A liberdade de falar em nome do povo
Se há um princípio que sustenta a República é o de que os representantes eleitos pelo povo podem falar livremente em seu nome. Não é um privilégio pessoal, mas uma garantia institucional. O artigo 53 da Constituição Federal não existe para proteger o deputado. Ele protege o eleitor. E por isso deve ser defendido com vigor — sobretudo quando o que é dito incomoda os poderosos de turno.
É no parlamento onde essa representação popular se materializa. A origem no verbo latim parlare significa precisamente “falar”. O parlamento é, portanto, essencialmente, um lugar dos diálogos e dos debates de ideias onde as vozes dos cidadãos são (ou deveriam ser) ouvidas através de seus representantes.
Além de ser o espaço para a discussão das leis e das políticas públicas, o parlamento também desempenha um papel crucial na fiscalização. Essa função de controle é vital para a manutenção da democracia e para a proteção dos direitos dos cidadãos. A liberdade de expressão no parlamento é uma condição essencial para a democracia e para a defesa dos interesses do povo.
Na última semana, o deputado federal Marcel van Hattem fez duras críticas ao presidente da República, ao ministro Alexandre de Moraes e ao Supremo Tribunal Federal. Chamou Lula e Moraes de “cruéis e covardes” e classificou o STF como “organização mafiosa” que estaria “chantageando a classe política”. Foram palavras duras. Palavras que podem ser objeto de reprovação moral, política ou retórica. Mas não de censura penal.
Não é necessário concordar com o tom ou o conteúdo para reconhecer o direito de dizê-las. A imunidade parlamentar é cláusula pétrea da democracia. O artigo 53 da Constituição é cristalino: “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.” A linguagem é absoluta: quaisquer. Não há ressalvas, não há exceções. Não cabe ao Judiciário filtrar o que pode ou não ser dito da tribuna. Isso não seria defesa da Constituição — seria usurpação dela.
Essa compreensão foi firmada pelo STF no INQ 1958, rel. Min. Ayres Britto, quando se afirmou que:
“Para os pronunciamentos feitos no interior das Casas Legislativas não cabe indagar sobre o conteúdo das ofensas ou a conexão com o mandato, dado que acobertadas com o manto da inviolabilidade. Em tal seara, caberá à própria Casa a que pertencer coibir o parlamentar prerrogativa.”
O artigo 53 da Constituição Federal brasileira, que assegura garantias aos parlamentares, como a inviolabilidade por opiniões, palavras e votos, está protegido como cláusula pétrea pelo artigo 60, § 4º, inciso IV, que veda emendas destinadas a abolir direitos e garantias individuais. A Emenda Constitucional nº 35/2001 alterou o artigo 53, ajustando regras sobre prisão e processos judiciais, mas não acionou o artigo 60, pois não aboliu o direito em sua essência. Em vez disso, refinou suas condições de aplicação, preservando o núcleo fundamental da imunidade parlamentar e equilibrando-o com a accountability no Estado democrático de direito. Assim, o artigo 53 segue como pilar intocável, adaptado sem perder sua proteção constitucional.
Essa proteção se ancora ainda em fundamentos mais amplos. A liberdade de expressão está prevista nos incisos IV, IX e XIV do artigo 5º da Constituição. São dispositivos que asseguram a base mesma da democracia:
● Art. 5º, IV: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”;
● Art. 5º, IX: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”;
● Art. 5º, XIV: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.
Tais garantias são reforçadas por precedentes firmes do STF. Na ADI 4451, proposta pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, impugnando os incisos II e III do art. 45 da Lei 9.504/1997, o próprio Ministro Alexandre de Morais declarou que:
“4. Tanto a liberdade de expressão quanto a participação política em uma Democracia representativa somente se fortalecem em um ambiente de total visibilidade e possibilidade de exposição crítica das mais variadas opiniões sobre os governantes.
5. O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional.”
O mesmo raciocínio vale, com ainda mais força, para parlamentares no exercício do mandato. A imunidade material garante a independência da representação política — e sua relativização por meio de investigações ou sanções judiciais representa uma grave subversão do pacto republicano. Contudo, uma leitura mais recente do STF, como na Ação Penal 937/RJ e no ARE 1422919/DF, tem condicionado a imunidade à conexão das manifestações com o exercício do mandato, sugerindo que críticas como as de Marcel van Hattem ao STF poderiam ficar desprotegidas se consideradas alheias às funções legislativas. Tal interpretação, porém, contraria o texto claro do artigo 53, que não impõe limites à inviolabilidade por “quaisquer” palavras, e fragiliza sua natureza pétrea. Definir o que é “pertinente” ao mandato é um exercício subjetivo que transfere ao Judiciário um poder de censura vedado pela Constituição, comprometendo a soberania popular que a imunidade protege.
Uma das consequências mais perniciosas dessa atual interpretação é o casuísmo existente nas decisões proferidos a partir da politização do STF, gerando um clima de insegurança jurídica e o ambiente permissivo para investigações nitidamente políticas.
