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A ficção da raça: a mentira conveniente

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O racismo verdadeiro é daqueles absurdos que escandaliza a todos os que têm bom senso e enfurece a quem, apóstolo do liberalismo ou não, tem na igualdade formal por ele apregoada, bem como na noção de dignidade humana apreciada por todos os que não se reputam superiores ao próximo ou mais dignos de direito, valores imprescindíveis.

Entendendo o que o racismo é, a resposta mais comum, guiada pelas noções de igualdade formal e dignidade humana supracitadas, é apontar o ultraje que é pretender hierarquizar de alguma forma a sociedade com base em fenótipos. Em suma, diz-se que, a despeito de nossas diferenças e das diferentes raças e etnias que compõem o nosso quadro social, devemos todos nos respeitar pelo óbvio de que compartilhamos a condição de sermos humanos, acima de tudo. Claro que isso é verdade, mas a defesa dessa igualdade e dignidade ganha ainda mais força se tivermos em mente a verdade científica que apresentarei aqui e que por conveniência tanto racistas quanto identitaristas cismam em ignorar: a raça, em se tratando de humanos, é uma ficção.

Antes, cabe retroceder um pouco. Como já tive oportunidade de expor aqui, a escravidão no Brasil teve, sobretudo, raízes econômicas, e a opção pelo africano se explica antes de tudo pela maior “oferta” de cativos advindos deste continente, em sua maior parte “capturados” e vendidos por outros africanos. Para ilustrar, façamos uma leitura desse excerto de Manolo Florentino que trata da oferta de cativos pelo Congo, um dos principais fornecedores aos portugueses: “Embora muitos dos negros vendidos aos portugueses fossem membros da própria sociedade congolesa (como os transgressores do direito consuetudinário, endividados, feiticeiros e até escravos domésticos), o grosso da oferta era mantido através de raids realizados pelo Congo, sobretudo em suas fronteiras. As guerras, como a já referida com o reino de Soyo, também contribuíam substancialmente para a produção de cativos, além de serem mecanismos de expansão e conquista de povos tributários. Por exemplo, entre 1510 e1520 já se tinha notícias de prisioneiros Kimbundu, do Sul do Congo, sendo vendidos na capital.”

Evidentemente, não é possível que a produção de escravos no Congo, para se ater a esse exemplo, se desse, sobretudo lá pelos idos de 1500, por uma crença em superioridade e inferioridade baseada em fenótipos, em especial pelo fato de os escravizados e escravagistas compartilharem a mesma “raça”. As teses do chamado “racismo científico”, que tentavam dar uma roupagem científica e legitimar a discriminação, só surgiriam muito mais tarde: “O “racismo científico” propriamente dito nasceu junto com o evolucionismo moderno, na segunda metade do século XIX, quando a polêmica entre monogenistas e poligenistas perdeu interesse” (Demétrio Magnoli). Prova ainda maior de que a escravidão negra não esteve assentada em noções raciais “científicas” também nos dá Magnoli, ao vincular seu ápice com o início do imperialismo e já superada a escravidão: “A ciência das raças deu seus primeiros passos na moldura da reação ao movimento abolicionista. Mas ela se consolidou, sob o influxo científico do evolucionismo, depois que o tema da escravidão havia ficado para trás, substituído pelo da anexação imperial dos povos africanos e asiáticos”.

Claro que o vínculo com a ascensão do evolucionismo não o deslegitima, demonstrando antes como mesmo revoluções científicas importantes podem ser despropositadamente usadas por quem se nutre com preconceitos. Defendiam os racistas científicos que os indivíduos de raças ditas inferiores “percorreram incompletamente a trajetória da evolução da espécie”. Para eles: “o estágio adulto de indivíduos de uma raça inferior espelha o estágio infantil de indivíduos da raça superior, e os estágios iniciais de indivíduos de raças inferiores espelham os estágios adultos de nossos ancestrais macacos” (Demétrio Magnoli).

