Como um livre comércio pragmático pode influenciar o surgimento de instituições inclusivas?
Pessoas que estudam em cursos de humanas em universidades brasileiras, sejam elas públicas ou privadas, sempre escutam que o livre comércio gera desigualdade e, sobretudo, que o livre comércio é zerar tarifas, barreiras comerciais e se abrir totalmente ao mundo sem avaliar qualquer situação. Essa é uma das afirmações mais equivocadas já reproduzidas pela academia brasileira na área de humanas, que, por sua vez, exibe pouco conhecimento sobre este assunto.
O economista norte-americano, prêmio Nobel de economia em 2001, Joseph Stiglitz é autor do livro conhecido como Livre Mercado para Todos e nos ajuda a compreender como foram as tratativas entre os países membros da OMC (Organização Mundial do Comércio) e, anteriormente, do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) na luta por maiores trocas econômicas no mercado global. Além disso, Stiglitz reflete sobre um livre comércio pragmático, que atenda aos anseios de todas as nações, a fim de que haja crescimento econômico mútuo. Neste artigo, vamos entender o pensamento de Stiglitz, refletir sobre as rodadas de negociação comercial e fazer uma alusão a Daron Acemoglu e o conceito de instituições inclusivas.
A história do comércio global pós-Segunda Guerra
Após a vitória dos aliados diante do eixo na Segunda Guerra Mundial, houve também uma vitória política e econômica. A democracia liberal, a economia de mercado livre e o internacionalismo venceram a batalha diante da autocracia, do corporativismo/estatismo econômico e do nacionalismo. Com isso, em 1947, o GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) foi criado com o intuito de estabelecer um conjunto de regras destinadas a promover o comércio internacional através da redução de tarifas alfandegárias e de outras barreiras comerciais entre os países signatários. Quando eu menciono reduzir, estou dizendo sobre tarifas mais baixas e menos barreiras comerciais, não zerar todas as coisas – aqui não estamos tratando de libertarianismo, mas sim de liberalismo. Dentro do GATT, só havia 23 países e eles se comprometiam nas trocas comerciais e no cooperativismo econômico.
O principal objetivo do GATT era uma redução progressiva das tarifas alfandegárias sobre produtos importados. Isso foi alcançado através de rodadas de negociações nas Rodadas do GATT, onde os países membros se comprometiam a reduzir suas tarifas em troca de concessões similares por parte de outros países. Falando nas rodadas do GATT, ao longo de sua existência, houve oito rodadas de negociações comerciais, começando com a Rodada de Genebra em 1947 e terminando na Rodada do Uruguai entre 1986-1994. Cada rodada tinha o objetivo de abordar diferentes questões comerciais, como tarifas, subsídios agrícolas e barreiras não tarifárias. Inclusive, a Rodada do Uruguai foi das mais vitoriosas para o comércio internacional, visto que questões como agricultura (redução de subsídios), têxteis, serviços, propriedade intelectual e regras sobre investimentos foram incluídas pela primeira vez nas discussões multilaterais. O impacto foi profundo no comércio internacional, promovendo maior liberalização e previsibilidade nas relações comerciais entre os países. Joseph Stiglitz comenta justamente sobre duas rodadas comerciais que mais chamam atenção,: a do Uruguai, a mais vitoriosa, e a de Doha, a rodada que marcou um declínio nas negociações comerciais multilaterais.
Após a vitoriosa Rodada do Uruguai e do entusiasmo liberal com o mundo, principalmente com a queda de diversos regimes autoritários que ainda perduravam, o GATT foi substituído pela OMC, com a ideia de incluir mais países nos acordos e expandir a liberalização comercial para todas as nações. Porém, apenas seis anos depois da criação da OMC, surge uma das primeiras rodadas comerciais mais abrangentes e ela trouxe diversos incômodos para os planos dos entusiastas ao multilateralismo comercial. Stiglitz, em seu livro, comenta que a Rodada de Doha expôs a “hipocrisia” dos países desenvolvidos, uma vez que eles pregavam menos subsídios, menos tarifas para importação e exportação, além de menos barreiras comerciais, mas estavam fazendo justamente isso. Enquanto os países em desenvolvimento se esforçavam para tentar se enquadrar nessas novas regras, os países desenvolvidos estavam se contradizendo e estavam praticando tudo aquilo que condenavam. Um exemplo claro dessa hipocrisia foram os EUA, que, durante o governo Bush, adotaram políticas que, em certos setores, contradiziam a retórica de livre comércio. A implementação de subsídios agrícolas significativos através da Lei Agrícola de 2002, conhecida como “Farm Bill”, foi amplamente criticada por distorcer o mercado global de produtos agrícolas, beneficiando os agricultores americanos em detrimento de seus concorrentes estrangeiros. Além disso, os EUA também aumentaram tarifas sobre certos produtos, especialmente aço, durante esse período. Em 2002, a administração Bush impôs tarifas de até 30% sobre uma série de produtos de aço importados, alegando proteger a indústria siderúrgica doméstica de concorrência considerada desleal.
