fbpx

O Paradoxo da Solidão e a nova sociedade de massa

Print Friendly, PDF & Email

Passeando novamente meus dedos por entre as páginas de O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, perpetuando meu velho costume de revisitar casualmente livros que de alguma forma a mim se demonstraram simpáticos, eis que me deparo com paradoxal sentença que, apesar de antes percebida, no atual momento em que vivo me fez perceber o elefante na barriga da cobra:

E eu gosto de festas grandes. São tão íntimas. Quando há pouca gente, não se tem qualquer privacidade”, disse Jordan Baker, personagem irrelevante do livro.

O Grande Gatsby é daqueles clássicos que nos mostram porque os clássicos são e sempre serão eternamente atuais. Escrito por um Fitzgerald absorvido pelo vibrante cenário da Era do Jazz e do Pós 29, a era dos excessos, do barulho incessante dos trompetes, da vida social atribulada – mas, ainda assim, um Fitzgerald afogado em seu amor por Zelda.

Todas essas características aparentemente antagônicas – o homem público e o escritor apaixonado por uma única mulher – se traduzem em uma obra com capacidade para perceber as miríades de complexidades que compõem uma relação relativamente moderna, mas que impactou o pensamento filosófico do séc. XIX: o questionamento acerca da relação por entre homem e a sociedade, e todas as relações que dela nascem ou, mais antigas que ela, com ela se aguçam.

O advento das cidades se traduziu no aparecimento das multidões, na dissolução das pequenas vidas privadas no meio social, no crescente interesse social na esfera íntima das pessoas – uma espécie de noveau petit genre –, no indesejável, porém sedutor, compartilhamento de todos os momentos pessoais com pessoas que não se encontram nessa pequena esfera de pessoas c0m quem compartilharíamos nossa vida em circunstâncias normais. Nunca estamos sozinhos, nunca estamos realmente sozinhos – nossos desejos, nossas intenções, nossas imagens, quem somos, estão hoje eternamente vinculados ao escrutínio social.

Antes, não era tanto assim; havia a esfera privada da vida e a vida pública. Havia a família e havia a pólis, e o impacto que a última gerava na outra era considerável; mensurável. As leis, a guerra, de fato ditavam o andamento das vidas das famílias, mas somente em seus aspectos mais desnecessários – haverá famílias mesmo que as leis proíbam, haverá famílias mesmo que os filhos esperem pela volta de seus pais dos campos de batalha ou mesmo que já não esperem mais. Antes havia uma porta que separava o mundo privado do mundo público e ambos os ambientes eram povoados independentemente em momentos diferentes pelas mesmas pessoas.

Uma porta sempre pronta para ser aberta, pois é essa a função de uma porta – fechar para depois se abrir, abrir para em algum momento se fechar. O homem antigo sabia da importância do espaço público. Ciente de que a existência humana é uma existência em meio aos outros homens – para os romanos, morrer queria dizer exatamente sair da presença de outros homens –, o homem antigo via na pólis como a possibilidade buscar a eternidade em seus feitos, como na escolha de Aquiles. Afinal, o homem é, de fato, um zoon politikon.

A vida pública era, então, uma forma de potencializar as individualidades humanas. A arte da política, conforme vista pelos grandes sábios, o catalisador das capacidades específicas de cada um, o cenário ideal para o heroísmo humano. O homem, em sua constante busca pela sabedoria, via na pólis a oportunidade perfeita para alcançá-la pelo logos, pela palavra, pelo convívio com outros grandes homens.

Mas Yuval Harari não está tão errado em falar que mesmo nos primórdios da humanidade existia a fofoca, talvez errado somente em sobrevalorizá-la: há um ponto em que a vida privada e a pública se tocam, em que o fim de uma se confunde com o início da outra, de tal forma que o que se perde é a noção do conforto da privacidade e a vista dos estímulos que publicidade traz às potências humanas. A vida social, diferentemente da vida pública, não busca novos horizontes nem explorar potências individuais; muito pelo contrário, cria um cenário cíclico, suficiente em si mesmo, em que nada se cria, nada se perde, tudo se transforma – uma vida de reputações a serem alçadas ou destruídas, sem gestos bondosos ou grandes feitos, sem qualquer razão para além do homem, mas de função centrípeta.