No plano internacional, o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos — da qual o Brasil é signatário — reforça esse entendimento. Lá se lê que “toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão” e que esse direito compreende “a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza”. A jurisprudência da Corte Interamericana é clara: figuras públicas, por ocuparem posição de destaque, devem estar sujeitas a um maior grau de escrutínio e crítica.
A história nos adverte. Foi durante os regimes de exceção — Vargas e o período militar — que a imunidade parlamentar foi violada. Agora, mais uma vez, vozes se levantam no sentido de relativizar a proteção constitucional sob o pretexto de que as falas foram ofensivas, antidemocráticas ou desrespeitosas. Ora, o teste da liberdade de expressão nunca se faz com palavras agradáveis. O verdadeiro compromisso com a Constituição se revela quando se resiste à tentação de punir aquilo com que se discorda.
É preciso recordar que não cabe ao Judiciário definir o tom da política. A crítica à Corte, mesmo que injusta, faz parte do jogo democrático. A reação institucional não pode ser a censura. Que se responda com argumentos, não com inquéritos. Que se corrija com votos, não com retaliações. Que se preserve o dissenso, pois ele é o oxigênio da liberdade.
Até bem pouco tempo atrás era assim. Há inúmeros registros de falas proferidas contra posicionamentos ou condutas de agentes públicos e, até mesmo contra integrantes da Suprema Corte, que nunca mereceram qualquer tipo de reprimenda, exatamente porque se dava valor ao texto constitucional. A atual escalada contra a liberdade, com o falso mote de defesa da democracia, é na verdade uma indevida tentativa de intimidação de quem se coloca, legitimamente, numa posição de oposição.
A imunidade parlamentar não é uma permissão para insultar. É uma salvaguarda para representar. É a armadura da independência legislativa. O deputado que abusa da palavra será julgado — não por juízes togados, mas pelo povo, nas próximas eleições. E, se necessário, também poderá ser responsabilizado politicamente pelo próprio Congresso Nacional, nos termos do seu regimento interno.
Mas abrir caminho para que o Judiciário criminalize falas proferidas da tribuna parlamentar é romper com a Constituição. Se abrirmos mão dessa garantia hoje, por antipatia a quem fala, amanhã poderemos estar calados diante de quem cala.
A Constituição não existe para proteger o poder contra o povo, mas para proteger o povo contra o poder. Como ensina Randy Barnett, primeiro vêm os direitos — depois, o governo. A legitimidade do poder público está condicionada ao dever de proteger liberdades preexistentes e não de reprimi-las. A Constituição é a lei que governa aqueles que nos governam. Quando juízes se colocam acima dela para punir discursos parlamentares, rompem o pacto constitucional e subvertem a ordem republicana.
Curiosamente, o Professor Jonathan Turley, autor de The Indispensable Right: Free Speech in an Age of Rage, prestou um depoimento ao Congresso Americano em 25 de março de 2025, que dialoga diretamente com a situação brasileira exposta neste artigo. Turley descreve um “Complexo Industrial de Censura” nos EUA, onde o governo Biden, aliado a empresas de mídia social, censurou até fatos verdadeiros — chamados, pelo Professor, de “malinformation” — por desafiarem narrativas oficiais, como na pandemia.
Ele alerta, inclusive, que esse controle, justificado como combate à desinformação, gera um “apetite insaciável” por mais censura, um padrão que remete às perseguições por sedição colonial, onde a verdade não era defesa. No Brasil, a tentativa de punir Marcel van Hattem por classificar o STF como “organização mafiosa” espelha essa dinâmica: palavras protegidas pelo artigo 53 tornam-se alvos judiciais por incomodarem o poder, uma vulnerabilidade agravada por interpretações recentes do STF, como na Ação Penal 937/RJ, que restringem a imunidade a um nexo funcional subjetivo, pondo em risco a liberdade de expressão do artigo 5º e o mandato que representa o povo.
O Professor da George Washington Law Schooltambém denuncia a União Europeia, que, via Digital Services Act, pressiona nações soberanas a adotarem padrões externos de silêncio, um ataque à autonomia que ecoa no Brasil quando o Judiciário tenta calar van Hattem, ameaçando a independência legislativa garantida pela Constituição. Nos EUA, 73% dos cidadãos rejeitam a censura politizada e 63% exigem investigações, um apego à liberdade que, no Brasil, se reflete na imunidade parlamentar como cláusula pétrea.
Para ele, “nenhum sistema de censura jamais matou uma ideia”, e a democracia exige tolerar o dissenso, mesmo o mais cortante. Relativizar o artigo 53 contra van Hattem seria ceder à tendência global que ele condena, permitindo que o Judiciário, em vez de proteger o povo contra o poder, rompa o pacto republicano ao silenciar seus eleitos — um alerta que o Brasil não pode ignorar.
Defender o artigo 53, portanto, não é defender o deputado Marcel van Hattem. É defender a Constituição — mesmo, e sobretudo, quando ela protege aquilo que não gostaríamos de ouvir.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum
*Antonio Carlos Fonseca – Advogado, Sócio do Miranda Fonseca Advocacia, membro da Lexum.