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O avô do mal do século

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rousseau3Do alto de nossa insignificância, consideramos válido reproduzir um sábio conselho: nunca rejeitar por inteiro, à primeira vista, o pacote oferecido por um autor. Você pode encontrar material de qualidade, mesmo nas fontes menos óbvias. Até o pior dos tiranos pode oferecer uma boa “tirada”, ao menos para que possamos compreender melhor o tipo de mal que ele representa. Da mesma forma, aliás, aquele pensador que você tanto admira pode perfeitamente expressar algumas posições que você, agora ou para sempre, rejeite. Também não é imperioso – e geralmente, não é saudável – aceitar, por inteiro, o pacote.

Por que dizemos tudo isso? Lemos recentemente uma pequena obra do filósofo iluminista suíço Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Apesar de apreciarmos as espirituosas declarações do grande Edmund Burke a seu respeito, ao taxá-lo de “filósofo da vaidade”, bem como ao acusá-lo de ser alguém que ama a humanidade, mas não ao seu semelhante, não avançaríamos jamais, precipitadamente, em dizer que não há nada de valor em sua produção. Pedagogos renomados, como Pestalozzi, estão de algum modo vinculados aos conceitos exarados em seu Emílio – e não seremos nós a legislar em matéria de Pedagogia ou mesmo, sistematicamente, em matéria de Filosofia. Isso apesar de, em sua vida particular, ele não ter dispensado um tratamento exatamente maravilhoso aos próprios filhos… Porém, o diminuto Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens é, seguramente e sob vários aspectos, uma porta aberta a uma vasta série de temeridades que se introduziram posteriormente nos discursos sociais e políticos.

Certa vez, um amigo nos interpelou por manifestarmos nosso desagrado para com diversos elementos da Revolução Francesa. Como um defensor do capitalismo, que tem afinidades com a democracia liberal, se posicionaria contrariamente a uma rebelião visando derrubar o Antigo Regime e a monarquia absoluta? Esse questionamento, simplório e ingênuo, mereceria muitos desdobramentos, fazendo referência à centralização de poder dos revolucionários, às suas medidas intervencionistas e seu desfecho ditatorial. Mas o pequeno livro de Rousseau e sua influência sobre, principalmente, o jacobinismo – tônica da fase mais assassina da revolução -, são motivos suficientes para enxergarmos naqueles episódios um ensaio dos grandes males do século XX e, no filósofo de Genebra, uma espécie de “avô” da esquerda e das concepções socialistas de democracia radical e revolução popular – ainda tão presentes em sua retórica, e de uma ingenuidade criminosa.

Rousseau já principia a segunda parte de seu texto a dizer: “o primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: ‘Isto é meu’ e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores não teriam sido poupados ao gênero humano por aquele que, arrancando as estacas ou tapando o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Não escutem esse impostor! Vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém!” Quantos grupos nossos conhecidos poderiam bradar essas palavras, da pena do ilustre sábio do Iluminismo francês? Socialistas e marxistas, dos mais diversos matizes; alguns hippies, rebeldes da contracultura, ambientalistas ensandecidos e quejandos. Todos os arautos do atraso e do irrazoável, que bombardearam a “insensibilidade cruel dos capitalistas malvados destruidores da natureza”. O que Rousseau põe em xeque, e todos esses se deleitam em ecoar, é a ideia de propriedade privada – esse mesmo pilar fundamental, esse mesmo alicerce do mínimo possível de segurança e crescimento. Com brilhantismo, Von Mises demonstra que a propriedade privada faz com que “a fatia do produto social de cada membro da sociedade seja dependente do produto economicamente imputado a ele, isto é, dependente de seu trabalho e de sua propriedade”, e a consequência disso é que “a matança de seres humanos em decorrência da luta pela sobrevivência, como ocorre nos reinos animal e vegetal, é substituída por uma redução na taxa de natalidade em decorrência das forças sociais”. A propriedade privada é, portanto, um recurso de equilíbrio e de pacificação da sociedade, condição para o aumento na capacidade de produção – o que, ao fim das contas, a despeito das bravatas da inveja, é o melhor para todos. Socialistas, sofistas contemporâneos, os seus delírios não saciarão a fome do povo! O respeito à propriedade privada, à liberdade de iniciativa, ao capitalismo – sistema que se assenta sobre essa propriedade -, isto sim tende a seguir provocando, como comprovadamente produziu, uma melhoria nas condições sociais ao redor do planeta.

A Rousseau não foi dado prever que os maiores morticínios seriam levados a efeito, na era que se seguiu, por aqueles que justamente procuraram implantar a relativização deste alicerce. Os maiores genocidas foram aqueles que criaram obstáculos à delimitação individual de porte de bens e à liberdade de negociá-los.

Ele idealizava o “bom selvagem”, o homem no hipotético “estado de natureza”; sancionava que as instituições sociais é que engendraram as desigualdades, que não existiriam no imaginário “estado original do homem”. Via, nas novas requisições e necessidades que eclodiram com o desenvolvimento da civilização, uma nova forma de escravidão, da qual o homem estaria liberto se gozasse mais amplamente dos seus “direitos naturais” – estabelecidos, também eles, em abstrato, concebidos absolutamente sem se relacionarem com a concretude do mundo.

Talvez liberais e conservadores, em maior ou menor medida, se distingam especialmente da esquerda, filhote das teorias sociais de Rousseau, na sua fuga de perspectivas etéreas e imponderáveis, e seu apreço pelos dados e pelas condições impostas pelo mundo real. Rousseau e seus herdeiros ideológicos ostentam o emblema de uma política de sonhos que, na tentativa de sua aplicação, se converte em pesadelo. Lamentavelmente, os bônus ansiados permanecem na dimensão mais onírica, enquanto as cruezas do pesadelo são bem reais.

Recordamos um episódio protagonizado pela hoje presidenciável Marina Silva, que se notabilizou por sua apologia do “ambientalismo” – constantemente avesso aos desdobramentos salutares do progresso técnico e científico e utopicamente enamorado de uma estética rousseauniana. Em discurso na época em que era senadora, disse que precisávamos de uma política mais “filosófica”, em vez de tão preocupada com a frieza dos números da economia. Ora, estar preocupada com a “frieza dos números” significa tão-somente estar com os pés no chão; significa pensar em resultados, em eficiência, naquilo que há no cenário real que possa melhorar a situação das pessoas, que possibilite a elas a capacidade de orientar suas próprias vidas e alcançar o mínimo de dignidade.

O mal do século que passou foi o enorme prestígio conferido a essa política de sonhos que foi gestada no ideário do pensador suíço. É hora de aqueles dedicados a pensar sobre o mundo atentarem para os inconvenientes dessa herança com o devido cuidado. Se não entendermos que precisamos conciliar, sim – por que não? – certa dose de paixão e princípios, com o honesto reconhecimento dos limites impostos pelo mundo, fatalmente nos estaremos condenando a novos desastres.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

2 comentários em “O avô do mal do século

  • Avatar
    06/10/2014 em 7:20 pm
    Permalink

    O futuro do liberalismo está na nova geração que está brotando e surpreende como neste texto.

Fechado para comentários.

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