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Rumo ao desconhecido? – Anotações retrospectivas sobre a marcha à ré brasileira

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Para estupefação perene de todos aqueles que têm minimamente no lugar a memória de pelo menos os últimos 20 anos de história política do Brasil, consuma-se neste janeiro de 2023 uma verdadeira abominação moral: o retorno do lulopetismo ao poder. Começa o terceiro governo Lula.

A leitura destas linhas pareceria um grande delírio há não muito tempo, mas é a pura realidade. Como foi possível que chegássemos a este ponto? Como foi possível que, depois de tudo que aconteceu, de tudo por que lutamos, a estrela vermelha voltasse a pairar sobre o Poder Executivo, através de seu líder maior, liberto por uma tecnicalidade jurídica, produto de mais uma das diversas reversões de entendimento de um Supremo Tribunal Federal majoritariamente indicado por ele e sua sucessora Dilma Rousseff? Como foi possível que por mais uma vez triunfasse o discurso estatista, que dissocia a responsabilidade fiscal da responsabilidade social, que confunde impeachment com golpe de Estado?

Permito-me pedir licença, diante desta profunda infelicidade consumada, para fazer, em vez de um balanço do último ano, um balanço um tanto pessoal de um período histórico: o da jovem epopeia da “nova direita”, este fenômeno que, dos escombros do mensalão, do petrolão, da Operação Lava-Jato e da nova matriz econômica dilmista, ofereceu aos brasileiros quadros intelectuais e políticos de referenciais autodeclarados liberais clássicos, libertários ou conservadores, questionando a cleptocracia patrimonialista do Partido dos Trabalhadores. A bem da verdade, a breve história da minha geração.

Na década de 2010, ainda cursando minha graduação universitária, travei contato com esse universo virtual de interessados em trocar ideias sobre correntes políticas alternativas aos diversos tons de vermelho prevalecentes. Aproximei-me do Instituto Liberal em 2014, quando o PSDB ainda era a opção eleitoral de todos que rejeitassem o radicalismo lulopetista. Pertenço a uma geração que se sentia sufocada em uma redoma social democrata e submarxista e, através da Internet, pôde estreitar relacionamentos com quem experimentava o mesmo sentimento. Eu acreditava na justiça, importância e/ou utilidade de ideias como a descentralização do poder, a valorização da herança cultural do Ocidente para dignificar a vida humana, a propriedade privada, a livre iniciativa, a diminuição do Estado, o patriotismo e o individualismo – sem prejuízo à solidariedade. O PT e o lulismo eram o oposto de tudo em que acreditávamos. Eu estava disposto, ponderando ganhos e perdas, a conceder apoio estratégico a fisiológicos, tucanos, cretinos, o que fosse preciso para derrotar o PT, a mais poderosa encarnação nacional de tudo que rejeitava. Em nosso contexto, éramos a “contracultura”, porque quem realmente bradava contra o discurso dominante em universidades e meios de comunicação éramos nós.

Por meio de um estelionato eleitoral, o PT continuou no governo, mas a verdade se escancarou – não tanto por meios racionais, mas pelo impacto no bolso dos cidadãos de uma recessão histórica decorrente dos desvarios dilmistas e sua insistência em desafiar as leis da economia. Integramos e recheamos, com nossos cartazes, divulgações, slogans, carros de som, as manifestações mais robustas que o país já viu para derrubar o governo Dilma e extinguir o projeto de poder lulopetista. Não tenho a ilusão de que o impeachment foi apenas obra da “nova direita”; no entanto, não há dúvida, fomos todos protagonistas dessa história. Como disse em fevereiro de 2021, é inegável que nossas ideias conquistaram um espaço que não tinham antes. Conseguimos aumentar a pluralidade das correntes de opinião capazes de reverberar na Nova República. Não é possível, em sã consciência, acreditar que isso não significou nada.

