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O colapso da estratégia janista

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A reflexão desta vez precisa ser extensa – tanto quanto difícil e sincera.

A essa altura, talvez seja desnecessário emoldurar todas as acusações que o agora ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, fez ao presidente da República, Jair Bolsonaro. Limito-me a resumir: acusou-o de fraudar a assinatura do ex-ministro na exoneração do diretor-geral da Polícia Federal – em seguida, o governo editou a publicação no Diário Oficial, procurando se esquivar de acusações de falsidade ideológica; acusou-o de ter traído o que foi prometido, em público e para todos verem: que Moro teria total liberdade e não haveria interferência do mandatário na Polícia Federal. Moro depois revelou imagens de conversas que indicam que ele não mentiu sobre não ter feito uma chantagem para obter vaga no STF e que o presidente insinuou que uma investigação contra aliados deveria ser detida.

O discurso do presidente em sua defesa foi longo, desencontrado e tragicamente ruim. Bolsonaro chegou a fazer mais confissões comprometedoras que não pretendo detalhar aqui. Prefiro usar o momento político, lastimavelmente ocorrido em meio a uma pandemia que afeta o mundo inteiro, para uma revisão mais ampla do quadro histórico.

Já escrevi algumas vezes que é possível sim, a despeito das inúmeras diferenças entre eles, estabelecer comparações entre Jair Bolsonaro e o ex-presidente Jânio Quadros – especialmente do ponto de vista do contexto de suas eleições, mais do que em matéria de juízo de valor.  Argumentei: “Em 1960, o Brasil vivia o desgaste de uma oligarquia política, a oligarquia varguista, que dominava o país havia muito tempo, desde a ditadura de seu ícone maior. O governo JK findava sob torpedos da oposição udenista, de viés liberal conservador, por denúncias de corrupção na construção de Brasília – envolvendo, vejam só, empreiteiras – e por suas medidas inflacionárias e desenvolvimentistas, que deixaram as contas do país com sérios problemas. (…) Eis que surge um fenômeno de popularidade. Ao contrário de Bolsonaro, o paulista Jânio Quadros já tinha experiências positivas no Executivo para mostrar, mas isso era um ingrediente a mais no pacote que ofereceu. Ele se apresentou, depois de uma carreira como uma espécie de demagogo que passou pelo próprio PTB, como a antítese do sistema, aquele que romperia com a oligarquia, acabaria com os privilegiados e corruptos, não faria a política de costume e sim uma nova, diferente. Ele se torna um fenômeno de massa. O que a UDN e os lacerdistas fazem? Cientes de que não podem vencer o fenômeno de massa e de que não têm ainda uma candidatura capaz de fazer algo sequer parecido com o que o janismo já fazia, acoplaram-se a ele. O raciocínio era simples: todos sabiam que Jânio Quadros não era um liberal, não era um udenista, não tinha a formação política deles. No entanto, das três opções, uma: Jânio poderia mudar de posição, apesar de lhe ser mais confortável combater “tudo que aí estava” – e o que “aí estava” era o varguismo – e se aliar aos inimigos; poderia vencer sozinho e tentar instaurar uma ditadura para governar sem os partidos; ou a UDN poderia se associar a ele, procurando oferecer uma base parlamentar e de governo, e tentar aproveitar sua popularidade e seu triunfo para finalmente levar adiante as reformas por que ansiava há décadas, mesmo sabendo que Jânio não era exatamente o mais perfeito exemplar do udenismo.”

Nesse aspecto, o triunfo do bolsonarismo guarda muitos paralelos com o triunfo do janismo. Nas duas situações, a direita liberal conservadora – na época, representada pela UDN; atualmente, sem um partido ou uma coesão muito bem definidos, mas representada por ativistas e intelectuais do que nos acostumamos a chamar de “Nova Direita” – não dispunha de uma candidatura própria, formada em seu seio, com vigor eleitoral efetivo para levar adiante a sua agenda, não obstante o momento político fosse oportuno para que essa agenda fosse alavancada.

Nos dois casos, essa direita percebeu que um líder populista – no caso de 2018, um líder sindical dos militares, por décadas no Parlamento, que se catapultou por sua capacidade de dizer o que as pessoas queriam ouvir, de “viralizar” nas redes sociais, por seu carisma pessoal, pelo apelo ao combate à criminalidade e ao politicamente correto, entre outros fatores – estava “na crista da onda” e oferecia condições políticas de abrigar, em sua plataforma de campanha, a agenda liberal conservadora. Não dispondo de opção efetiva, tentou aproveitar a brecha aberta pelas circunstâncias da melhor forma possível. A essa estratégia, apelido aqui de “estratégia janista”.

