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O que o Natal me ensinou sobre o individualismo

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Muito provavelmente tudo o que aqui escreverei soará estranho ou até errado para um grande público. De um lado, há aqueles conservadores chatos metidos a santos, que tentam fingir a todo instante um pensamento altruísta, como se nunca tivessem nem por um dia pensado em si mesmos. Do outro, liberais metidos a racionais, que acreditam que a vida pode ser mediocremente resumida em troca de interesses, acúmulo de capital e uso de poder. Normalmente falaria que erram por serem infantis; mas o Natal me ensinou que o problema é que eles são adultos demais. Afinal, tudo o que eu aprendi sobre individualismo eu aprendi com uma criança.

A verdade é que, enquanto uma doutrina ou uma ciência precisam ser aprendidos e estudados, aderidos e defendidos a cada instante – resultando, muitas vezes, em traições justas à causa[1] –, já uma história bem contada ultrapassa a barreira da racionalidade amarga e toca nossos corações de forma doce e tenra[2], resistindo ao tempo e às adversidades por aderir ao nosso ser[3], amadurecendo em nosso seio e florescendo em atos no decorrer de nossa vida. “Cinzenta é toda teoria, e verde apenas a árvore esplêndida da vida”, esclareceu Mefistófeles em Fausto. Certos valores não podem ser traduzidos em palavras cruas, devem ser ensinados pelo exemplo[4]. Muitas vezes, o oculto mostra muito mais do que o vulgar.

Mas, muito pior que isso, praticamente tudo o que conhecemos sobre individualismo em termos conceituais tem uma origem maldita: ideólogos cuja adolescência do pensar resultou numa necessidade urgente e espalhafatosa em se dissociar de qualquer tipo de poder superior ao deles – o que gerou, au contraire, a hegemonização de um poder incontrolável e desumanizado, a razão. Que demos nomes aos bois: são eles os iluministas.

Quando o assunto é individualismo, ao menos o individualismo visto de forma correta, humana, real, nenhuma doutrina, nenhuma escola, foi capaz de ensinar tanto quanto a bela história de quando toda a eternidade, todo o universo, tudo aquilo que existe, contorceu-se, humildemente, em uma reverência, até caber em um pequenino e frágil ser humano, incompleto, sedento por viver, por aprender e se maravilhar. De alguma forma, esse ato de suprema humildade me parece ser, muito mais do que qualquer explicação racional, a única grande prova incontestável de que, mesmo em nossos erros, há um valor imensurável escondido em nosso existir, algo a ser descoberto e compreendido, uma beleza incandescente que não cessa jamais, e que a própria realidade quer que saibamos isso[5].

Desde os primórdios da natureza humana nós buscamos olhar para os céus para justificar nossa existência – na maioria das vezes, falhamos. Acidentes, desastres, morte; a indiferença do universo sempre foi a nossa única forma de explicar uma existência superior. Medo sempre foi o nome de nossa religião. Assim, o homem, incompleto, mortal, em ruínas, ainda no alvorecer de sua história, sacrificava o pouco que tinha para acalmar a fúria do incompreensível. A completude sempre foi um peso para nossas costas e a lança que nos cortava a carne. Nossa incompletude, nosso túmulo. Sem compreender, pedíamos perdão, misericórdia – se fomos feitos assim, por que deveríamos ser punidos por isso? A resposta sempre foi a mais cruel possível.

Como disse Victor Hugo, o caolho é mais triste que o cego, pois sabe o que lhe falta. É natural que nós humanos busquemos por deuses, mas é quando a completude busca o incompleto, é quando o que é perfeito se aproxima do que é imperfeito, é nesse momento que se entende, finalmente, que, de algum modo estranho, a perfeição contempla a imperfeição.

De forma diferente, um dia, a resposta foi gentil e delicada, como poesia. Um anjo na calada da noite, uma família pobre no meio do deserto, uma estrela cortando os céus. Se o terror divino se fazia evidente a todos os olhos, apesar de incompreensível, o dia em que Deus quis ser compreendido foi um dia de pequenos gestos, que só uns poucos mais atentos puderam perceber, como um casal que troca confidências somente com o olhar. Algo grandioso acontecia, o universo virava do avesso; e de repente, o mundo se fez gigantesco porque Deus se fez pequeno.