Ao impeachment, em 2016, sobreveio o governo do vice do PT, o emedebista Michel Temer. Em retrospectiva sobre seu breve mandato, ponderei que Temer tinha nada mais que a obrigação moral de fazer seu governo dar certo, como teria o funcionário que acompanhava o colega que sujou a sala e, depois que o colega é demitido, fica com o encargo de varrer a sujeira. Mesmo assim, era uma tarefa difícil, e ele conseguiu nos retirar do âmago da recessão, reduzir significativamente a inflação e aumentar o PIB, deixando o desemprego em leve queda. Também conseguiu reformas muito importantes para o futuro, das quais os governos passados nunca chegaram perto, como a reforma trabalhista, a reforma do Ensino Médio, as mudanças nas regras internas de governança de empresas estatais e a criação do teto de gastos (do qual hoje já claramente nos despedimos!). Foram mudanças de espírito voltado para a liberdade e a responsabilidade fiscal. Acuado por denúncias que erodiram seu capital político e deficiente na comunicação, não foi capaz de aprovar a Reforma da Previdência e de atacar efetivamente o cerne da dor de cabeça fiscal do país, nem avançar tanto na senda das privatizações.

Com Lula preso, tivemos em 2018 uma eleição em que o PT, através de Fernando Haddad, tentava retomar o poder. Seria impossível para mim, como para muitos de meus pares, admitir tamanho retrocesso. Não lutamos para derrubar Dilma e pôr fim ao longo domínio lulopetista para considerar minimamente admissível que tais forças retomassem as rédeas do Planalto. No primeiro turno, houve divisão; muitos liberais preferiram apoiar o então tucano Geraldo Alckmin, o candidato do Partido Novo João Amoêdo ou o economista do MDB Henrique Meirelles. O candidato favorito para disputar com o PT, porém, era Jair Bolsonaro. Sustentei à época da eleição que ele não tinha origem no pensamento liberal-conservador, mas soube sentir a emergência da “onda” daquilo que alguns de nós chamamos de “nova direita” e se aproximar, em algum nível, de seus intelectuais, militantes e discursos. Tornou-se um fenômeno de massas, não tanto por isso, mas pela aceitação que seu discurso popularesco e duro com a criminalidade conquistou na era dos memes. A biografia de Bolsonaro era a de um líder sindical militar há décadas na vida política de baixo clero, que admirava o regime autoritário das décadas de 60 a 80 e tinha uma perspectiva econômica estatizante; nunca teve qualquer ligação com as nossas ideias e nunca demonstrou qualquer capacidade gestora ou liderança séria. Porém, ele “adotou” as nossas teses em sua campanha, montando uma plataforma de governo que claramente as contemplava, e prometeu dar ouvidos à coalizão de forças técnicas e políticas que agregaria para auxiliá-lo.

Graças a essa coalizão de forças e a essa tentativa de dialogar com a “nova direita”, o programa de governo de Bolsonaro elencava o foco no liberalismo econômico como solução que “reduz a inflação, baixa os juros, eleva a confiança e os investimentos, gera crescimento, emprego e oportunidades”; o comércio livre com o mundo inteiro, sem viés ideológico; o desaparelhamento das estruturas federais; a redução de ministérios; o combate à indisciplina em sala de aula, à doutrinação ideológica e uma reforma no currículo, estimulando o empreendedorismo; reforma na legislação penal, para endurecer as penas contra criminosos, e do Estatuto do Desarmamento; tipificar como terrorismo a invasão de propriedades rurais perpetrada por grupos como o MST; estabelecer um plano franco de privatizações de estatais; Reforma da Previdência; simplificação tributária; aprofundamento da Reforma Trabalhista; independência formal e política do Banco Central, entre outras ideias importantes e, no geral, compatíveis com nossos princípios e valores.

Limitei-me publicamente, no primeiro turno, ao combate contra o PT, o inimigo principal, como não poderia deixar de ser. Cada um, mesmo dentro da “nova direita”, que fizesse suas escolhas, tão sobriamente quanto possível. No segundo turno, a opção era Bolsonaro, o PT ou anular. Militei abertamente pela necessidade de tentarmos a opção Bolsonaro, avesso que era à tese da anulação. Não via sentido algum em manter neutralidade, fingir que todos aqueles aspectos positivos não estavam no programa da chapa Bolsonaro-Mourão e pretender que sua plataforma era a mesma coisa que o retorno do lulopetismo que desgraçou o Brasil, com seu império do crime e patrocínio internacional ao autoritarismo de esquerda. Não tenho a pretensão de ser o dono da razão a esse respeito, e apraz-me enfatizar que, se pretendemos viver em uma democracia, precisamos respeitar a existência de outras alternativas e outras opções quanto ao que fazer com o próprio voto; no entanto, permito-me respeitosamente salientar que todos os outros três candidatos escolhidos no primeiro turno por muitos liberais apoiaram o PT nas eleições deste ano.