A ética, logo substituída pela etiqueta, a ética das pequenezas. O comportamento humano, antes ditado pelos princípios fundamentais da razão universal, transformado no comportamento domesticado, aceitável, encaixado – o homem, antes herói de um épico, maestro de sua própria sinfonia e novelista de sua própria vida, muitas vezes divergente, dissociado da maioria, mas ainda um homem na arena, agora, coadjuvante de uma crônica escrita pela instabilidade instintiva de um grupo. Eis a vida social, devoradora de individualidades. Eis a massa.

José Ortega y Gasset denuncia em seu primoroso ensaio que a massa é um fato psicológico, uma escolha de alguém em não se valorizar, algo que antecede o aparecimento dos indivíduos em aglomeração. De fato, é uma escolha. Mas ainda assim ousarei discordar do eloquente filósofo espanhol, não no mérito de suas alegações, mas na insuficiência de sua problematização.

Isso porque, em meio a sua fúria direcionada às massas, Ortega y Gasset talvez tenha se deixado levar pela emoção – algo comum ao sangue latino que compartilhamos – e hesitado em perceber que há uma diferença fundamental entre a escolha de um indivíduo em ser massa antes de que qualquer aglomeração tenha sido feita e aquela decisão tomada em meio à densidade opressiva das multidões já formadas.  Sobre esta segunda condição, recai ao homem aquilo que chamo de Paradoxo da Solidão.

Ortega y Gasset inicia seu ensaio apontando um fato notório: estamos rodeados por multidões, os lugares que antes eram mera preferência de uns vieram a se tornar alvo das aglomerações. A lógica é simples, porém sublime: se antes preferia-se algo, com a força de um ser, agora, consome-se sem querer. A multidão vai sedenta àquilo que dizem ser bom, sem decidir, sem pensar – a subjetividade dos valores de esvai e, com ela, rui também o valor da subjetividade.

Mas, se há lugares cheios demais, há, necessariamente, lugares mais vazios do que deveriam estar. Se a massa vai aonde dizem ser bom, melhor, isso quer dizer que muitos indivíduos abandonam os locais que poderiam ser de sua intima preferência e acabam por sucumbir à preferência social. Assim, os ditos melhores livros são comprados, os mais luxuosos restaurantes são frequentados, as ditas melhores ideologias proferidas, enquanto alguns pequenos restaurantes fecham as portas, alguns livros sequer são publicados, algumas ideias, escondidas em diários. Se há multidão há, mandatoriamente, espaços vazios.

E a palavra utilizada deve ser ratificada, vazios. Em um mundo de competitividade alucinada, em que – não é muito surpresa – a falta de lucro é determinante para a inconsequente e indiferente morte de qualquer coisa – afinal, nada sobra à uma sociedade de massa além de atribuir todo o valor ao dinheiro, o substituto de todos os valores –, nada mais óbvio do que o fato de que tudo aquilo que não é consumido pela massa deixe de existir. Assim, não se trata de encontrar poucos em alguns lugares, mas sim de ir a certos lugares e não encontrar ninguém.

De fato, à época em que Ortega y Gasset escreveu A Rebelião das Massas, talvez ainda devesse existir o choque entre massa e minorias; mas não é o que ocorre hoje. Ou os lugares estão lotados ou estão vazios. O homem de hoje choca-se com ele mesmo.

Ao homem do pós-advento das massas, com essas multidões devoradoras de subjetividade já estabelecidas e o rodeando, dominando cada cenário que não seja aqueles abandonados, cabe uma decisão muito mais difícil do que a de se entregar à perda de seu ser ou não: ficar sozinho ou rodeado por uma multidão.

A resposta atual soa uníssona, no entanto. Todos aqueles que se dão importância suficiente preferem a solidão, aqueles que não preferem, deveriam preferir. Surpreendentemente, em massa, o homem acredita ficar sozinho.

Muito ao contrário do que a maioria dos filósofos dizem, essa raça que, desde Platão, se vê como casta, envolta num estoicismo irreal, a solidão pode até ser o caminho mais rápido para que o homem se veja diante de si mesmo; porém, não é necessariamente o melhor caminho para que ele se compreenda a si mesmo como nos implora o Oráculo de Delphos.