Por algum motivo, a realidade, tão acostumada a ser todos, se tornou um. Por algum motivo, todo o universo, que não cabe na eternidade, passou a caber em uma pequenina criança em um ponto mal iluminado no meio do nada. Por algum motivo até então incompreensível para nós, a realidade se cansou de assistir ao nosso drama e quis participar dele. Por algum motivo, a partir daquela noite, o que era falho podia ser divino e o que era divino podia ser falho, o que era ordinário revelou sua extraordinariedade. A partir daquela noite, a solidão humana ganhou seu valor; uma vela se acendeu no peito de cada um de nós, e o mundo se fez iluminado por indivíduos[6]. O que o drama da noite de Natal nos ensina é que há, em tudo o que é pequenino e frágil, falho e incompleto, desencaixado e sozinho, uma tendência e uma capacidade para a perfeição, que pode se perfazer ou não[7], e que a perfeição e a imperfeição que convivem no fundo da alma humana esticam-na do fundo de sua torpeza ao pico de sua eloquência sem quebrá-lo ao meio ou estilhaçá-lo em diversos pedaços, que sua abominável vilania e a nobreza de seu heroísmo podem trocar confidências em uma mesma alma sem necessariamente torná-la partida[8]. O ser humano, antes amaldiçoado por ter somente um olho, pôde presenciar a mais bonita história, a história do Deus que se fez cego para elevá-lo a rei e, assim, libertá-lo.

A soberba dos pensadores iluministas foi acreditar que, em meio à onipotência, tinham encontrado o indivíduo – quando, na verdade, estavam a destruí-lo mais uma vez, dessa vez, definitivamente. Como diz o ditado francês, não se faz autópsia num indivíduo vivo. O homem da ciência, como diziam São Tomás e Platão, vai à caça da coisa estudada, e, como disse Ortega y Gasset, “possuindo a arma e a vontade, a caça está assegurada; a nova verdade caíra seguramente aos nossos pés, ferida como uma ave em seu voo”. A eleição da razão como princípio supremo, pensada como aquela que destituiria Deus, serviu somente para fazer aquilo que todas as revoluções fazem – pretende-se rebelião, encontra-se substituição de poder. A razão tomou o trono divino para si. No entanto, não podíamos ver a sua face. Assim, se o indivíduo era antes esmagado por um Deus cruel do Antigo Testamento que era mantido não de forma acidental pela Igreja Católica, com os iluministas, o indivíduo passou a ser oprimido por uma característica que supuseram ser sua, esmagado por si mesmo[9], uma racionalidade infértil, que viria a pôr o homem diante da baioneta não do passado, mas dos mandamentos de um futuro inevitável. Nisso acerta Albert Camus quando diz que, para o homem sem Deus, a única consolação é o futuro[10]. Já o presente é insuportável.

Infelizmente, o pensamento individualista só viria a relembrar mais uma vez o seu foco no indivíduo constituído por unicidade e singularidade com o movimento romântico do século XIX. Digo infelizmente, pois a parte mais sonora do movimento romântico, apesar de ter conseguido captar o caráter rebelde e desencaixado do indivíduo, o fez baseando-se muito mais em Lúcifer[11] – especialmente o Lúcifer de Paradise Lost de John Milton –, uma figura prometeica que tenta trazer a luz à humanidade contra um Deus opressor – como é a visão de Goethe, Byron e Shelley – do que na figura de Jesus Cristo – que também foi um rebelde, como bem pontua G.K. Chesterton, também um romântico –, que liberta e ilumina a humanidade pelo sacrifício voluntário de Deus. O erro dos movimentos individualistas, sejam eles iluministas ou de alguns dos românticos, foi, para singularizar o homem, separá-lo de Deus – quando, na verdade, é a união de Deus com o homem, a união do homem com a realidade, que o singulariza. Não foi um triunfo da razão, como achavam, nem o triunfo do homem sobre a realidade; foi o triunfo do desespero e do suicídio metafísico[12].

O que a história do Natal faz é criar uma ruptura e uma solução para o desprezo que os antigos, os iluministas e alguns dos românticos viam na relação de Deus com o homem, criando um Deus interessado nos dramas humanos e a substituição dos olhos cartesianos que enxergam tudo como um sonho pelos olhos realmente românticos que enxergam toda a realidade como poesia[13]. O objetivo do Natal é unir o indivíduo e a realidade, uma reconciliação mediada pela beleza.