Nunca fui idólatra de Bolsonaro ou de sua família. Ao contrário; o deputado Eduardo Bolsonaro já mentiu de forma completamente despudorada sobre o teor de meu primeiro livro em 2017, a versão inicial do Guia Bibliográfico da Nova Direita, o que “disparou”, já naquele ano, uma intensa militância virtual contra minha obra. Nunca tive motivos para julgar que o clã Bolsonaro representava a “salvação da política brasileira”. Porém, era Jair Bolsonaro o político que, com chances concretas de vitória sobre o PT, “sinalizava”, no mercado das ideias, para agendas mais próximas à nossa plataforma.

Assim como Carlos Lacerda e a UDN, nos anos 60, não encontravam opção em seu próprio seio, com formação consistentemente liberal, que pudesse fazer frente ao varguismo, optando por utilizar o “atalho” Jânio Quadros, os liberais conservadores da “nova direita” tentaram utilizar Jair Bolsonaro para levar sua agenda adiante. Há quem dissesse à época e diga hoje que teria sido preferível a anulação. Há quem diga que o maior erro que cometemos foi ter apostado as fichas em alguém que não era realmente do nosso meio, em um velho político que abraçou repentinamente nossas ideias e depois as atraiçoou, em vez de termos feito um longo trabalho de germinação de lideranças intelectuais e políticas cujos frutos só veríamos em décadas. Particularmente, penso que é fácil ser engenheiro de obra pronta. Tínhamos uma eleição pela frente e uma decisão a tomar. Estive entre os liberais que apostaram em Bolsonaro e não acho que o erro tenha sido esse. Nosso grande erro foi a relação que se estabeleceu entre muitos liberais e o governo, que, em vez de sóbria e principiológica, perdeu-se no “tribalismo” personalista.

Em abril de 2020, sustentei que o voto, uma aposta política feita de acordo com o que permitem as circunstâncias em que se verifica, nunca deve representar uma carta branca conferida ao seu destinatário. Não é um compromisso de submissão, não é uma declaração de subserviência. Pontuei que precisávamos dar apoio às reformas e não encarnar, ao lado das esquerdas, a oposição sistemática ao governo que elegemos. Deveríamos tentar ajudá-lo enquanto se mantivesse minimamente fiel às agendas que pretendíamos consagrar nas urnas, aceitando certos aspectos da personalidade limitada do presidente, que poderiam ser administráveis. Chama-se realpolitik.

Porém, já em 2019, o governo não se ajudou. Escrevi que, desde os primeiros meses, com ampla margem da população a favor, apesar de iniciar trabalhos meritórios de seus quadros técnicos, ter adotado uma postura mais dura com a tirania chavista na Venezuela, ter diminuído os índices de criminalidade (trabalho, enfatize-se, do ministério de Sérgio Moro), a gestão Bolsonaro já se via, graças à atuação de um núcleo mais radical – que muito pouco tinha e tem de liberalismo e conservadorismo efetivamente -, envolta em disputas de ego e espaço e autofagias de toda sorte, acusações de golpismo militar ao vice-presidente e autossabotagens infindáveis. Era razoável esperar que o tempo remediasse isso, mas tais disputas inúteis, com direito à desqualificação dos subordinados nos ministérios que, teoricamente, teriam autonomia; às constantes e desastrosas campanhas contra os próprios correligionários movidas pelo antiliberal Carlos Bolsonaro, o “vereador federal”, eleito para atuar no Rio de Janeiro, mas que não abdicava das intrigas “palacianas”; e, principalmente, à ampla indisposição do presidente de conter essas insanidades, acenderam um enorme sinal amarelo.

Pontuei ainda que o governo era, mediante o cultivo incessante dessas confusões internas e a falta de exploração do capital político para divulgar as reformas e agendas necessárias – preferindo o presidente, em vez disso, viver a divulgar suas fotografias em “motociatas” e multidões -, o principal responsável por fragilizar progressivamente a si mesmo a ponto de se ver totalmente instado a ofertar cargos a parlamentares condenados no mensalão e no petrolão, em posição de maior vulnerabilidade do que estaria se agisse de outro modo. Movido pelo velho patrimonialismo que os liberais querem combater há décadas, o presidente ofereceu uma embaixada a seu filho Eduardo, bem como o então partido do governo ajudou a desidratar a reforma previdenciária. Depois, Bolsonaro abandonou o PSL e decidiu governar sem que sua base aliada efetivamente “existisse” e funcionasse no Congresso. O Parlamento, presidido por figuras que não exatamente morriam de amores pelo presidente, foi ganhando força e nada disso parecia que terminaria bem.

