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“Gumersindo Bessa – um talento polimorfo”: tesouros do liberalismo sergipano

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O leitor sabia que a expressão “à beça”, que corriqueiramente empregamos em nossas conversações, foi inspirada em um liberal brasileiro? Essa foi apenas uma das curiosidades com que travei contato através do livro Gumersindo Bessa – um talento polimorfo, lançamento de 2018 da Criação Editora, organizado e assinado pelo servidor público e professor de Direito Rafael Araújo de Sousa e com prefácio do também docente Henrique Ribeiro Cardoso.

A obra de Rafael Araújo, como ele mesmo externou em dedicatória que generosamente me ofereceu, ao abordar a vida e o trabalho do juiz, desembargador, advogado, jornalista e liberal sergipano Gumersindo Bessa (1859-1913), procura “gerar admiração pela coragem ‘à beça’ do autor em enfrentar os poderosos de seu tempo, na defesa intransigente da liberdade de expressão, democracia e propagação do saber”. Não resta dúvida de que o livro consegue de forma muito satisfatória evidenciar as qualidades de seu objeto de estudo.

Estruturalmente, o trabalho, conforme explica o organizador, “é composto por quatro tópicos. No primeiro, explicamos a importância da elaboração de estudos sobre a vida e obra de Gumersindo Bessa. No segundo, trazemos uma biobibliografia sucinta do jurista, com os dados que pudemos colecionar ao longo de dois anos de pesquisas. No terceiro tópico, são retratados em apertada síntese alguns dos textos reunidos e, por fim, no quarto tópico, se explicam quais os critérios usados para que as obras fossem colecionadas. Em seguida, após uma série de notas explicativas de trechos da primeira parte do livro, cuja consulta se indica para melhores esclarecimentos acerca dos temas versados, trazemos a primeira parte dos textos do autor Gumersindo Bessa”, em uma já volumosa seleta que se promete complementar em publicações posteriores.

Rafael Araújo afirma que o que fundamentalmente o moveu a se preocupar com essa compilação e com essas apreciações introdutórias à obra de Gumersindo Bessa foi a quase completa ignorância acerca de seu pensamento, sua vida e sua estatura, ainda mais lamentável mediante a constatação de que também se dá em seu estado natal. Conforme relata, a maioria dos sergipanos conhece o nome de Bessa como sendo a denominação do Fórum de Aracaju e mais nada. De acordo com Rafael, nos meios universitários não há grande vantagem nesse particular; estudantes de História e Direito entram e saem das faculdades sem nada saber sobre esse personagem tão interessante.

Somam-se a esse problema a consequente falta de cuidado com a preservação dos documentos produzidos pelo jurista sergipano e a ausência de esforços por reunir suas publicações. Lamentavelmente, toda a obra de Bessa consiste em artigos e polêmicas jornalísticas, não tendo ele jamais publicado um livro. Investido de dedicação missionária, Araújo resolveu que seria preciso que alguém se encarregasse a sério dessa tarefa e aceitou-a como sua. Só podemos louvar o resultado. O organizador expõe com riqueza de detalhes a trajetória biográfica do personagem, comprovando com fartas citações o quanto se debruçou sobre a bibliografia necessária para reconstituí-la.

Resumidamente, Gumersindo Bessa, após fazer seus primeiros estudos em Sergipe, frequentou o Seminário Episcopal da Bahia, que abandonou, conforme avalia Araújo, após profundos desentendimentos com seus superiores hierárquicos. Adiante, bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Recife, onde foi destaque por sua excelência acadêmica. Seria ainda promotor público, redator do jornal A Reforma e deputado provincial ao final do Império. Prestaria depois serviços como advogado, atuaria como constituinte estadual em 1891, ocuparia diversos cargos no mesmo ano – juiz de casamentos, desembargador e presidente do Tribunal de Apelação de Sergipe -, assumiria a chefatura da polícia na gestão do presidente sergipano (equivalente ao atual governador de estado) Manuel Oliveira Valadão (1849-1921) e travaria, como articulista e parlamentar, uma duradoura e veemente oposição ao sacerdote Olímpio de Sousa Campos (11853-1906), que governou Sergipe entre 1899 e 1902.