O conto de Natal nos ensina que mesmo aquilo que é onisciente só consegue compreender o drama humano se puder tocá-lo; nos ensina que somente uma aproximação pode nos fazer compreender aquilo que contemplamos: tocar também é uma forma de conhecer. Não havia outro jeito de ensinar os homens que não se tornando um. Mais do que isso. Não havia outro jeito de ensinar os homens sem compreendê-los. Não havia outro jeito de compreender os homens, sem sentir o que sentimos, sem temer o que tememos, sem se desesperar como nós, sem ser feliz como somos; sem sentir a desesperança e a esperança que habita a cada um de nós. Estar em nossa pele. Sentir a dor que é ser divino e caído, simultaneamente.

Só através do amor nós conhecemos profundamente a propriedade da coisa amada, bem disse José Ortega y Gasset. O nascimento de Cristo é um episódio que nos conta a história de quando aquilo que cativa assumiu a responsabilidade para com aquilo que cativou, uma reverência da realidade em direção ao ser humano, realidade esta que, desde aquela noite, espera, de joelhos, que nós a reverenciemos de volta. É a consolação da natureza triste e sozinha do ser humano, confirma a unicidade humana, mas lhe oferece paz; uma resposta ao apelo feito por milênios de chamados de milhares de vozes solitárias que não foram compreendidas pelos deuses do passado.  É um ato de amor e de perdão, um alívio do peso do universo das costas dos homens. O homem só pode ser livre e único, indivíduo, com os ombros livres do peso de tudo o que não é seu e os olhos voltados para o horizonte. Não há liberdade sem esperança, pois a liberdade desesperançosa só pode resultar em tortura – e a maior das torturas é estar sozinho em sua própria dor. A desconexão mata tudo, a conexão enobrece. Para ser livre, o homem deve estar em comunhão com a realidade e consigo mesmo[14].

O amor é um divino arquiteto que desceu ao mundo, segundo Platão, ‘a fim de que todo o universo viva em conexão’”. O amor é a ampliação da individualidade, é sua exaltação, é arrogação de todo o universo para dentro do calor e do conforto da própria alma. O recado que o nascimento do pequenino Jesus nos deixa é que o verdadeiro racionalismo, o verdadeiro individualismo, o verdadeiro ato livre, é amar.

Amar; amar tanto a ponto de se fazer pequenino, a ponto de se espantar e se maravilhar com qualquer ato ou fato vindo da coisa amada. Amar a ponto de querer estar junto, de querer participar, de intervir somente com as belezas da própria liberdade, de querer aprender, cuidar sem se tornar tirano, sacrificar sem se destruir e sem destruir a coisa amada; se ajoelhar perante a beleza do amor e compreender que não há retribuição maior que a coisa amada pode dar do que existir, do que permitir ser amada.

Todas as teorias e todas as maquinações, as discussões políticas que pregam a libertação, que pregam um futuro livre, são as teorias do desespero. Que o Natal nos ensine que a maravilha da vida é ser vivida e a maravilha da liberdade é ser aproveitada[15]. Todo aquele que espera para um dia viver odeia a vida. Todo aquele que espera para um dia ser livre odeia a liberdade. Sabe mais da liberdade quem a pratica do que quem fala sobre ela.

Que este Natal seja para nós a renovação de nossa esperança. Que lembremos que a força de nossa liberdade está em sermos livres. Que o medo de errar não nos paralise diante das injustiças e que a fidelidade ao bem não nos torne vaidosos. Que tenhamos coragem para enfrentarmos os perigos, que aproveitemos essa linda aventura que é viver.

Um feliz Natal para nós.

[1] Não, a visão é sempre sólida e confiável. A realidade é que muitas vezes é uma fraude. Como sempre fiz, mais do que nunca o fiz, eu acredito no liberalismo. Mas houve um róseo tempo de inocência em que eu acreditava nos liberais. GILBERT KLEITH CHESTERTON, Ortodoxia.

[2] Apaixonar-se por alguém é mais poético do que se apaixonar pela poesia. GILBERT KLEITH CHESTERTON, Ortodoxia.

[3] O que eu sei todos podem saber; meu coração é só meu. JOHANN WOLFGANG VON GOETHE, Os Sofrimentos do Jovem Werther.

[4] O Quadro deve ser pintura em toda sua profundida; as ideias que nos sugere devem ser cores, formas, luzes; o pintado deve ser vida. (…) Pintar alguma coisa é dotá-la de condições de vida eterna. JOSÉ ORTEGA Y GASSET. Adão no Paraíso.