De fato, em meio da solidão, distante do mundo e dos outros, o homem encontra-se a si mesmo em um espelho – se vê, finalmente. Mas o que vê sob a luz do alvorecer nas águas espelhadas de sua própria existência é muito mais chocante do que pode suportar – encontra, do outro lado do espelho, tudo o que escondeu de si mesmo a vida toda. É o que Jung chama de sombra, a pior parte de um existir.

O homem, atento a si mesmo, enxerga cada fenda de seu ser que o compõe e, diante do que vê, entra em colapso. E é isso que vê o homem: que é ele, por definição, no âmago de sua identidade, manco – compõem sua existência características que não possui, propriedades que não detêm, pertence ao homem o não pertencimento, sobra-lhe o faltar.

Eternamente desencaixado, mandatoriamente sozinho, aquele que volta seus esforços ao autoconhecimento no silêncio da solidão logo encontra o vácuo existencial, passa a escutar o entrar e sair de ar de seus pulmões, o preencher e esvaziar dos átrios de seu coração – percebe, rapidamente, que é composto não só do que é, do que lhe preenche, mas que o preenche também o que lhe falta – toca-lhe o anjo torto que enuncia ser gauche o seu destino. O mundo, então, como para o poeta, se torna vasto demais. Ao homem sozinho tudo lhe falta.

Não é à toa que a simbologia do autoconhecimento é a água, pois é dado a todo homem que mergulha em si mesmo se afogar. Como todo náufrago cujos pulmões se encheram d’água, o homem que busca respiração em seu ego persegue a superfície em uma luta desesperada, arrastando com ele a sua própria decisão de se encarar, sua existência enquanto indivíduo e as necessidades anteriores que o fizeram se isolar. Sofre o homem que enxerga o mundo lá fora, por entre os dentes da baleia.

Afoito, aquele que busca o autoconhecimento por meio do silêncio logo encontra a triste verdade: é imposta a todo homem a vontade de pertencer e permanecer com seus pares; transborda a todo ser humano o desejo de pertencimento, pois é a vida o estar entre os homens e o morrer o retirar-se de sua companhia. Sim, é de se duvidar que homem, que sonha com compaixão e o amor humanos, possa perseverar em seu exílio – como bem refletiu o monstro de Frankenstein.

Assim, o homem solitário se entrega à multidão, sem perceber, como aquele que, sufocado, busca ar sem decidir – buscando ser a si mesmo, senhor de suas decisões, acaba por se tornar ninguém, escravo das circunstâncias. Como bem observou Viktor Frankl, ao se perceber destituído de um sentido, de algo importante para além de si mesmo, o homem se entrega aos prazeres. Sejam os prazeres sensíveis – superfície das experiências –, sejam os prazeres da aceitabilidade social – superfície da vida pública.

Buscando autocentrar-se, o homem se descentraliza caoticamente, afastando-se impulsivamente de si mesmo, concebendo o pouco que tinha de si ao mundo, em uma tentativa desesperada marcada pelo medo de si próprio, de sua própria imagem no espelho. Ciente de que não matará sua sede consigo próprio, volta a buscar nos outros tudo o que lhe falta, em uma impulsividade destruidora a qual, em seu primeiro ato, sentencia o seu próprio ser.

Se nos for dada a missão de comparar a vida humana a algo, podemos bem dizer que ela é feita como uma música – um conjunto progressivo de sons e silêncio, harmonicamente dispostos em uma marcha singular, única. Não sabemos exatamente como é o inferno, se é feito de um barulho ensurdecedor ou de silêncio torturante, mas algo Dante Alighieri nos adiantou: ele é composto de monotonia.

O problema do barulho da multidão é que ele engana – aos ouvidos não exigentes, substitui a música, mesmo que momentaneamente, posto que positivo. Ao homem que se entrega à multidão, carece convivência consigo mesmo, falta-lhe espaço para que se distinga em meio ao emaranhado de corpos que lhe fazem sombra, que se reconheça em seus pormenores, que lhe agrade a própria existência e companhia – falta-lhe silêncio.