É, porém, por dois outros fatos que Bessa é mais conhecido, embora, ainda assim, muito menos do que provavelmente merecesse. Um deles foi seu duelo contra o insigne jurista baiano Rui Barbosa (1849-1923), talvez o mais emblemático nome do liberalismo brasileiro no período da República Velha, por ocasião da disputa entre acreanos e amazonenses em 1906, quando o estado do Amazonas reivindicava a posse do território do Acre. Rui defendeu a pretensão amazonense, enquanto Bessa advogou pelos acreanos. O liberal mais famoso foi derrotado pelo menos notório. O segundo fato é que, precisamente pelo volume de argumentos e informações elencados por Bessa na defesa de sua tese, ele foi, como destacado ao começo deste texto, o estopim para o surgimento da expressão “à beça”. Conforme Rafael Araújo, o presidente da República Velha Rodrigues Alves (1902-1906) foi o responsável: “Durante a polêmica com Rui Barbosa, envolvendo a questão acreana, o sergipano Bessa apresentou ao presidente uma lista infindável de argumentos em defesa dos acreanos. Rodrigues Alves, vendo-se pressionado por um correligionário que usava do mesmo artifício para defender um pedido, mandou “na lata”: “O senhor tem argumentos à Bessa”, Estava criada a expressão que, no dizer de Reinaldo Pimenta, talvez seja a única com chancela presidencial. O mistério é como passou-se dos “ss” para o “ç””.

À rica síntese biográfica, seguem-se centenas de páginas com diversos artigos de Gumersindo Bessa, publicados em ordem cronológica. Quanto à metodologia, “seguiu-se o procedimento da edição diplomática, ou seja, conservou-se a ortografia e a acentuação, reproduzindo fidedignamente os artigos”, sendo que “os textos vêm ainda enriquecidos com notas de natureza biográfica, autoral, elucidativa”. Destacaram-se artigos que ainda fossem inéditos em livros e que houvessem tido uma repercussão relevante na época de sua publicação.

A opção de Araújo de preservar a grafia original do período entre 1885 (data da publicação de sua monografia O que é direito, incluída no livro em exame, entretanto, entre os últimos textos, tendo por norte a sua republicação no jornal Gazeta de Sergipe, que se deu apenas entre 1894 e 1895) e 1906 é bastante compreensível, mas cumpre alertar o leitor que, inevitavelmente, cobra seu preço, tornando a leitura um pouco mais difícil em algumas passagens.

Também é de bom tom alertar o leitor de que a obra de Bessa é tão versátil e ele demonstrou tanta erudição, aventurando-se com habilidade admirada por seus contemporâneos em áreas de conhecimento tão diversas, que alguns textos terão uma abrangência que talvez não ofereça muito apelo a todos os públicos. Alguns dos artigos de Bessa, por exemplo, versando de forma muito específica sobre contendas jurídicas da época ou sobre as propostas de textos constitucionais sergipanas, interessarão mais aos estudantes de História do Direito; outros terão maior interesse para quem queira saber mais sobre a história política do estado de Sergipe, não obstante não deixem de fornecer também a qualquer estudante da vida pública brasileira um retrato muito proveitoso das disputas e manipulações políticas que se orquestravam – e, desta ou daquela forma, ainda se orquestram – nos diversos recônditos do país.

Permito-me destacar, além da tese O que é direito, os textos Profissão de fé, Autonomia municipal, Tobias Barreto e Memórias políticas de 1892 para os que estiverem desejosos de compreender especificamente a natureza do liberalismo de Gumersindo Bessa. Filosoficamente, como discípulo de Tobias Barreto (1839-1889), ele integrava a famosa Escola do Recife – um movimento sociocultural extremamente significativo que questionava as duas correntes filosóficas prevalecentes no Brasil anteriormente: o Espiritualismo eclético e o Positivismo. Barreto e seus correligionários, ao mesmo tempo em que suscitavam uma onda de reflexões sobre as especificidades nacionais e sobre a importância da dimensão cultural nas apreciações do comportamento e dos rumos das sociedades humanas, ensejando uma concepção progressiva do Direito, alimentavam-se do evolucionismo, sob inspiração de filósofos como o alemão Ernst Haeckel (1834-1919), e do pensamento criticista de Immanuel Kant (1724-1804) para questionar as limitações rigidamente empiristas e antimetafísicas do Positivismo de Augusto Comte (1798-1857). Todas essas características, de um modo ou de outro, transparecem nos textos de Bessa.

