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A esquerda pode tudo, até ser racista

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O papel do estereótipo no discurso identitarista.

Nas críticas que faço ao identitarismo, uma constante é o apontamento da hipocrisia e do duplo padrão diante de certos comportamentos. A diferença entre ser catalogado como racista ou não, por exemplo, muitas vezes depende do fato de você ser de esquerda ou de direita, não necessariamente de suas atitudes.

Exemplo desse duplo padrão e hipocrisia nos dá, novamente, nosso ilustre presidente da República. A essa altura, todos já devem ter visto o vídeo em que, em um evento na fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, Lula se dirige a uma moça negra, primeiro dizendo que havia achado que ela era “cantora”, depois “namorada de alguém” e por fim “percussionista”, já que “uma afrodescendente assim gosta de um batuque de um tambor”. A ideia era dar atenção ao fato de que ela havia ganhado um prêmio da empresa alemã por ser considerada a melhor aprendiz. Claro que tal honraria, pela qual ela deveria ser celebrada, só foi mencionada depois de devidamente apontados seus traços fenótipos e um estereótipo a eles associado, o que, naturalmente, repercutiu muito mais.

Fosse um presidente de direita protagonizando a cena e as mais inúmeras entidades, personalidades, partidos de esquerda, artistas, jornalistas, etc. teriam se manifestado apontando o racismo eminente e cobrando uma retratação. Certamente, também não deixariam de levar a questão à atenção da PGR e do STF. Ocorre que é o Lula, e aí o que outrora seria indignação rapidamente se converte em justificativa ou a boa e velha passada de pano. Na dúvida, chequem as manchetes. Nos resultados de busca, as principais manchetes a evocar racismo no episódio o fazem tão somente para noticiar uma acusação da oposição. Há, como já se tornou hábito na banda podre da imprensa, a vinculação com o bolsonarismo, como se ver racismo na fala e postura de Lula fosse algo de bolsonarista e só de bolsonarista. Já na outra esfera, consultando os blogues e jornais ideológicos e chapa-brancas de sempre, há uma tentativa de apequenar e tratar por mero “deslize” o que na boca de outro tratariam como discurso de ódio e quejandos.

Mas o silêncio sepulcral mesmo vem de outra fonte. Não encontrei, até o momento em que finalizava este artigo, comentário de qualquer natureza sobre o episódio de Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e figura das mais célebres no que se refere ao identitarismo negro no Brasil, nem de Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, que, para além de viajar com avião da FAB para assistir a jogos de futebol, tem prestado um trabalho muito relevante, bradando contra o “racismo ambiental” e nos ensinando que dizer “buraco negro” é racista — na certa, ocupada com essas questões sérias, pertinentes e nada risíveis, não tem tempo de se debruçar sobre as coisas que seu chefe diz.

Convém lembrar, ainda, que o “deslize” não é fato inédito. Em julho do ano passado, durante visita ao Cabo Verde, Lula declarou o seguinte: “Temos profunda gratidão ao continente africano por tudo que foi produzido durante 350 anos de escravidão no nosso país”. Nessa ocasião, houve manifestação de Silvio Almeida, que, defendendo e interpretando a fala do chefe, argumentou que sua intenção foi dizer que “o Brasil tem uma dívida com África e ela tem que ser paga”. Mas é claro: quando o presidente não está cometendo deslizes, suas falas demandam interpretação. Já de Anielle Franco, não pude encontrar qualquer comentário sobre este episódio. Considerando a suposta intenção do presidente em apontar uma dívida do país com o continente africano, não seria de interesse da ministra celebrar isso, tal como Silvio Almeida? Talvez nem ela tenha se deixado convencer por tal interpretação.

Não é irônico que o governo mais identitário da história do país, que coloca tais questões sempre na ordem do dia, com direito a ministérios temáticos dedicados à militância profissional, seja comandado por alguém propenso a cometer tais ditos deslizes? Alguém poderia dizer que isso é mais uma prova do “racismo estrutural”, que não deixa de acometer mesmo aqueles interessados na luta racial. Fosse esse o caso, por que então a tentativa do principal divulgador da tese do racismo estrutural em “interpretar” e justificar a fala do presidente? Por que as costumeiras passadas de pano? Ocorre que, diferente de uma contradição, as falas de Lula incorporam o espírito do segregacionismo identitário.