A mente segue o fluxo daquilo que a circunscreve, afinal, todas as circunstâncias que entram em contato com a vida humana se tornam parte de sua própria existência. Toca-lhe a superfície de tudo que a faz companhia, oferecendo-lhe a vulgaridade de seu revestimento como um convite para que a mente verdadeiramente aventureira busque conhecê-la, a realidade, em seu âmago, em sua intimidade. O mero existir humano é como um pedido tácito de casamento.

O homem que se entrega à multidão, no entanto, acredita contentar-se com a película vulgar que encobre as circunstâncias – para ele, seria suficiente chamar de floresta qualquer agrupamento de arvores que possa esconder uma mata virgem por trás, ela existindo ou não – ele não buscará saber. Para ele, confundem-se comprimento e profundidade. Ao menos em juízo inicial.

No entanto, é o homem, inevitavelmente, profundidade – seus olhos, amaldiçoados, estão eternamente fadados a se questionar acerca da superfície de tudo. Mesmo que possa se iludir, desconfia, cedo ou tarde, o homem, da existência longitudinal de tudo, pois é o homem, antes de tudo, latitude. A todo homem é imposta a vontade de pertencer, e a toda vontade de pertencer é imposta a visão de si mesmo; para ter vontade de pertencer, o homem deve, antes de tudo, perceber seu desencaixar.

Deste modo, o homem banhado em multidão constrói um involucro, uma casca translúcida com ambivalente função: proteger sua intimidade da multidão e servir de lente pela qual interpreta a realidade – cria uma persona, um eu não-eu, um eu de todos mas não de mim mesmo, para ser o que não é, ver o que não sente.

Mas Jung é certeiro quando nos informa que o homem jamais conseguirá desembaraçar-se de si mesmo em nome de uma personalidade artificial. O homem entregue à multidão fluída perde-se, carece-lhe o que tocar, onde firmar o pé. Se o homem solitário se afoga no mar da existência, o homem da multidão boia em sua superfície.

Não há caminhada se não há destino da mesma forma que não se a chega lugar nenhum sem se caminhar. Envolto em multidão, o homem patina no tempo, crê-se caminhante, mas sequer sai do lugar. Em uma vida de eterno retorno, o homem que se vê como somente parte da multidão, por mais distraído que esteja, percebe o tempo passar – e é o tempo, nosso maior inimigo, que nos lembra que cada vida é única e particular, pois é cada morte um problema a se resolver da mesma forma como cada sonho deve ser sonhado: sozinho.

A um homem ao qual é imposto monótono som, logo torna-se ele silêncio, como se inexistente. A um homem ao qual é imposto o vazio do silêncio, em pouco tempo inicia-se uma busca por qualquer zumbido ou ruído à sua volta.

É este o Paradoxo da Solidão: o homem que se retira da sociedade para se autoconhecer, foge, infantil, de si mesmo e logo corre novamente ao encontro da multidão, inconscientemente, como uma criança assustada. O homem que se entrega à multidão, logo se encontra através do zanzar de corpos irreconhecíveis que o circundam, topa consigo mesmo em meio ao amontoado de desconhecidos. Ambos os encontros, no entanto, não traduzem a completude da existência humana: nós somos feitos de eu e de multidão e se entregar a somente um ou outro é se entregar a somente metade de si mesmo. Normalmente, ambas as interpretações falhas ocorrem circularmente, uma se prestando a alimentar a outra – como a serpente que busca a própria cauda, o próprio caos. Um novo homem, perfeito, sob à métrica de Nietzsche – louco.

Como Sísifo, o homem cada vez que busca a si mesmo encontra a multidão, toda vez que busca a multidão, encontra a si mesmo. E é neste ponto que reside o gênio da frase que apontei já ao início deste ensaio: nada é mais íntimo que a multidão, nada é menos privativo que a solidão.

Antes, o homem, em um dado momento histórico, tentou entregar seu ser diretamente à multidão, uma nação, um povo, uma etnia, uma religião. Assim nasceu a sociedade de massa que conhecemos e de que tanto falamos, responsável pela ascensão do totalitarismo. Bem descreveu Orwell que o homem sobre o qual pesa aos ombros o pertencer unicamente social busca, a todo custo, o quarto longe das vistas de todos. O choque do homem-massa consigo mesmo representou o apogeu do movimento existencialista e a sua pergunta essencial: quem sou eu em meio a tantos outros?

