fbpx

Racionalismo crítico e humanismo

Print Friendly, PDF & Email

Em contraposição ao que define por irracionalismo e por racionalismo excessivo ou pseudo-racionalismo, Karl Popper reivindica o racionalismo crítico, “que reconhece o fato de que a atitude racionalista fundamental se baseia numa decisão irracional, ou numa fé na razão.[1]” Para Popper, a opção pelo racionalismo é uma decisão moral “que afetará profundamente toda a nossa atitude para com os outros homens e para com os problemas da vida social[2]”. Enquanto o irracionalismo (ou o que Popper entende por isso) “dificilmente evitará ficar emaranhado na atitude que se opõe ao igualitarismo[3]”, a atitude humanitária de imparcialidade por meio da qual se dá a exigência política da igualdade perante a lei “acha-se intimamente relacionada com o racionalismo e dificilmente pode ser excluída do credo racionalista[4]”.

O racionalismo é para Popper, antes de tudo, uma atitude: “uma atitude que procura resolver tantos problemas quantos forem possíveis por meio de um apelo à razão[5]”, uma “atitude de disposição a ouvir argumentos críticos e a aprender com a experiência[6]”, ou ainda, uma “atitude de admitir que eu posso estar errado e vós podeis estar certos, e, que por um esforço, poderemos nos aproximar da verdade.[7]” Racionalismo equivale, pois, a modéstia intelectual e honestidade intelectual, valores norteadores aos quais estão intimamente vinculados os princípios de liberdade e tolerância. São esses valores e essa atitude que caracterizam as democracias liberais, definidas e defendidas por Popper como sociedades abertas.

Popper toma Sócrates por primeiro grande modelo de um racionalismo crítico, lendo na famosa máxima “eu sei que nada sei” a expressão sublime da modéstia intelectual que ele defende. Embora louve sobretudo as implicações éticas de sua atitude, não diz uma palavra acerca da doutrina da imortalidade da alma, que lhe subjaz e é indissociável. É na atitude do indivíduo livre e racional, na tradição de debate e crítica na qual floresceu a democracia de Atenas que Popper enxerga a ruptura com a sociedade fechada; é desse modo de pensar racionalista advindo dos gregos que derivaria a civilização ocidental[8].

Evidencia-se, portanto, o vínculo entre racionalidade e ética, ou melhor, entre racionalismo crítico e um ideal humanista. O apelo de Popper à razão é um apelo ao que, para ele, há de melhor no ser humano. Sua fé na razão é uma fé da humanidade; o racionalismo seria o modo adequado de agir no mundo em vista da construção de um mundo melhor, como fica claro em alguns ensaios presentes na sua coletânea intitulada Auf der Suche Nach Einer Besseren Welt.

Popper vê como característica essencial da civilização ocidental o fato de ser uma civilização dedicada à ciência[9]; o que não é nenhuma novidade, pois muitos filósofos já haviam dado conta disso. O que ele faz questão de frisar, porém, é a valoração positiva que atribui ao fato, em um contexto no qual o iluminismo já era tratado como um projeto ultrapassado e a razão era defraudada, no seu entender, ora por um pessimismo irracionalista, ora por um profetismo dogmático.

Na conferência intitulada Em que acredita o Ocidente?, Popper se denomina “Um filósofo completamente fora de moda – como um discípulo desse movimento há muito subjugado e desaparecido a que Kant chamou ‘lluminismo’”[10]. Sua autodeclarada vinculação a Kant dá-se sob variados aspectos, mas se sobressai no que concerne à crença na emancipação pelo conhecimento. Sua defesa da razão, da ilustração e da sociedade aberta passa tanto pelos gregos quanto pelos alemães, passa pelo elogio a Sócrates e pelo ataque a Platão, passa pela reverência a Kant e pela denúncia dos que tentaram perverter sua doutrina:

“[…] Quando me declaro como puro iluminista, então quero significar algo mais. Estou a pensar na esperança de uma autolibertação pelo saber, que inspirou Pestalozzi, e no desejo de despertarmos do nosso sono dogmático, como o exprimiu Kant. E penso ainda num dever de todo o intelectual, que infelizmente a grande maioria dos intelectuais esqueceu, e em particular a partir dos filósofos Fichte, Schelling e Hegel: o dever de não assumirem a pose de profetas[11]“.