Muitos amigos (ou ex-amigos) ditos liberais, de viés nitidamente mais “progressista” – alguns acabaram declarando, no fim das contas, que até em Ciro Gomes votariam -, fizeram oposição implacável à escolha por Bolsonaro, e depois ao seu governo, desde a primeira hora. Acusaram os liberais que, como Lacerda e a UDN fizeram com Jânio, se conectaram a Bolsonaro pela porta que o então candidato lhes abriu para tentar emplacar as reformas liberais, de serem “vendidos ao totalitarismo”. Seu desejo seria que candidatos como Henrique Meirelles ou Geraldo Alckmin tivessem recebido esse apoio. São aqueles que o presidente do Conselho Deliberativo do Instituto Liberal, Rodrigo Constantino, chama de “radicais do extremo centro”. Não concordei e não concordo com eles. Provavelmente estão ironizando os “fascistas” Paulo Guedes e Salim Mattar neste momento, sendo que, paradoxalmente, muitos deles, lá atrás, pregavam que a direita deveria ser politicamente realista. Como argumento, alegam que todo mundo já sabia quanto Bolsonaro valia e se deixou iludir por seu liberalismo fingido.

Ora, em todas as minhas manifestações a respeito, sempre disse que não alimentava qualquer ilusão. No mesmo texto em que comparei Bolsonaro a Jânio, concluí: “Nunca acreditamos que Bolsonaro fosse um liberal ou que fosse o candidato dos nossos sonhos. Quem o proclama está atacando um espantalho. Ele, porém, foi quem se tornou uma espécie de fenômeno de massa e permitiu que certa pauta liberal se acoplasse à sua plataforma. Seu programa de governo, com a chegada de Paulo Guedes, englobava flexibilização de acesso a armas, privatizações, reforma do pacto federativo, abertura ao comércio exterior… Do outro lado, estava o PT. Ao contrário de 1960, havia dois turnos em 2018. No primeiro turno, havia outras opções, e sequer ressuscitarei a discussão quanto a elas e suas possibilidades de vitória. No segundo, era Bolsonaro ou Haddad. Que se deveria fazer? Manter neutralidade, fingir que esses aspectos não estavam no programa de Bolsonaro e pretender que sua plataforma era a mesma coisa que o retorno do lulopetismo que desgraçou o Brasil?”.

O liberal que apoiou Bolsonaro optou por uma tentativa realista e um cálculo de risco. Ao recomendar que meus leitores o elegessem em 2018, deixei claro que o presidente tinha e tem uma leitura histórica equivocada e antiliberal do período militar, que não tem uma formação liberal conservadora consistente e que sua trajetória política não era a de um apoiador do liberalismo. Da mesma forma, não o era Jânio. Contudo, ele se havia tornado a única alternativa e o PT, com seu império do crime e do patrocínio internacional ao autoritarismo de esquerda, precisava, por dever moral, ser derrotado. Não cabia omissão. Cabia tentar dar uma chance a Paulo Guedes e sua equipe. Cabia tentar dar uma chance ao ministério bastante técnico que seria formado. Cabia mudar para a direita.

Em absolutamente nenhum momento, o voto, que é uma aposta política feita de acordo com o que permitem as circunstâncias em que se verifica, representa uma carta branca conferida ao seu destinatário. Não é um compromisso de submissão, não é uma declaração de subserviência. Pontuei que precisávamos dar apoio às reformas e não encarnar, ao lado das esquerdas, a oposição sistemática ao governo que elegemos – sim, elegemos. Deveríamos tentar ajudá-lo enquanto se mantivesse minimamente fiel às agendas que pretendíamos consagrar nas urnas, aceitando certos aspectos da personalidade limitada do presidente, que poderiam ser administráveis. Chama-se realpolitik.

Poderiam – mas já não o são. Desde os primeiros meses, o governo, que entrou com ampla margem da população a favor, com a força inerente a governos em gestação, não obstante tenha dado início a trabalhos meritórios de seus quadros técnicos, tenha adotado uma postura mais dura com a tirania chavista na Venezuela, tenha diminuído os índices de criminalidade (trabalho, enfatize-se, do ministério de Moro), já se viu, graças à atuação de um núcleo mais radical – que muito pouco tem de liberalismo e conservadorismo efetivamente -, envolto em disputas de ego e espaço e autofagias de toda sorte, acusações de golpismo militar ao vice-presidente e autossabotagens infindáveis. Era razoável esperar que o tempo remediasse isso, mas tais disputas inúteis, com direito à desqualificação dos subordinados nos ministérios que, teoricamente, teriam autonomia; às constantes e desastrosas campanhas movidas pelo antiliberal Carlos Bolsonaro, o “vereador federal”; e, principalmente, à ampla indisposição do presidente de conter essas insanidades, acenderam um sinal amarelo.

