“Destorcer o Brasil”: o barroquismo como ângulo interpretativo do Brasil
Editado em 2018 pela Ibis Libris, o livro Destorcer o Brasil – de sua cultura de torções, contorções e distorções barroquistas tem prefácio do professor Mario Guerreiro, de vasto histórico junto ao Instituto Liberal, e autoria do publicitário e mestre em Filosofia Jorge Maranhão, diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão. O texto sustenta duas principais teses: a primeira, a de que muitos entre os maiores problemas do Brasil derivam de uma disseminação das características do Barroco – visto aqui como transcendente ao estilo artístico homônimo, mas perfazendo, sob o nome de barroquismo, toda a mentalidade a ele associada e gestada ao tempo da Contrarreforma católica – em nossa psicologia profunda ao longo dos três séculos de colonização, sem uma modulação suficiente que poderia ter sido empreendida pelo classicismo ou pelo Iluminismo. A segunda, a de que a resolução para esse problema passa pelo fortalecimento do espírito de cidadania no seio das elites políticas, econômicas e culturais.
Conforme Mario Guerreiro em seu prefácio, o Barroco foi o estilo “predominante na Europa e no Novo Mundo dos finais do século XVI ao século XVII”, nascido na Itália e alastrado pelo mundo latino. Estimulado pela reação católica à Reforma Protestante, buscava arrebatar os sentidos, cativando o público para as igrejas católicas pela aposta no esplendor e na sinuosidade (que o livro ilustra pela figura da voluta, um ornamento em espiral típico da arte barroca), em oposição à maior austeridade e simplicidade das igrejas protestantes. No sentido popular, Guerreiro aponta que o Barroco ficou associado a adjetivos como “extravagante”, “incoerente” e “irregular”.
Por intermediação de Portugal, o Brasil foi gestado sob o império do Barroco, manifestado através dos jesuítas em seus esforços de conversão dos povos indígenas. A hegemonia da arte barroca, segundo Jorge Maranhão, acabou, mas o espírito do Barroco ficou de tal forma entronizado na atmosfera cultural e comportamental brasileira que nunca perdeu efetivamente seu domínio e explica boa parte de nossas peripécias. Maranhão não se desfaz dos intérpretes mais notórios da identidade brasileira, como Gilberto Freyre (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), Raymundo Faoro (1925-2003) ou o mestre Antonio Paim (1927-2021), mas, talvez por provir de uma família de origem artística e ter sempre se interessado por História e Filosofia da Arte, julga que, se não é ignorada, a importância do Barroco é, no mínimo, menos enfatizada do que deveria, merecendo um exame particular.
Os dois primeiros capítulos – a meu juízo, os mais importantes do livro, porque é neles que de fato a tese é elaborada -, “Torcer, retorcer, contorcer, distorcer” e “Barroquismo cultural”, se dedicam a explicar em que consiste o barroquismo deduzido do Barroco pela sociedade brasileira e o peso de seu impacto sobre a nacionalidade. O grande problema, para Maranhão, é que, se o Barroco tem notáveis méritos como estilo artístico, seu extravasamento para a política, a moral, o Direito e outros campos da vida nacional representou uma definição deletéria de nossos rumos.
Aplicar ao debate público características como “a superação da sensatez, do senso comum, da milenar arte da prudência, do razoável”, “o efeito pelo adorno, o adorno feito adornamento sem fim, a desmesura do adereço, que compromete o comedimento e o equilíbrio da sabedoria”, as “emoções desmesuradas”, o “exagero ornamental”, a “sensibilidade à flor da pele” e o “voluntarismo” não poderia terminar em um bom resultado. Isso, na leitura de Maranhão, prodigalizou a presença de figuras de linguagem como “o paradoxo, a hipérbole, a ironia e a alegoria presentes em farsas e burlas” em nossos costumes morais e, consequentemente, na dinâmica de nossas instituições. É assim que, sem negar recursos utilizados por outros intérpretes da brasilidade, como o do patrimonialismo, ele interpreta essa confusão entre público e privado menos como um fenômeno autossuficiente e mais como uma das manifestações mais representativas da incoerência e dos paradoxos barroquistas.
As consequências do barroquismo iriam desde costumes mais inofensivos, como o apreço por aumentativos ou exageros retóricos no cotidiano popular e a verborragia bacharelesca, até seus efeitos “no campo cívico, moral e jurídico-político”, em que se dá o verdadeiro problema, já que aí, por influência do barroquismo, “apreciamos mais o exercício da política de trocas e alianças do que o justo e puro exercício do poder, que sempre deixa perdedores; apreciamos mais a processualística do que o juízo, mais o recurso do que a sentença, mais o adiamento do que a conclusão, mais conchavos do que o embate, mais os acordos do meio a meio do que a perda ou o ganho por inteiro”.