Em preleção intitulada Immanuel Kant: o filósofo do iluminismo, Popper comenta a comoção causada pela sua morte. Ao se questionar sobre a espantosa manifestação espontânea que transformou o cortejo fúnebre de Kant em algo jamais visto pelos cidadãos de Königsberg, Popper afirma que a sua fama de grande filósofo e homem íntegro não era o suficiente para explicar o fenômeno. Segundo ele, o acontecimento tinha um significado mais profundo:

Cada dobre de finados por Kant era como que o eco da revolução americana e da revolução francesa, e Kant convertera-se para os seus concidadãos num símbolo dessas ideias, ressonância das ideias dos anos de 1776 e 1789, e eles acorreram ao seu funeral para lhe testemunharem o seu reconhecimento como mestre e proclamador dos direitos do homem, da igualdade perante a lei, do cosmopolitismo, da autolibertação através do saber e – quiçá mais importante ainda – da paz eterna sobre a Terra.

Ao dissertar sobre a gênese das ideias representadas por Kant, Popper traça um ligeiro panorama das ideias iluministas, base das ideias liberais, remetendo-as a um livro publicado em 1732, as Cartas de Londres sobre os Ingleses, de Voltaire, no qual se expõe o confronto entre o regime constitucional inglês e as monarquias absolutistas, entre a tolerância religiosa dos ingleses e a intolerância da igreja romana, entre o sistema de Newton, o empirismo de Locke e o racionalismo de Descartes[12].

Popper destaca que praticamente todos os movimentos filosóficos e políticos modernos são reconduzíveis ao Éclaircissement ou Aufklarung, seja por decorrência imediata, seja por reação romântica contra ele, como foi o caso do idealismo alemão, cujos expoentes (Fichte, Schellin e Hegel) são reiteradamente criticados por Popper[13], sob influxo das ideias de Schopenhauer (um confesso irracionalista paradoxalmente reverenciado por ele e que, assim como Popper, também se autodenomina um herdeiro de Kant). Mais do que a revolução copernicana promovida por Kant na epistemologia, causa admiração a Popper a viragem por ele promovida no domínio da ética por meio da sua teoria da autonomia e da maioridade intelectual, clara e belamente exposta no opúsculo “Was ist Aufklärung?”:

Kant transforma o Homem no legislador da moral, de modo muito semelhante àquele em que o converte no legislador da natureza; e, mediante esta viragem, atribui-lhe a mesma posição central no universo moral como antes no universo físico. Kant humaniza a ética como anteriormente humanizara a cosmologia. O espírito da ética kantiana poderá resumir-se talvez nestas palavras: ousa ser livre e respeita e defende a liberdade de todos os outros. Foi sobre a base desta ética que Kant construiu a sua importante teoria política e a sua doutrina de direito internacional. Ele anseia por uma sociedade das Nações por um “federalismo dos Estados livres” com o propósito de instituir e de manter a paz eterna sobre a terra[14].

Da mesma forma que desconsidera a dimensão espiritual da missão de Sócrates, Popper subtrai da ética kantiana o que nela há de religioso. Para Popper, Kant dera à ideia socrática de homem livre “um novo sentido tanto na esfera do saber como na da ética. E completou-a com a ideia de uma sociedade de homens livres – uma sociedade de todos os homens[15]”.

Popper enaltece os princípios éticos kantianos, notadamente o respeito à dignidade da pessoa humana, intimamente associado à regra de ouro (“não faças a outrem o que não queres que façam a ti”), mas não os remete, por sua vez, ao cristianismo. A sociedade aberta de Popper é a sociedade na qual tem êxito o projeto iluminista da autoemancipação e da emancipação dos povos; a sociedade aberta é uma conquista da razão. Embora o cristianismo lhe seja de certa forma compatível, Popper não considera o seu papel essencial.

Na já referida preleção Em que acredita o ocidente, Popper destaca como “um símbolo da vitalidade superior do Ocidente” o fato de não termos uma crença, uma religião, mas várias. Segundo ele, “a unificação do ocidente assente numa ideia, numa crença, numa religião, representaria o fim do ocidente, a nossa capitulação, a nossa submissão incondicional a uma ideia totalitária[16]”. O que ele parece não compreender ou deliberadamente desconsiderar é que o Ocidente já foi unificado sob as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade que ele defende, justamente sob o influxo do cristianismo. O humanismo grego foi assimilado pelo humanismo cristão, o racionalismo grego é indissociável da filosofia cristã.

A exposição do seu otimismo racionalista é uma contradictio in adjecto. Afirma Popper: “É a fé no próximo e o respeito ao próximo que faz do nosso tempo o melhor de todos os tempos. Fé essa cuja autenticidade é comprovada pelo espírito de sacrifício[17]”. Mas, de onde vem o espírito de sacrifício? A fé na razão é capaz de induzir a tanto? E que linguagem é essa? Não aponta para uma emoção tipicamente cristã? Quem é o teu próximo? Perguntaria Jesus, após narrar a parábola do bom samaritano.