Os países em desenvolvimento, então, viram que estavam sendo “boicotados” e a Rodada de Doha teve enormes dificuldades justamente por conta da falta de consenso entre as nações participantes. Um dos grandes impasses da Rodada de Doha foram as negociações a respeito de uma redução nos subsídios agrícolas. Os países em desenvolvimento buscavam a redução significativa dos subsídios agrícolas concedidos pelos países desenvolvidos, o que ajudava a distorcer o comércio global e o sistema de preços ao subsidiar excessivamente a produção agrícola doméstica. Esses subsídios não apenas beneficiavam os agricultores nos países desenvolvidos, permitindo-lhes vender seus produtos a preços mais baixos no mercado internacional, como também prejudicavam os agricultores em países em desenvolvimento, que enfrentavam concorrência desleal, além dos famigerados “dumpings econômicos” acumulados pelos países. Até os dias de hoje, não há um consenso dentro de acordos comerciais multilaterais que visassem a uma maior liberalização comercial.
O livre comércio pragmático pode ser bom para todos
O economista norte-americano Gregory Mankiw diz que um dos dez princípios básicos da economia é que o comércio pode ser bom para todos. Essa é uma frase que ilustra que as trocas comerciais podem ser importantes para o crescimento econômico de um país. Um exemplo recente que ilustra essa situação é o México. Um país assolado pelo populismo, pelo paternalismo e pelo corporativismo resolveu, a partir da metade da década de 1990, fazer um acordo de livre comércio com os EUA, o famoso NAFTA (Tratado de Livre Comércio da América do Norte). O resultado desse acordo foram vários superávits seguidos na balança comercial, chegando a patamares históricos durante a década de 1990, como em 1995, quando obteve registro positivo de US$ 1,07 bilhão. Além disso, o México experimentou um crescimento econômico sustentado na casa de 4% ao ano, e também houve redução na pobreza, com a geração de emprego e renda, mesmo enfrentando a crise do “Efeito Tequila”, que foi uma crise provocada pela falta de reservas cambiais, resultando na desvalorização da moeda nacional, o Peso, entre 1993 e 1994.
No entanto, Joseph Stiglitz ressalta a importância de um livre comércio pragmático, atendendo às necessidades dos países em desenvolvimento. Por isso, Stiglitz acredita num tratamento diferenciado, ou seja, que os acordos comerciais, como redução nos subsídios, nas tarifas e nas barreiras comerciais, devem ser honrados gradualmente, até porque uma adesão automática pode prejudicar o comércio local, que ainda está sendo desenvolvido, e provocar o que o economista norte-americano chama de “dumping econômico”, ou seja, uma perda econômico-comercial. A fim de evitar esse “dumping”, Stiglitz comenta que essa flexibilidade na adesão aos acordos é fundamental para que o livre comércio possa se desenvolver de forma sustentável.
Um cenário de livre comércio exige uma formulação positiva no ambiente de negócios a fim de que as trocas comerciais sejam estimuladas. Isso tem uma relação muito forte com o conceito trazido por Daron Acemoglu, no livro Por que as nações fracassam?, que fala em instituições inclusivas. Quando se formula um ambiente de negócios inclusivo, a fim de trazer maior previsibilidade comercial e econômica, uma nação pode acumular crescimento e, posteriormente, um desenvolvimento econômico sustentável. Isso só é possível graças a uma preocupação com esses fatores mencionados anteriormente, que são, sem sombra de dúvidas, os maiores motores para o aumento da produtividade de um país.
Portanto, ao longo deste artigo, podemos notar que o livre comércio não é algo que foi imposto e não significa “libertinagem econômica”; pelo contrário, a ideia é favorecer as trocas comerciais a fim de que os países possam ter crescimento econômico. Além disso, é defendida a ideia de um livre comércio pragmático, em oposição ao dogmatismo que muitos tentam implementar. Outro ponto é que as negociações comerciais estão travadas por conta das contradições dos países, favorecendo o protecionismo e o nacionalismo. Um livre comércio, segundo Stiglitz, deve levar em consideração todos os fatores, inclusive aqueles que podem contribuir para o crescimento econômico de um país em desenvolvimento, e, por isso, o livre comércio deve ser pragmático. Por fim, um livre comércio pragmático ajuda na produtividade de um país, resultando em crescimento econômico e também na formação de instituições inclusivas.