muito interessante, que não deveria ser visto como um mal a ser extirpado, mas sim como mais um aspecto na sociedade que pode ser melhorado se o país, como um todo, for resgatado.

 

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

Um comentário em “Beth Carvalho, esquerda, direita e hipocrisia: liberalismo dá samba?

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    26/10/2015 em 5:47 pm
    Permalink

    Não sei se por Ingenuidade ou por Mau caratismo. A maioria dos artistas brasileiros abraçam causas o socialismo, mas poucos criticam os gastos absurdos do governo, Sua burocracia, e má gerência.

    O problema Sempre é o capitalismo, mas sem este com certeza eles não teriam seu luxuosos apartamentos, e seus artigos “supérfluos” que a grande maioria da sociedade talvez não tenha acesso, sem ele seus cachês muitas vezes exorbitantes não existiriam.

    A Beth só expressou o pensamento da maioria dos brasileiros doutrinados pelo coitadismo e “Marxismo”. A Beth é especializada em alguma área ? fez economia ou história ? Não! É mais uma pseuda Militante da esquerda, Mais uma que faz parte da ciência dos equivocados, com todo respeito Beth, adoro seus sambas.

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