A ética racionalista fala no outro, na alteridade, não no próximo.  Popper continua: “acreditamos na liberdade porque acreditamos nos nossos semelhantes. Abolimos a escravatura[18]”. Ora, a pólis grega que substituiu os genos, as fatrias e as tribos, a democracia ateniense que substituiu as tiranias, o racionalismo grego que substituiu o pensamento mítico e que, segundo Popper, promoveu a grande ruptura responsável pela abertura da sociedade não aboliu a escravidão. Por que esse passo não foi dado pelos gregos? O que faltava? Faltava o cristianismo.

Popper trouxe para o seu universo acadêmico o ceticismo mitigado dos britânicos, que exigem, antes de tudo, o bom senso. Essa postura, cuja origem remete ao empirismo, aliada à sua vertente intelectualista de viés epistemológico, promove uma interessante reestruturação nos debates. Seu ponto de vista é peculiar porque visa a uma aliança entre o fideísmo e o racionalismo sem que, para isso, se valha da fé religiosa. A fé proclamada por Popper é a fé na razão. Não naquela razão dogmática, capaz de levar ao terror, à guilhotina ou capaz de justificar o poder absoluto do Estado sobre o cidadão, mas a razão mitigada pelo senso de falibilidade, pelo juízo moral que prevê o risco da exacerbação de suas pretensões. O que Popper propõe é um intelectualismo realista capaz de adaptar-se à ciência, sendo esta ciência pensada não apenas como técnica, mas como uma sabedoria bem disposta, utilizada tanto no que se refere às pesquisas quanto no que se refere às relações humanas.

Por prever uma catástrofe ante um uso possível da técnica, Popper não acusa a razão como o fizeram muitos de seus contemporâneos, mas revisa a razão em suas potencialidades e em seus desvios, reabilitando-a heroicamente, sem perceber, porém, que o móbil que o impulsionava a levar a razão até o seu aspecto mais lúcido a fim de poder fazer frente às adversidades bélicas era justamente o seu espírito indômito e honesto, era o seu vigor moral e sua energia advinda daquela outra fonte que ele não quis admitir.

Referência bibliográfica

POPPER, K. A sociedade aberta e seus inimigos. Volume 2. São Paulo: EDUSP, 1974

______. Em busca de um mundo melhor. Editorial Fragmentos, Lisboa: 2006

[1] POPPER, K. A sociedade aberta e seus inimigos. Volume 2. SP: EDUSP, 1974, p.239

[2] Ibid. p. 239

[3] Ibid.  p.242

[4] Ibid.  p.242

[5] Ibid.  p.232

[6] Ibid.  p.232

[7] Ibid.  p.232

[8]“A nossa civilização ocidental, historicamente considerada, é em grande medida o
produto de um modo de pensar racionalista herdado dos gregos.” […] A civilização ocidental poderá caracterizar-se como sendo a única em que a tradição racionalista desempenha um papel predominante.” (POPPER, K.  Em busca de um mundo melhor. Editorial Fragmentos, Lisboa: 2006)

[9] “Muito embora estas ideias sejam hoje em dia tratadas com desdém por quase todos os intelectuais, o racionalismo, pelo menos, é uma ideia sem a qual o Ocidente não poderia existir de modo algum. Porque nada é tão característico da nossa civilização ocidental como o facto de ser uma civilização dedicada à ciência. É a única civilização que gerou uma ciência da natureza e na qual essa ciência desempenha um papel decisivo. Essa ciência da natureza é, porém, o produto imediato do racionalismo: ela é o produto do racionalismo da filosofia clássica grega dos pré-socráticos.” (Idem)

[10] Idem

[11] POPPER, K.  Em busca de um mundo melhor

[12] Idem

[13]‘Kant acreditava no Iluminismo. Foi o seu derradeiro e grande defensor. Sei perfeitamente
que não é esta a opinião hoje generalizada. Enquanto eu vejo em Kant o último defensor do Iluminismo, a maior parte das vezes ele foi encarado como o fundador da escola que veio destruir o Iluminismo – a escola romântica do “Idealismo alemão”, a escola de Fichte, de Schelling e de Hegel. Afirmo que estas duas concepções são incompatíveis.” (POPPER, K. Em busca de um mundo melhor)

[14] POPPER, K.  Em busca de um mundo melhor

[15] Idem

[16] Idem

[17] Idem

[18] Idem

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte é Doutora em Filosofia, vice-presidente do Instituto Liberal do Nordeste e autora do livro "Um olhar liberal conservador sobre os dias atuais".

Pular para o conteúdo