Mas a pergunta não põe em oposição somente o homem e a multidão, coloca também em oposição a própria existência humana – o eu e o outro que existem em mim. Interpretando a multidão como composta por ninguém, o homem existencialista cria uma barreira entre a identidade e a alteridade que compõe a identidade humana, cingindo os laços essenciais que ligam o homem a si mesmo e a esse paradoxo que lhe é essencial. O resultado é inevitável: o desespero.

A existência precede a essência, enunciou Sartre, dizendo que o homem está sozinho no universo, eternamente amaldiçoado a ser livre e a buscar companhia em sua própria e medíocre existência. O inferno são os outros.

Boiando no mar da indiferença, o novo homem busca se autoconhecer como um tumor é estudado após ser retirado do corpo vivo, busca se isolar e se interpretar como se fosse completamente separado de todos os outros. Sua vida, seu projeto, não admite parcerias. Eis o homem existencialista de Sartre, cínico, cético, ilhado, desesperado. E, assim como o filósofo vesgo, tão envaidecido pela sua própria solidão que, não surpreendentemente, dificilmente é visto longe das multidões.

Vivemos um novo marco da sociedade de massa: a sociedade do isolamento. Paradoxalmente, o homem, de tão isolado, nunca esteve tão inserido, tão fundido, tão sedento pelas multidões.

Mais que isso, a sociedade do isolamento foi capaz de gerar aquilo que a sociedade coletivizada não foi: uma derrota justificada da individualidade. Se antes o viver coletivizado era nada mais do que uma decisão, sobrevivendo ainda as razões para a existência e manutenção das individualidades, a sociedade do isolamento, muito ao contrário, mostrou ao homem a justificativa para o fim de toda a individualidade – assim como a queimadura mostra ao homem os perigos do fogo, sem razões, sem reflexões: só o sentir.

Anteriormente, o homem decidia se tornar massa – decidir, algo que somente um indivíduo faz – e, assim, mantinha sua humanidade, mesmo que em seu bolso. Agora, ao contrário, o homem isolado já não decide mais se tornar massa – ele não decide nada, a ele lhe dói ser ele mesmo. De joelhos, ele rasteja, sem perceber, sem entender, submisso, rumo à sua extinção. Já não se trata mais do homem que se torna massa, mas, agora sim, do homem-massa; não do homem que busca um motivo para existir, mas do homem que já desistiu, do homem que busca sobreviver, mesmo que deixe sua existência no meio do caminho. E assim, ao invés de decidir ser massa, pior, ele se torna massa; não defende uma causa, se torna uma causa.

A existência precede a essência, enunciou Sartre; e em seu estrabismo, mirando em um, acertou no outro. O homem existencialista faz tudo menos existir, procura tanto a si mesmo que, encontrando a grande dúvida que é ser humano, se satisfaz com qualquer pequena resposta. Uma falsa essência encobre sua existência, suas circunstâncias o dominam, uma classe, uma raça, um povo, uma causa, o futuro da humanidade, são o que ele é – e nada mais. Um soluço existencial já lhe responde a fundamental questão do porquê ele respira.

Humanidade, uma palavra extraordinária, como o homem. Humanidade: característica do que é humano – humanidade: o conjunto de todos os humanos. Aquilo que nos separa é o que nos une, nossa indissociabilidade, nossa sociabilidade. Somos únicos, por isso somos iguais. Buscando igualdade, abandonamos nossa essência individual e a igualdade de nossa individualidade, e nos agasalhamos de uma pretensa igualdade, falsa e artificial. Nos dissociando dos outros homens, deixamos de perceber o quanto somos inexoravelmente diferentes e do quanto nossa convivência está fadada a se equilibrar e se apoiar em nossas diferenças, e assim, interpretamos todos os homens como se fossem artificialmente iguais a nós, extensão de nós – ou que somos extensão deles, pois, já não existe mais eles ou eu, só nós.

Mas, como pode algo que ao mesmo tempo aquece e protege do frio, queimar? perguntou o monstro de Frankenstein. O homem que se mantém longe do fogo por conta da queimadura, está fadado a morrer de frio, do mesmo modo que o homem que busca se aproximar demais, está fadado a se queimar. Isolamento e multidão são como fogo para o homem – ele precisa de ambos para viver, pois é ele constituído de ambos.