A tese dessa importância do Barroco na definição da alma brasileira não é inédita; Maranhão mesmo afirma que a toma de autores como Affonso Romano de Sant’Anna (n. 1937), escritor e poeta brasileiro que ele considera também um dos grandes intérpretes do Brasil. A pretensão de Maranhão é estender a crítica de Romano a outras áreas que este e outros autores não haviam aprofundado e endereçar possíveis soluções aos embaraços crônicos que o barroquismo desencadeia. Ele quer que seu Destorcer o Brasil seja visto não apenas como uma análise interpretativa, mas como um chamamento à ação.
Os capítulos seguintes, “Torções históricas”, “Torções culturais”, “Torções empreendedoras”, “Torções jurídico-políticas”, “Torções morais: a corrupção dos valores” e “Torções cidadãs: e você com isso?”, reunindo pequenos tópicos inéditos e adaptações de artigos que Maranhão publicou anteriormente na imprensa, procuram exemplificar, elencando e criticando exemplos do passado ao presente, os paradoxos e resistências à modernização liberal que o problema barroquista provocaria.
Afinal, a agenda que Maranhão defende como a que seria resultado de uma reação ao legado barroquista é, na maior parte do tempo, uma agenda liberal, com redução da máquina pública, privatizações, cortes de regulamentações e privilégios e aumento da participação espontânea da sociedade nos processos decisórios. A esquerda, o lulopetismo e o “progressismo” judiciário, afrontando a preocupação com o império (e a impessoalidade) da lei, seriam justamente encarnações contemporâneas das piores “torções” e ginásticas conceituais do barroquismo.
Nos últimos capítulos, “O papel da mídia” e “O programa de Agentes da Cidadania: para destorcer o Brasil”, ele defende que, diante de tamanha assimilação do barroquismo, o remédio precisa passar pela sedimentação de uma cultura cidadã e participativa nas elites, que teriam na mídia e no Jornalismo instrumentos ainda passíveis de permitir a verbalização de seus protestos contra a inércia barroca mais do que nas instituições tradicionais de ensino ou em outras esferas mais convencionais. Não podendo apenas esperar silentes nem culpar eternamente o legado do passado por sua inércia, os adversários do barroquismo deveriam reagir através da força da mídia. Maranhão propõe ainda a realização de um programa conduzido por jornalistas sérios em que representantes de diferentes setores, especialistas em seus departamentos, fariam discussões e proposições de políticas públicas com o fito de reduzir os gastos e dinamizar o Estado brasileiro.
Tenho minhas discordâncias em relação ao conteúdo do livro. Em primeiro lugar, acredito que, talvez por ter acumulado artigos de sua autoria de diferentes momentos, em que sua reflexão poderia estar se movendo em direções diferentes (o que é bastante natural), os textos às vezes parecem utilizar termos e ideias em sentidos distintos e incompatíveis. Dependendo do momento em que se lê, vemos Maranhão alertar que o Brasil precisa de um centro equilibrado contra a direita e a esquerda radicais, enquanto, em outros, lemos que o conservadorismo e a direita são a solução; em determinado momento, o autor se expressa em tom positivo em relação à política de esquerda Marina Silva – o que duvido que faria agora; entre outros pontos que talvez merecessem ser editados em uma eventual revisão com vistas a um teor mais uniforme.
O receituário que o livro sugere em seus últimos capítulos deve se ressentir de que pouco há que esteja mais tomado pelos paradoxos e mentiras que Maranhão atribui ao barroquismo do que o Jornalismo brasileiro. Vejo que sua preocupação é hoje ao menos parcialmente suprida por influenciadores, think tanks, publicações no mercado editorial e veículos alternativos que têm desafiado a hegemonia e apresentado resistência ao pensar reinante nos círculos da elite cultural, que, como o próprio Maranhão diria, exibe perturbadora mediocridade.
Quanto à proposição central do livro acerca da essência barroquista por detrás de nossos problemas, penso que esteja exaustivamente bem sustentada. Entendo que não se pode ignorar o impacto de uma mentalidade reinante por todos os séculos de colonização, antecedendo a emancipação do Brasil como nação, para compreender devidamente o país. O Barroco é parte essencial disso – ainda que eu considere que todos os fatores institucionais, históricos e políticos que os diversos intérpretes do Brasil já elencaram (a origem patrimonialista proveniente de Portugal, a escassez de desenvolvimento do self-government por razões institucionais, sociais e geográficas; a força do escravismo prolongado; a diluição da lógica representativa pelo Positivismo e por aí vai) tenham pelo menos tanto peso quanto ele.