A família Bolsonaro começou a trocar afagos com o populismo antiliberal de Steve Bannon, que disparou sarcasmos contra a agenda “chicaguista” de Paulo Guedes. Também critiquei esse movimento. Para além de tudo isso, o presidente participou e se disse representado pelos realizadores de uma manifestação flagrantemente golpista, defendendo fechamento imediato do STF e exaltando o AI-5 – e as imagens e áudios não permitem estripulias retóricas para negar esse fato. Nunca houve nenhuma ação ditatorial no governo Bolsonaro, mas a retórica ambígua, materializada através de flertes como esse, alimentou, já agora, nas últimas semanas de governo, apelos em frente aos quartéis por uma solução intervencionista militar que não viria, porque não estamos mais nos anos 60 do século XX. Nunca houve viabilidade nessas tão declamadas ações de força; o apoio das Forças Armadas é insuficiente e o respaldo internacional seria simplesmente nenhum.

Para piorar tudo, o mundo enfrentou, justamente naquele momento de avanço das ideias liberais no Brasil, atônito, a crise do coronavírus, perante a qual o presidente da República, apesar de a estrutura do Estado ter adotado as ações que precisava adotar e a vacinação ter acontecido, teve uma postura inapropriada e nada sóbria, estimulando aglomerações e formulando gracejos indecorosos. Tivesse ele se portado diante dos enormes desafios dos seus quatro anos de governo como se portou no segundo turno da disputa eleitoral de 2022 e provavelmente teria obtido a reeleição com polpuda vantagem.  Concomitantemente, os liberais, diante de uma daquelas situações de emergência e insegurança que põem à prova suas teses e que alguns autores liberais admitem que podem ensejar aumentos temporários de abrangência do poder do Estado, encontraram mais uma arena para se dividirem e digladiarem, em meio à generalizada insensatez da onda avassaladora de desentendimento e espetacularização midiática da competição política diante de um problema que deveria ser enfrentado pela humanidade com o mínimo de ponderação. Desde o começo da pandemia, defendi que o tensionamento político fosse reduzido para que pudéssemos enfrentar esse problema mundial com sinergia e alguma dose de paz. Infelizmente, o próprio presidente não tornou isso possível. Coroando essa sequência de horrores, Bolsonaro resolveu fazer a mudança na direção da Polícia Federal, implodindo de imediato a relação com outro ministro nuclear de sua equipe, o próprio Moro.

A “nova direita” como fenômeno teórico seguia e segue existindo enquanto estivermos aqui falando e escrevendo, mas o movimento que se aglutinou em torno do impeachment de Dilma tensionou-se gravemente e dividiu-se sob o influxo dos excessos e personalismos da nossa política. Muitos resolveram simplesmente aplaudir tudo que dissesse respeito tanto ao governo quanto à estrutura virtual de militância e influenciadores que se formou para ampará-lo.  Passar o primeiro ano do mandato com o filho do presidente, vereador no Rio, incensando as redes sociais, com direito a acusações de golpismo ao vice-presidente da República? Estimular multidões e fazer comentários jocosos durante a maior crise sanitária do mundo em um século? Estouro do teto de gastos para bancar auxílio até as eleições? Tudo bem. Canais de Youtube que divulgavam terraplanismo e fizeram carreira atacando o liberalismo e o próprio Instituto Liberal, como o Terça Livre? Aliados em defesa da liberdade – e por aí vai. Não concordo com essa postura de aplauso submisso e nada disso para mim representa as bandeiras que defendíamos em 2014.

De outro lado, porém, muitos, incomodados com esses problemas, passaram a agir como se nada que defendêssemos em 2014, 2015 ou 2016 tivesse valido a pena. De repente, num passe de mágica, os sociais democratas são os melhores homens públicos brasileiros e nosso sonho de consumo, as pautas identitárias vitimistas que detestávamos são na verdade fundamentais, o Judiciário não está atuando de forma autoritária – a censura e a tirania do STF e do TSE são pura ilusão de ótica -, o PT na verdade lidera uma coalizão democrática e o fascismo nos espreita debaixo da cama para exterminar homossexuais e negros. Calar a boca de quem diverge não é mais ditatorial; é higiênico. Houve quem quisesse tensionar ainda mais o delicadíssimo ambiente pandêmico clamando pelo impeachment de Bolsonaro junto com a esquerda (até com bem mais vontade do que ela) – o que me parecia flagrante contradição, já que, se o presidente estava errado em estimular aglomerações naquele momento, também o deveriam estar os que convocavam manifestações de rua para depô-lo.