Se, em um contexto humorístico, determinados estereótipos se tornam objeto de piada, rapidamente aparece a militância politicamente correta para apontar “crime de ódio”. O humorista Léo Lins se tornou réu por contar piadas ditas “preconceituosas” e contra minorias e em certo momento chegou mesmo a ser proibido de se ausentar de São Paulo por mais de 10 dias, além de receber do Ministério Público uma lista de assuntos sobre os quais deveria se abster de fazer piada — o nome é censura prévia. Os defensores da censura, certamente não apreciadores do humor negro, dirão que ela é apropriada, já que as piadas visam à ridicularização de minorias e propagação de estereótipos. Não percebem eles que, para além de não serem obrigados a consumir o conteúdo do referido humorista ou qualquer outro, a exploração de estereótipos em piadas tem como resultado a ridicularização, não da dita minoria, mas do próprio estereótipo. Isso está presente em várias manifestações de humor da cultura popular, não só do humor negro, e é fartamente usado por humoristas negros americanos para ridicularizar, vejam só, não outros negros, mas os próprios estereótipos raciais. Agora, quando um presidente de esquerda reforça um estereótipo — a associação de pessoas negras com batuque —, não de forma humorística, ainda que em tom descontraído, mas pretendendo validá-lo, os censores de outrora se fazem ausentes. O estereótipo explorado onde o propósito é não ser levado a sério lhes soa inadmissível. Já o estereótipo levado a sério e reforçado por alguém como Lula é aceito sem maiores considerações.

Isso não acontece por acaso. O estereótipo tem um papel a cumprir no racialismo típico do identitarismo negro. Ao ignorar que o sequenciamento do genoma já provou que não há tal coisa como raças, em se tratamento de humanos, o identitarismo investe fortemente em dar e reforçar um significado social para aquilo que a ciência nega e que, ironicamente, aí sim se trata de uma construção social. Todo o repertório identitarista de movimentos negros e afins, que vai desde a atuação no plano cultural até a consecução de políticas públicas como as ações afirmativas, por exemplo, depende da continuidade da crença em raças. Afinal, como fazer segregação dita “positiva” se não forem reconhecidos os elementos a serem segregados?

Diante da fragilidade de se depender tão somente de uma pequena lista de fenótipos, reivindicam outros elementos que devem concorrer para corporificar seu racialismo. Aí entram os estereótipos. Exemplo bastante evidente de seu uso e pertinência à causa identitária são as queixas contra o que chamam de “apropriação cultural”. Já vi desde manifestações indignadas falando de tranças, passando pelos turbantes e desaguando até na pobre feijoada, as quais, “coisas de pretos”, segundo eles, estariam sendo indevidamente apropriadas por brancos. Os estereótipos, longe de serem vistos como mais um traço de racismo, são encorajados como elementos que colaboram para a melhor distinção dos membros das minorias.

A coisa chega a tal ponto que os mesmos que fazem troça de compatriotas que de alguma forma enalteçam uma ancestralidade europeia, ou se limitem a citá-la, não raro se identificam como verdadeiros africanos, mesmo nascidos no Brasil, tão brasileiros quanto quaisquer outros brasileiros e sem nunca terem botado os pés fora do país. Se, por um lado, poderia soar ridículo o uso por aqui de expressões tão comuns nos EUA como ítalo-brasileiro, germano-brasileiro etc., o termo afrodescendente, em linha com o afro-americano, é encorajado. O termo afro-americano, segundo Demétrio Magnoli, é uma “expressão inventada com o multiculturalismo” e um “reflexo pós-moderno da antiga visão da África como pátria de uma raça”. Já o termo afrodescendente teria sido oficializado pelos documentos finais da Conferência de Urban, de 2001: “A Declaração oficializou o conceito de “afrodescendentes” e solicitou o reconhecimento da “cultura” e “identidade” dos “afrodescendentes” nas Américas e, de modo geral, nas regiões da “diáspora africana“”. Temos aqui não só a aposta no racialismo típico, mas na visão da raça como pertencente a um lugar, a tal ponto que os negros espalhados pelo mundo fariam parte de uma “diáspora africana”. Não é por acaso que cada vez mais elementos, adereços e estereótipos da cultura africana são reivindicados por identitaristas (que não necessariamente são negros, vale lembrar), a ponto de falarem em uma apropriação cultural, reivindicação que já seria ridícula ainda que fosse aquela sua cultura nativa de fato.