A verdade é que o homem que se isola é tão revolucionário quanto o homem que esconde a si mesmo na multidão – ambos lutam contra a realidade que os oprime, tentam oprimir aquilo que lhes é realidade. Ambos odeiam alguma parte de si mesmos e, portanto, odeiam a si mesmos também. Ambos perdem, pois se conhecer é se aceitar.

No entanto, como pode o homem se aceitar sendo composto por tamanho paradoxo? Logo o homem, que busca tão ardentemente a unidade e a vitória da razão, como pode este homem aceitar o absurdo de sua existência?

Não pode, é a resposta; não deve, o conselho. Para viver uma vida melhor, para se conhecer, o homem não deve aceitar o paradoxo que existe dentro de si, o homem deve contestá-lo até o último momento – mas deve, acima de tudo, amá-lo ardentemente. Sartre não estava errado em dizer que o homem só existe na medida em que se realiza. O problema é que ele tinha uma visão muito limitada do que é a realidade para a qual os olhos do homem apontam.

Só é dado ao homem que sabe povoar sua solidão e que sabe estar só em uma multidão a capacidade de se compreender por completo, pois, estranhamente, o homem é estranho a si mesmo como qualquer outro seria, e é estranho a todos os outros como só ele pode ser. “Estar fora de casa e, contudo, sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo” – como disse Charles Baudelaire. É carregar consigo mesmo ao mar a sua casa, como o marinheiro de Joseph Conrad.

Amar o mundo sem confiar nele, ser do mundo sem ser mundano, nas palavras de Chesterton. Se permitir fazer parte desta parte que nos falta sem nos ressentirmos conosco mesmos por haver algo faltante em nós – se entender como gauche, e olhar o vasto mundo como uma oportunidade, e não uma maldição. Consentir e recusar a multidão, como um artista. É assim que os escritores fazem sua arte. Afinal, o talento educa-se na calma, mas o caráter, no tumulto da vida.

Mas, como disse Camus, ao homem que é dado a essa estranha multitude solitária, falta-lhe um dia um sorriso amigo. Essas ainda são as respostas parciais à absurdeza de nossa condição interior, são somente antídotos ao ódio e ao medo que um homem pode ter de si mesmo. Ainda falta algo. É preciso dar sentido à falta de sentido, é preciso imaginar Sísifo feliz.

O primeiro passo da solução para a impossibilidade da felicidade diante do paradoxo da solidão consiste em atribuir significado à insignificância da existência, em pintar o cinza do mundo com as cores únicas de um projeto pessoal – ver-se parte do mundo sem se ver submisso a ele. No entanto, mesmo sem se abominar a si mesmo, não se trata de uma reconciliação, mas sim de um armistício.  Falta ao homem, se quer ser feliz, conciliar-se com a multidão por completo para que possa conciliar-se por completo consigo mesmo. É preciso que o homem se perdoe em querer pertencer.

O inferno são os outros, o paraíso é o outro. A multidão que compõe a mim, tão diferente de mim, é ininteligível em sua disformidade – só de pensar multidão, encobrem-se as individualidades que a compõem, encobre-se tudo que a mim se assemelha. A multidão foge de nossa compreensão como tudo o que é coletivo, pois, neste universo, nada é coletivo, tudo é individual. O homem, para entender a multidão que integra seu eu, precisa antes enxergar o eu que integra a multidão.

O homem que se ensimesma se assusta – assustado, ele foge para a multidão, abdica de si. O homem que voluntariamente se embebe em multidão e ignora sua individualidade logo topa consigo mesmo, desconexo, fraturado do coletivo que o cerca. Em nenhuma das hipóteses o homem enxerga qualquer afinidade entre sua identidade e sua alteridade: cada vez mais a fenda que divide ambas as suas dimensões se mostra mais profunda – parte-se a sua cabeça, em um hiato de si consigo mesmo.

O homem que entra na multidão carregando em seus bolsos sua individualidade jamais topará consigo mesmo – entretanto, corre o risco de encontrar, em meio à aglomeração de corpos frios e irreconhecíveis, em meio ao barulho ensurdecedor da multidão, alguém que, como ele, carrega a si mesmo nos bolsos. Só quem se reconhece como um único si mesmo em meio ao outros pode reconhecer em meio aos outros um outro igual a si mesmo.