O governo é o principal responsável por fragilizar progressivamente a si mesmo a ponto de chegar a estes tristes dias instado a ofertar cargos a parlamentares condenados no mensalão e no petrolão. Movido pelo velho patrimonialismo que os liberais querem combater há décadas, o presidente ofereceu uma embaixada a seu filho Eduardo, bem como o então partido do governo ajudou a desidratar a reforma previdenciária. Depois, Bolsonaro abandonou o PSL e decidiu governar sem que sua base aliada efetivamente “existisse”, funcionasse no Congresso. O Parlamento, presidido por figuras que não exatamente morrem de amores pelo presidente, foi ganhando força e nada disso parecia que terminaria bem.

Até então, tecendo críticas pontuais, mantínhamos esperanças. Então veio o coronavírus. Já deixei clara a minha opinião sobre o tema do isolamento social, que sei não ter sido majoritária na direita brasileira. Porém, independentemente disso, a postura do chefe de Estado e de governo do país, metendo-se a paparicar aglomerações, dizendo que “brasileiro vive em esgoto e não pega nada”, que é “atleta” e teria apenas um “resfriadinho” se contraísse o vírus, que não é “coveiro” e por isso não comentaria as mortes, e sua absoluta incapacidade de alinhar um discurso com seu próprio Ministério da Saúde, preferindo desafiá-lo a todo momento a respeito de uma situação séria para ao final exonerar Mandetta, depois de ameaças patéticas veiculadas através da imprensa, foi flagrantemente inadequada. Não me é possível, em sã consciência, apoiar, só porque o elegi, estultices que nenhuma outra liderança global proferiu. Se os bolsonaristas disserem que “o elegeram foi para isso mesmo”, podem ficar com essas pérolas insensíveis para eles. O meu voto não foi para isso.

Bolsonaro, para além de tudo isso, participou e se disse representado pelos realizadores de uma manifestação flagrantemente golpista – e as imagens e áudios não permitem estripulias retóricas para negar esse fato. Desde o começo da pandemia, defendi que o tensionamento político fosse reduzido para que pudéssemos enfrentar esse problema mundial com sinergia e alguma dose de paz. Infelizmente, o próprio presidente não tornou isso possível. Coroando essa sequência de horrores, Bolsonaro resolveu fazer a mudança na direção da Polícia Federal, implodindo de imediato a relação com outro ministro central de sua equipe, Moro, que disparou a bomba desta sexta-feira (24).

Para piorar, não termina por aí. No dia anterior, o Jornal da Record, emissora alinhada ao governo, veiculou uma matéria muito estranha, enaltecendo o general Braga Netto, apresentado como grande líder que ocupou o vácuo político, e relacionando o que seriam erros de Paulo Guedes, especialmente apostar no “liberalismo extremo”. A reportagem não ouviu nenhum economista liberal. Ela foi inteiramente desenhada para tomar um partido e depreciar a agenda liberal do ministro da Economia, como que a desenhar a atmosfera para a efetivação de um programa bilionário e desenvolvimentista de obras públicas. Não gostei do cheiro de fumaça.

A “estratégia janista” original fracassou, diz-nos a História. Jânio renunciou e nos lançou no inferno de João Goulart. Se as circunstâncias impunham atitude semelhante, rechaço a ideia de que repeti-la foi um erro. Não guardo qualquer arrependimento por tê-lo feito, assim como votaria em Jânio se estivesse vivo em 1960 e votaria em Fernando Collor em 1989. Nosso erro foi, este sim, ter submergido na “bolsonarodependência”. Mesmo que o elegêssemos, tínhamos a obrigação de construir um projeto sério de multiplicação de lideranças consistentes, não abraçar o culto varguista de uma personalidade. A agenda liberal conservadora não pode depender de uma única pessoa – muito menos de um séquito indisposto a ouvir críticas e que, até o dia anterior, insistia em vociferar que a imprensa é comunista apenas para negar o atrito entre o presidente e Moro, para, no dia seguinte, constatada a veracidade do fato, mudarem o discurso para atacar a reputação do ex-juiz.

Não é possível mais enxergar este governo com os mesmos olhos. Continuo apoiando a equipe de Paulo Guedes e o trabalho de Tarcísio Gomes na Infraestrutura, entre outros esforços positivos feitos por ministros nomeados por escolha e mérito político de Bolsonaro. Infelizmente, não há qualquer garantia de que sua autonomia para dar continuidade e cumprimento a esses esforços será mantida. Estamos presenciando uma implosão a respeito da qual não podemos fazer absolutamente nada. O único chamamento à ação que faço aqui é este: fechemos para balanço e trabalhemos para construir nossas possibilidades de futuro. A “estratégia janista” não pode mais ser o nosso único recurso.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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