No bojo disso tudo, a defesa dos diferentes elementos entendidos como próprios daquela minoria, no caso, dos negros, ganha importância, mas uma importância submissa sempre à lógica identitária e não a outros princípios. Nesse sentido, há a defesa das religiões de matrizes africanas, não pela liberdade religiosa como um princípio maior, mas por suas raízes africanas. Por isso, não surpreende que certos militantes discursem energicamente em defesa dessas religiões, a ponto de chegarem mesmo a atacar outras religiões que não possam ser identificadas com seu discurso de defesa das minorias. Estamos vendo exemplos vívidos disso agora, quando muitos que assumem essa defesa destilam antissemitismo.

O estereótipo, para cumprir sua função de corporificar o conceito de raça, precisa segregar – daí reclames de “apropriação cultural” e tentativas de negar a gritante miscigenação do país, bem como o sincretismo religioso tão típico do povo brasileiro. Para negar a verdade, que é a verdade do Brasil, ignoram os fatos, como, por exemplo, o de que 59% dos evangélicos do Brasil são pretos e pardos (dupla que o IBGE cisma em chamar de negros), segundo pesquisa do Data Folha, enquanto 54% dos umbandistas são brancos (censo de 2010).

Lembro-me de um bate-papo entre o professor Paulo Cruz e o deputado estadual paulista Guto Zacarias, em uma entrevista deste para o Noir Podcast, em um momento em que tratavam dessa temática do estereótipo. Vale reproduzir o seguinte trecho da fala de Guto: “Hoje nós temos o Movimento Negro Brasileiro, que, quando ele trata sobre a inclusão do negro na sociedade, geralmente ou é uma mulher negra, ou é um negro gay. Raramente aparece o João que trabalha numa borracharia e ele é negão, sabe? É um cara negro, de periferia. Geralmente não é dele que a gente está falando”. E ainda: “Por exemplo, quem a Globo chama para participar de um quadro sobre inclusão racial sobre tal coisa? Geralmente é o tema, o cara que vai estar lá com seu black power, com sua roupa totalmente colorida”. Com “negro tema”, em contraponto ao “negro vida”, nos ensina o professor Paulo Cruz, Guerreiro Ramos distinguia justamente a ideia, o tema, o estereótipo e a vida real do negro com suas questões reais.

Em conclusão, a fala de Lula, o apelo ao estereótipo, não parece nem um pouco deslocado no identitarismo personificado pelo seu governo. Há o fato de ser ele um político de esquerda, pois a utilidade dos estereótipos também depende de quem os usa — não admitiriam que um presidente de direita falasse o mesmo; mas também há o fato, talvez ainda mais relevante, de que o estereótipo é parte fundamental do racialismo que, por sua vez, é indissociável do identitarismo.

Fonte:

Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial — Demétrio Magnoli

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/afrodescendente-assim-gosta-de-um-batuque-de-tambor-diz-lula-a-jovem-negra-oposicao-reage/#:~:text=O%20presidente%20Luiz%20In%C3%A1cio%20Lula,ABC%20Paulista%2C%20em%20S%C3%A3o%20Paulo.

https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/governo-defende-anielle-franco-reforca-tese-racismo-ambiental/

https://www.poder360.com.br/governo/termo-buraco-negro-e-racista-diz-anielle-franco/

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/07/19/interna_politica,1522085/lula-agradece-a-africa-pelo-que-foi-produzido-nos-350-anos-de-escravidao.shtml

https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/silvio-almeida-rompe-silencio-apos-fala-polemica-de-lula-sobre-escravidao/

https://www.metropoles.com/sao-paulo/leo-lins-esta-proibido-de-deixar-sp-por-mais-de-10-dias-decide-justica

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/09/05/leo-lins-vira-reu-por-publicar-conteudo-preconceituoso-e-discriminatorio-contra-minorias-canal-do-youtube-e-retirado-do-ar.ghtml

https://veja.abril.com.br/religiao/datafolha-mulheres-e-negros-compoem-maioria-de-evangelicos-e-catolicos

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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