No Império, Gumersindo Bessa militou no Partido Liberal (apelidado de “luzia”), opositor ao Partido Conservador (apelidado de “saquarema”). Sua concepção do liberalismo estimulava como norte “a razão por apoio, a liberdade por intuito” e ponderava que o objetivo conservador da ordem como “aplicação pacífica do direito constituído como base da proteção das pessoas e da propriedade” era incompleta, devendo ser completada pela “descentralização na ordem administrativa, o self-government na ordem política, a igualdade na ordem social, a livre concorrência na ordem econômica, a restrição da autoridade do mínimo exigido pela manutenção da paz e a amplitude da liberdade até o máximo compatível com a coexistência pacífica dos indivíduos”. Afirmava não ser possível haver efetiva liberdade política sem “o governo da nação pela nação, isto é, sem o self-government concebido e praticado pela Constituição inglesa”.

Nota-se que seu liberalismo era bem semelhante ao de seus demais correligionários do partido, como Tavares Bastos (1839-1875), questionando as instituições de ordem mais centralizada do Império e suscitando uma reorganização mais municipalista das estruturas políticas e dos orçamentos. Também se assemelhava ao deles no recurso aos exemplos anglo-saxônicos mais que aos dos liberais doutrinários franceses, como faziam os mais ilustres escritores saquaremas, com Bessa evocando a todo momento os paralelos que julgava existirem entre as peripécias políticas brasileiras e as conturbações políticas francesas – embora manifestasse também certa admiração pela Revolução Francesa, questionando-lhe apenas os excessos do Terror.

No período republicano, destaca-se a atuação crítica de Gumersindo Bessa tanto ao militarismo autoritário de Floriano Peixoto (1839-1895) e à intervenção generalizada dos militares sobre as instituições políticas quanto às maquinações oligárquicas civis, de modo muito similar ao ruibarbosiano. Transparece, aliás, admiração pelo “Águia de Haia”, apesar do enfrentamento, natural no ofício, que travaram por ocasião da questão acreana. Apesar de discípulo de Tobias Barreto, que foi duro crítico do Poder Moderador e da própria personalidade do imperador, Bessa não deixou de registrar admiração por D. Pedro II (1825-1891) ao comentar as homenagens prestadas pelos franceses ao monarca brasileiro quando de sua morte.

Em sua monografia, escreveu, confrontando o “socialismo de Estado”, que cabia ao Direito “assegurar a ordem entre seres livres”, recusando a tese do “direito ao trabalho” como sendo algo que o Estado poderia assegurar. Sustentava, porém, que o Estado poderia fundar asilos e hospitais, não em consequência de uma suposta caridade, mas como acessório ao seu esforço de manutenção da ordem, podendo ajudar os enfermos, afastar os loucos dos meios sociais inadequados, alojar os órfãos e prestar socorros às vítimas de calamidades públicas.

Aceitava também que o Estado instituísse “escolas, academias, museus, bibliotecas, hortos e universidades, em concorrência com a iniciativa individual, não porque colime a cultura nacional como um de seus fins constitucionais, mas porque deve pôr ao alcance dos seus naturais os meios de adquirir a grande instrução que o Direito exige para o exercício das funções públicas”. Também admitia que o Estado produzisse linhas telegráficas, estaleiros, comunicações postais, fábricas de armas, “não como explorador de indústrias, mas para habilitar-se para a defesa nacional e para eficaz afirmação do Direito”. Todo o resto, entendia Bessa, deveria caber à iniciativa privada.

O entendimento de Bessa, entretanto, parece ter mudado em algum grau em 1892. Aí ele já criticava asperamente as limitações oligárquicas em que o constitucionalismo liberal se havia circunscrito, afirmava que o direito ao trabalho deveria ser garantido e se servia de forma algo elogiosa a fórmulas teóricas de socialistas como Ferdinand Lassalle (1825-1964) e Karl Marx (1818-1883). Apesar desses comentários não muito apropriados, parece-me que sua situação se assemelhava então à de John Stuart Mill (1806-1873) e de alguns entre os chamados liberais sociais que fizeram diálogos com as preocupações dos autores socialistas, mas não se tornaram propriamente, eles mesmos, socialistas, advogando apenas por uma atuação maior do Estado do que os liberais clássicos. Indicativo disso é que, no mesmo artigo e em outros posteriores, continuava a enaltecer o legado do Cristianismo, combater o autoritarismo militarista e o Positivismo e defender os valores genuinamente liberais do Direito.

Congratulo Rafael Araújo pelo labor na construção desta obra. Espero que seu trabalho de resgate de Gumersindo Bessa realmente prossiga. Dentro de minhas possibilidades, tenho exortado os liberais brasileiros a restaurar a memória, as lições e exemplos de seus antecessores. Rafael presta enorme serviço a esse propósito ao retirar o véu do esquecimento a encobrir tão interessante figura do liberalismo nordestino.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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