Enquanto nos dilacerávamos por essas questões estéticas e personalistas, a imprensa e os adversários da “nova direita” aproveitavam cada peripécia para destruir a nossa reputação e alimentar a narrativa do “fascismo” imaginário que ameaçava a democracia brasileira. Enquanto nos entrechocávamos nessa esbórnia esquizofrênica, a “boiada” passava. Augusto Aras, Kássio Nunes, o admirador do Toffoli André Mendonça, indicados para PGR e STF. A Lava-Jato sendo desmantelada. Lula solto.

Já em 2019, escrevia que não concordava com os militantes bolsonaristas que diziam que o presidente Jair Bolsonaro não poderia falar nada sobre a reversão da prisão em segunda instância e outros gestos autoritários do STF, em desenvolvimento desde pelo menos a amputação do impeachment de 2016, para não “desafiar outro poder e desrespeitar os ministros”. O presidente não podia intervir no STF, mas ele representava uma agenda, foi eleito para isso e a entidade abstrata chamada “governo” também é composta, na prática, por sua base aliada parlamentar. O presidente poderia e deveria declarar seu apoio aos esforços para revisar o entendimento através do Legislativo e mobilizar seus apoiadores para tal propósito.

Há muito, muito tempo cobrávamos uma reação do Legislativo aos arroubos autoritários do STF. Quando Toffoli e Alexandre de Moraes impuseram à Crusoé uma censura digna de AI-5 e fizeram um circo patético invadindo a residência de pessoas que fizeram posts inofensivos aventando uma terrível trama conspiratória contra o Supremo, eu disse que, para mim, dali em diante, ambos seriam “ex-ministros em exercício”. Se o pedido de abertura da CPI da Lava Toga contra Toffoli fazia referência fundamentada a esses episódios, seria absoluta incoerência, quando alguém enfim tomava uma atitude, ser contra. Não houve movimento suficiente a favor dessa reação.

Omissão e falta de organização diante de questões fulcrais, submersão em cegueiras passionais de parte a parte e posturas flagrantemente inadequadas do presidente da República deixaram uma parcela significativa da população com a sensação de que “essa direita que está aí” não sabia e não podia governar. Sim, o dito establishment sempre explorava toda possibilidade, e inventava algumas, para semear sua perfídia contra a direita que não queria sequer ver nascer. Precisamos combatê-los. Porém, o que primeiro efetivamente podemos mudar são os nossos erros.

O maior erro que cometemos, na minha opinião, e volto a isso, foi termos cedido a espíritos de manada, de tribos, de um lado e de outro, e esquecido as ideias que defendíamos. Não foi ter elegido Bolsonaro, mas ter abandonado o trabalho de consolidação de projetos e formação de novas lideranças em todas as esferas da sociedade para preferirmos a submersão em palavras de ordem vazias e contendas inúteis. Com isso, perdemos tempo no labor que ainda nos resta fazer a longo prazo e nos prejudicamos na disputa de imagem e reputação.

Não é que o governo Bolsonaro tenha sido terra arrasada; é falso e os números e exemplos não permitem mentir a respeito. Tivemos avanços importantes na governança digital, a reforma previdenciária foi aprovada (apesar dos favorecimentos a militares), a autonomia do Banco Central foi conquistada, a Lei de Liberdade Econômica foi aprovada, avançou a privatização da Eletrobras (apesar dos “penduricalhos” do projeto) e de ao menos 30% do que o ministro Paulo Guedes havia prometido em 2018, o Marco do Saneamento Básico foi aprovado pelo Congresso, nossos resultados econômicos não foram desastrosos para a média dos diversos países que enfrentaram problemas em decorrência da pandemia, os financiamentos do BNDES ao exterior continuaram inexistindo (como no governo Temer), houve avanços de facilitação no campo da burocracia. O governo não soube, no entanto, apontar e explicar essas melhorias; o debate eleitoral em 2022 se perdeu em uma discussão quase inteiramente sobre auxílios e benefícios assistencialistas. O ruído de todos os comportamentos equivocados que apontei acima se sobressaiu. Isso também não quer dizer que somos os únicos culpados, ou que o presidente anterior é o único culpado pela volta do PT; a responsabilidade, no fim das contas, é individual. Cada um que, com seu voto ou sua retórica falaciosa de que o lulopetismo representaria a “volta da democracia” e teria uma conduta fiscalmente responsável baseada em nada – ouviram, Meirelles? Landau? Armínio Fraga? -, contribuiu diretamente para esse desfecho é responsável por ele.