A reconciliação do ser humano com sua alteridade se dá no convívio com o outro – não o outro qualquer, o outro conjunto, mas o outro reconhecido enquanto unidade do ser indivisível, como ele. “Eu me torno plenamente quem realmente sou, apenas nos contextos que me impelem a reconhecer que eu sou outro nos olhos dos outros“, diria Roger Scruton.

Afinal, os olhos do outro são o espelho de nossa alma. O mundo que a mim pertence oprime, pesa sobre meu ser, me cerceia em meu agir em seu pensar. A alteridade é possibilidade, mas, ao mesmo tempo, é julgamento. Nela reside o dever-ser e o poder-ser. E o dever-ser que nos habita é o peso do mundo sob nossas costas – o peso do mundo preso às nossas costas. Por mais que fujamos da cena do crime, ele nos acompanha, como acompanhou Raskólnikov.

Porém, é no amor ao outro que compreendemos que mesmo o falho pode ser adequado, que a individualidade, o desencaixar que a mim habita e a ti habita também, pode, de alguma forma mágica, se encaixar perfeitamente em outra individualidade, se banhar na alteridade sem entrar em choque com ela, modificá-la sem causar máculas. Afinal, “há no amor uma ampliação da individualidade que absorve todas as coisas, que as funde conosco”. O homem que ama o outro enquanto único, ama sua unicidade também; compreende, finalmente, seu desencaixar, e assim, encaixa-se. Descansa, finalmente.

De fato, o homem é um animal político, mas, sendo ele fonte de energia e calor intermináveis, se fechado em um sistema hermético, todo o sistema entra em colapso, como uma panela de pressão defeituosa. A politicidade humana, para ser exercida da forma correta, no cenário público e não no social, deve ter uma válvula de escape para além de toda a hermeticidade da multidão: o amor, a mais poderosa das forças antipolíticas, segundo Hannah Arendt.

A porta que separa o cenário público do cenário privado não é natural, não nasce do nada – ela é posta ali por um motivo: proteger da fúria da multidão aquilo que está cerrado por trás dela, sensível, sublime. Mas são as portas do Taj Mahal também, a proteção – a proteção de um corpo frio, de um amor morto –, foram feitas para permanecer fechadas, eternamente. Um homem que se isola em uma casa não fecha as portas de um lar – fecha as portas de um mausoléu. Sem se pôr a público, sem buscar a eternidade por meio de suas ações, sem buscar encontrar o outro, ele acredita manter a porta eternamente fechada – e, como já vimos, essa eternidade tem a duração de um lampejo. A verdade é que o homem que fecha a porta de um mausoléu a deixa entreaberta, sempre: sua intenção não é descansar em paz – é ser encontrado, ser salvo. E será. Será encontrado, mas não salvo, pois não há salvação para aquele que é encontrado.

Perder-se no caminho é o destino de todos aqueles que caminham; encontrar-se, no entanto, é a própria morte, o próprio destino final. Fazer de si o que não se sabe é a própria arte de viver, pois é o existir humano uma comunhão entre o fazer e o não saber, um choque entre o não fazer e o que se poderia ser. Perder-se, afinal, é não esperar ser encontrado, como uma vítima de um assassínio – é procurar encontrar, não a si, mas o outro. Só um homem vivo se perde, mas para onde vai o homem que já se encontrou?

Por mais paradoxal que pareça – e seja –, uma sociedade de máscaras é melhor que uma sociedade de sorrisos. Há, por trás de toda máscara, alguém; um sorriso, uma lágrima, algo, algo a se encontrar na velhice. Não há, no entanto, nada a encobrir por uma máscara pegada à cara. Já não há mais máscara, já não há mais cara; não há mais nada.

*Igor Damous é advogado criminal. 

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Instituto Liberal

Instituto Liberal

O Instituto Liberal é uma instituição sem fins lucrativos voltada para a pesquisa, produção e divulgação de idéias, teorias e conceitos que revelam as vantagens de uma sociedade organizada com base em uma ordem liberal.

Pular para o conteúdo