[5] Isto é o que se chama de abstração: a vida descoberta pela ciência é uma vida abstrata, enquanto, por definição, o vital é o concreto, o incomparável, o único. A vida é o individual. JOSÉ ORTEGA Y GASSET, Adão no Paraíso.

[6] Mas é verdade em certo sentido que Deus, que fora apenas uma circunferência, era visto como um centro; e o centro é infinitamente pequeno. É verdade que a espiral espiritual de agora em diante funciona para dentro e não mais para fora, e nesse sentido é centrípeta e não centrífuga. A fé se torna, de várias maneiras, uma religião de realidades pequenas. GILBERT KLEITH CHESTERTON, O Homem Eterno.

[7] Há dentro de toda coisa a indicação de uma possível plenitude. Uma alma nobre e aberta sentirá a ambição de aperfeiçoá-la, de auxiliá-la para que alcance essa plenitude. Isto é o amor – o amor da perfeição do amado. JOSÉ ORTEGA Y GASSET, Meditações de Quixote.

[8] O cristianismo é a única religião do mundo a sentir que onipotência tornava Deus incompleto. Apenas o cristianismo sentiu que Deus, para ser totalmente Deus, deve ter sido rebelde bem como rei. Dentre todos os credos, o cristianismo foi o único que acrescentou a coragem às virtudes do Criador. Pois a única coragem digna desse nome deve necessariamente significar que a alma passa por um ponto de ruptura e não se parte. GILBERT KLEITH CHESTERTON, O Homem Eterno.

[9] “De que serve querer compreender aquilo que não é deste mundo?” Mas ele só vivia para o que não é deste mundo, e esse orgulho na busca do absoluto retirava-o justamente da terra, da qual nada amava. ALBERT CAMUS, O Homem Revoltado.

[10] “O negócio está apenas no começo, está longe de terminar, e a terra terá ainda muito que sofrer, mas atingiremos o nosso objetivo, seremos César e, então, pensaremos na felicidade universal.” ALBERT CAMUS, O Homem Revoltado.

[11] Basta comparar o Lúcifer dos pintores da Idade Média com o Satã dos românticos. Um adolescente “jovem, triste e encantador” substitui a besta-fera de chifres. “Belo, de uma beleza desconhecida na terra”, solitário e poderoso, sofredor e desdenhoso, ele oprime com negligência. Sua desculpa é o sofrimento. ALBERT CAMUS, O Homem Revoltado.

[12] A revolta da razão, no seu caso, termina em loucura. ALBERT CAMUS, O Homem Revoltado.

[13] Nós dizemos, não só por falar, mas muito literalmente, que a verdade nos tornou livres. Eles dizem que ela nos torna tão livres que não pode ser verdade. Para eles, acreditar na liberdade que temos equivale a acreditar em fadas. Alimentar a fantasia de homens com vontade própria equivale a acreditar em homens com asas. Acreditar num homem que tem a liberdade de pedir ou num Deus que tem a liberdade de responder equivale a aceitar a fábula do esquilo conversando com a montanha. Temos aqui uma negação humana e racional que pessoalmente hei de sempre respeitar. Mas me recuso a mostrar algum respeito por aqueles que primeiro cortam as asas, prendem o esquilo, soldam as correntes e recusam a liberdade, fecham atrás nós todas as portas da prisão cósmica com um clangor de ferro eterno, dizem que nossa emancipação é um sonho e nossa masmorra uma necessidade — e depois calmamente viram as costas e nos informam que eles têm um pensamento mais livre e uma teologia mais liberal. GILBERT KLEITH CHESTERTON, O Homem Eterno.

[14] Mesmo no sentido de que o homem está em harmonia com o universo, trata-se de uma universalidade absolutamente solitária. O próprio sentido de que está unido a todas as coisas é suficiente para separá-lo de todas. GILBERT KLEITH CHESTERTON, O Homem Eterno.

[15] Porque é um fato: quando chegamos aos subúrbios mais longínquos do pessimismo e não encontramos nada no universo que pareça uma afirmação capaz de nos salvar, voltam-se os olhos para as coisinhas pequenas do cotidiano. JOSÉ ORTEGA Y GASSET, Meditações de Quixote.

*Igor Damous é advogado criminalista. 

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