Com isso, chegamos a 2022 com o inacreditável retorno de Lula. No primeiro dia de governo Lula, já tivemos: decreto para dificultar o acesso às armas e previsão de nova regulamentação para o Estatuto do Desarmamento (certamente, na linha contrária à liberal); Haddad discursando contra redução de impostos e derrubando a Bovespa;  promessa de amplo aporte de recursos – nossos, claro – nos Correios (que o governo anterior não privatizou e este muito menos o fará); ministro da Educação exaltando o maoísta Paulo Freire, patrono da ignorância; o fim oficial de estudos e propostas para privatizações de oito estatais em andamento, algumas desde o governo Temer; e a retirada de poderes da Agência Nacional das Águas, preparando a reversão dos grandes avanços do Marco do Saneamento Básico. Como esperado, todas medidas e declarações, sem exceção, que privilegiam o controle do Estado sobre a vida do cidadão, o inchaço do setor estatal para atender a interesses de aliados parasitas e o fechamento de portas para a cooperação imprescindível da iniciativa privada. É o “L” em ação pelo retrocesso do Brasil.

E agora? Bem, em 1950, mesmo depois da ditadura, da perseguição, da violência, o tirano Getúlio Vargas voltou à Presidência da República. Carlos Lacerda estampou na capa de seu jornal Tribuna da Imprensa a manchete “Rumo ao desconhecido”. É claro que Vargas era mais do que conhecido de todos, todos sabiam quanto valia e o que representava; mas o Brasil e o mundo viviam um momento diferente. Não mais o auge do fascismo, mas o pós-guerra e a ascensão de um populismo mais esquerdizante, sem espaço para simpatias com os totalitarismos anteriores. Não mais a total censura, mas a presença de uma oposição aguerrida. Que seria de Vargas, o antidemocrático por excelência, naquele cenário novo, com aquela coalizão de forças? Era o mistério a solucionar.

Poderíamos usar manchete similar para o novo governo Lula. Lula e o lulopetismo, conhecemos muito bem. Sabemos quanto valem. União Brasil, PSD e MDB ganharam um punhadinho de ministérios cada um. Juntos, somam 8 pastas das 37 do governo Lula. Os outros ministérios estarão todos divididos entre o PT (maciçamente), o PSB, o PCdoB, a Rede e até o PSOL. Que nossos comunicadores cessem de palhaçada: não é um governo “da Frente Ampla, da união nacional, da paz e do amor, do bem e da justiça sobre a Terra, da democracia contra a ditadura”. É um governo de esquerda e um governo petista, revanchista e belicista; só isso. Porém, é, desta vez, um governo que convive com uma crise muito maior entre os poderes republicanos e com um Supremo Tribunal Federal detentor de autoridade inflada, especialista em manusear a Constituição como bem deseja, contando com a colaboração de um Legislativo pusilânime e omisso. Por outro lado, é um governo Lula que se elege fora do período do boom das commodities, tendo bolsonaristas, liberais e quejandos da “nova direita”, somados a toda a massa de antipetistas, indecisos e anuladores de voto como oposição mais ou menos veemente, como o mandatário populista nunca viu antes na história deste país. Os diversos governos de esquerda eleitos no mesmo período na América Latina estão afundando em popularidade.

Diante desses prós e contras, como se portará Lula? Que será exatamente deste governo, com elementos tão conhecidos, mas ao mesmo tempo em condições tão diferentes e com tantas perguntas a responder? Principalmente: que será de nós, liberais? Organizar-nos-emos em torno de bandeiras, pautas, programas claros? Formaremos lideranças consistentes? Saberemos apresentar e enraizar um projeto? Abdicaremos da incipiência e da balbúrdia personalista? Mistérios. Rumo, pois, ao desconhecido.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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