Em 2000, Francis Collins e J. Craig Vente, cientistas que lideravam as pesquisas no âmbito do Projeto Genoma Humano (iniciado em 1989), apresentaram em conjunto o primeiro rascunho do genoma em uma cerimônia na Casa Branca, declarando que “somos todos 99,9% geneticamente iguais, independentemente de raças”. A genética, portanto, logrou provar que “que as alardeadas diferenças entre as “raças” humanas não passam de características físicas superficiais, controladas por uma fração insignificante da carga genética humana. A cor da pele, a mais icônica das características “raciais”, é uma mera adaptação evolutiva a diferentes níveis de radiação ultravioleta, expressa em menos de dez dos cerca de 25 mil genes do genoma humano” (Magnoli).

A constatação científica é um soco no estômago de quem se pretenda geneticamente superior. O racista inveterado que tenta desumanizar suas vítimas, as enxergando algo como bestas, se antes já tinha sua racionalidade questionada pelo bom senso e pela moralidade, desde o final do século XX, passou a ter também pela ciência. Diante disso, era de se supor que a não existência de raças humanas fosse diuturnamente alardeada, ensinada em escolas, rememorada pela mídia e, sobretudo, berrada aos quatro ventos pelos chamados movimentos negros e pelos demais comprometidos com o tal “antirracismo”. Ledo engano; a despeito de citações marginais do sequenciamento do genoma, somos bombardeados com o oposto, com uma reafirmação enfática de uma pretensa pertinência das raças, se não com caráter genético, ao menos social.

É irônico — mas não por acaso — que as mesmas correntes identitárias, “tabulasistas” por definição e que resumem tudo, ou quase tudo, a uma “construção social”, silenciem e até mesmo neguem a maior de todas as construções sociais. Pelo contrário, é provável que dizer que não somos animais (para os quais o conceito de raças é apropriado) seja visto como “politicamente incorreto” para muitos. Se um Labrador e um Rottweiler tem claras diferenças de “personalidade” características de suas raças, o mesmo, resta claro, não se aplica a humanos. Eventuais diferenças que possam ser identificadas em determinados agrupamentos humanos e que, em uma análise primária e anticientífica se tente atribuir às “raças”, encontram sua explicação certamente na cultura.

A insistência dos identitários no conceito de raça tem sua razão de ser, e o fazem, incluso, com a tentativa de dar uma nova roupagem científica à raça. No mesmo livro em que reconhece o sequenciamento do genoma e o fato de que biologicamente não há raças humanas, Silvio Almeida declara: “Em um mundo em que a raça define a vida e a morte, não a tomar como elemento de análise das grandes questões contemporâneas demonstra a falta de compromisso com a ciência e com a resolução das grandes mazelas do mundo”. Os demais ativistas identitários contemporâneos vão na mesma toada, tentando elevar suas digressões teóricas ao status de verdade científica, mesmo quando em claro desacordo com a ciência.

A reafirmação da raça, com um claro viés racialista, por parte dos identitários, cumpre principalmente dois propósitos. O primeiro é basilar uma agenda antiliberal que tenta denunciar a igualdade formal como sendo uma farsa e negar o caráter individual de práticas racistas, transferindo a responsabilidade de pessoas para a sociedade ou para as suas “estruturas”. Por isso, insistem no que chamo de “mito do mito da democracia racial”, onde atribuem a Gilberto Freyre e demais pensadores da formação brasileira uma falsa e caluniosa negação do racismo; é que Freyre, na mesmo espírito do patriarca da independência, José Bonifácio, via na miscinegação um elemento importante da nossa formação social. O identitarismo chega ao ponto de, pasmem, atribuir a quem veja a miscinegação como um fato nacional e algo desejável um sintoma de racismo, ao mesmo tempo que apostam em reforçar um discurso racialista para combater esse suposto racismo.

O outro propósito, muito mais evidente, é que, sem uma lógica racialista e uma reafirmação constante da raça, as chamadas políticas de ações afirmativas não se sustentam. Quem pretende dividir a sociedade entre devedores e credores, vendo nos primeiros os brancos e nos últimos os negros, por óbvio precisam insistir em uma divisão de raças. Ademais, as ações afirmativas, que têm nas cotas raciais a sua expressão máxima, uma vez instituídas e tendo sua parcela de beneficiários, não só são praticamente impossíveis de serem extintas, como têm sua multiplicação encorajada, não só por possíveis beneficiários e ativistas identitários, mas por todos (incluindo políticos) que enxerguem nisso uma forma de sinalizar virtude, aderindo, assim, à lógica racial da qual estas políticas dependem.

A insistência na raça também é diretamente encorajada pelo IBGE e entidades correlatas que encontram nos recortes raciais um ativo para demonstrar seu “comprometimento” com a agenda identitária. A classificação racial, em tese, deveria despontar como um tema problemático e mais um sintoma da racialização e de anticientificismo que deveria ser superado em prol do combate ao racismo, mas que, ao invés disso, é amplamente encorajada, usualmente com o argumento claro de se subsidiarem políticas públicas com explícito recorte racial, em detrimento de políticas voltadas para os mais pobres e sem critérios de identidade — defendidas por muitos dos críticos das cotas raciais.

Como, em sua natureza, a classificação racial é um mal, mas necessária para as diferentes bandeiras identitárias, não é de se surpreender que surja de forma dúbia entre os que empunham essas bandeiras. Não obstante acreditando que elas “tiveram papel importante para definir hierarquias sociais”, Silvio Almeida, muito longe de retroceder destas classificações, as reforça na sua tese do racismo estrutural, que vê nas relações “raciais” uma chave para o entendimento das próprias relações sociais.

Os proponentes do racismo estrutural, pelo óbvio de que miram seus holofotes para as ditas estruturas da sociedade ao invés de ações individuais — não que as ignorem por completo —, sempre dependerão de reforçar a noção de raça, ainda que social, ao invés de biologicamente. A negação da raça não só lhes parece suspeita como uma suposta confirmação da tese, já que uma das consequências de se eliminar o indivíduo e culpar o coletivo ou as relações do coletivo é se livrar do contraditório ao atribuir aos que negam o caráter estrutural do racismo a pecha de racistas, ainda que inconscientes, já que ser racista seria inevitável vivendo-se em uma “sociedade racista”, como crê Djamila Ribeiro.

Cumpre aqui, como conclusão, a tarefa de se antecipar à grita e dizer o óbvio de que o fato de que não existe raça quando falamos de humanos não significa que as consequências da crença em raças sejam fantasiosas. O racismo é um fato inquestionável e negar a classificação humana em raças não é de forma alguma diminuir isso ou apequenar a dor das suas vítimas. O objetivo é justamente o oposto. Se apresento este artigo como uma crítica ao identitarismo e à militância racial, em parte é por crer que a resposta que oferecem ao racismo é falha e, pior, tem o condão de agravar o quadro. O identitarismo, indireta ou diretamente, aposta na animosidade “racial” na medida em que ataca a igualdade formal e enaltece a significação social das “raças”, o que fica evidente em conceitos como “lugar de fala”, “branquitude”, entre outros, que vêm a reboque da tese do racismo estrutural e da afirmação de que toda forma de racismo é desse tipo. Ora, como combater o racismo com animosidade contra quem não é racista? Qual o sentido de se usar uma lógica racialista como pretexto para combater outra lógica racialista?

O que proponho aqui é a defesa daquilo que o identitarismo ataca em suas bases: democracia liberal. A igualdade formal está e sempre esteve a serviço da dignidade humana, assim como a cidadania não pode reconhecer hierarquias baseadas em características inatas e imutáveis. Tudo isso continuaria sendo verdade ainda que de fato houvesse tal coisa como raças humanas, mas o fato de que não há é um ativo a mais para combater o racismo onde ele de fato ocorre. É verdade que o “racismo científico” já não está mais na moda há muito tempo e, como disse, a negação biológica da raça não implica que não haverá racismo, mas se faz extremamente necessário lembrar as pessoas de que não somos animais, passíveis de classificação racial, e de que a condição humana que compartilhamos precede todas as outras, sendo essa noção a única capaz de verdadeiramente combater as diferentes formas de discriminação.

Fontes:

Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro — Manolo Florentino

Uma gota de sangue: história do pensamento racial — Demétrio Magnoli

GÓES, Andréa Carla de Souza; OLIVEIRA, Bruno Vinicius Ximenes de. Projeto Genoma Humano: um retrato da construção do conhecimento científico sob a ótica da revista Ciência Hoje. Ciência & Educação (Bauru), v. 20, p. 561-577, 2014.

Racismo Estrutural — Silvio Almeida

Pequeno Manual Antirracista — Djamila Ribeiro

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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