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A ilusão do liberalismo na República Velha

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Algumas narrativas com certa respeitabilidade difundem a tese de que a República Velha, notadamente no período consagrado com o rótulo de República Oligárquica (1894-1930), teria sido o suprassumo do liberalismo no Brasil. Parece relevante desfazer alguns mitos e debruçar-se sobre esse período convulsionado da história brasileira, que muitos têm a ilusão de ter sido tranquilo e eivado de calmaria, quando em verdade foi de muito mais ebulição e conflitos do que se imagina.

É sabido que a República desponta através de um golpe, com decisivo componente militar. Para além dos positivistas, com sua teoria do autoritarismo científico suplantando o Parlamento e o debate político nas estruturas representativas, esse componente militar também tinha radicais nacionalistas, defensores demagogos da democracia direta, grupos que se intitulavam “jacobinos” – tais como os lunáticos da Revolução Francesa. A gravidade disso fica patente com uma citação de Floriano Peixoto, que chegou a ser nosso segundo presidente, reproduzida por Oliveira Viana em seu O Ocaso do Império, sustentando que a podridão que grassava no país – uma impressão experimentada pelo seu descontentamento com a chamada Questão Militar – precisava de uma “ditadura militar” para ser expurgada.

A República da Espada, compreendendo os governos de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, é marcada por investidas contra o Congresso e repressões violentas. Os principais atores sociais do golpe republicano se digladiaram no interesse de verem sua concepção prevalecer, conflito que esteve no auge até a ascensão do primeiro civil, Prudente de Morais – que teve a virtude de, resistindo até a uma tentativa de atentado, saber conduzir o mandato a ponto de passar o posto a outro civil.

É com Campos Sales, entretanto, que se consolida o sistema da República Oligárquica. Conhecendo-lhe um pouco mais os pensamentos, podemos compreender melhor também todo o sistema da fase predominante da República Velha. Triunfam, a partir de Morais e dele próprio, os republicanos chamados “liberais” ou “constitucionalistas”, cuja ênfase retórica, a do chamado “bacharelismo liberal”, era na existência do sistema representativo e a divisão institucional de poderes, suplantando as “arcaicas” esferas institucionais e simbólicas do Império e do Poder Moderador de D. Pedro II, um “museu de atraso e absolutismo”, como eles certamente o enxergavam. O Brasil precisava reproduzir o modelo dos Estados Unidos, romper um tanto mais com as antigas instituições europeias, estabelecer o presidencialismo e o federalismo completo.

A realidade por debaixo dessa ficção era um sistema político clânico, em que famílias com poderio regionalista, as oligarquias e “coronéis” locais, controlavam os rumos políticos e arquitetavam as tramas do poder. Campos Sales é um personagem decisivo nesse contexto. Defensor contumaz da responsabilidade fiscal, isto é, da contenção dos gastos públicos, tendo herdado os descaminhos da Crise do Encilhamento, Sales – e seu ministro, Joaquim Murtinho – queriam levar a efeito sua política de saneamento das finanças, a despeito da sua impopularidade. Foi uma rara figura política brasileira a encarar o alto preço de uma tal orientação para conseguir implementar esse programa, coragem que vale a pena reconhecer. Ele conseguiu. Contudo, o preço a pagar para tal era encontrar uma maneira de substituir as intervenções do Poder Moderador de D. Pedro II e a anomia simbólica do país, desprovido de sua Coroa, a fim de que a insatisfação não provocasse a revolta e o fracionamento, bem como não colocasse o poder de volta nas mãos militares.

Eis que Sales, para garantir que conseguiria apoio político para seu intento, consolida o sistema da “política dos governadores” e a Comissão Verificadora, apetrechos que duram por toda a República Oligárquica e demonstram a ilusão liberal e federalista da sua realidade. O presidente da República garante a proteção aos interesses das elites que governam as regiões, estabelecendo inclusive um órgão responsável por podar candidaturas oposicionistas, mesmo quando elas “milagrosamente” conseguem vencer; o voto de cabresto grassa e o poder dessas oligarquias torna o resultado de uma eleição perfeitamente previsível antes dos votos serem calculados. Os eleitores, em um país cuja população, embora reduzida comparativamente, já chegava à casa do milhão, não ultrapassavam o número dos milhares. Tal arranjo, que fazia das eleições, com resultados acachapantes, uma absoluta fantasia, fazia com que, sem para isso os candidatos precisarem efetivamente ser desonestos, o Brasil fosse um autêntico clube de fazendeiros e bacharéis.

O “federalismo” tão decantado em prosa e verso pelos republicanos, portanto, era profundamente dependente do poder central e da fraude. Um sem-número de processos que incomodavam as oligarquias eram entravados no Poder Judiciário, e a oposição estava automaticamente fadada ao fracasso. A “República” como um conceito digno de participação na “coisa pública” nunca foi efetivamente implantada.

Provavelmente Campos Sales não tinha outros recursos de que lançar mão; cumpriu seu programa e deixou as finanças saneadas para o sucessor, Rodrigues Alves, fazer um prestigiado governo, nomeando notáveis e realizando importantes obras. Era Sales um “herói” ou um “grande homem”? Foi um realizador, do ponto de vista de seu programa econômico, mas tratar por herói alguém que foi o típico personagem civil do golpe que destronou o imperador oferece certas dificuldades morais.

O maior mérito de Rodrigues Alves – tal como Sales, egresso da política imperial, mas ao contrário deste, uma figura sem ligações passadas com o Partido Republicano – foi se recusar a aceitar a Convenção de Taubaté, um encontro de governadores (então “presidentes”) de estados, representando os cafeicultores, com o propósito de convencer o governo federal a proteger a sua produção, comprando os excedentes e valorizando o café.  Logo que, porém, Afonso Pena assume, sendo sucedido por Nilo Peçanha – que, como governador do Rio, participou da Convenção -, o poder federal se curva a essa vontade dos cafeicultores.

O que se segue é um ciclo de aumento nos gastos, contrariando a diretriz de Salles, e de proteção aos interesses do café e, minoritariamente, a outros setores do mercado. Tal marasmo protecionista se faz acompanhar de todo tipo de conflitos sociais – a República Velha como um todo contou com a Greve Geral de 1917, a Guerra de Canudos, a Revolta da Armada, a Revolta da Chibata, a “Revolta da Vacina”, a Guerra do Contestado, as Revoltas Tenentistas, a Coluna Prestes e as duas Revoluções Federalistas do Rio Grande do Sul, estas duas provocadas pelo conflito com a doutrina centralizadora do Castilhismo, teoria autoritária que influenciaria a determinação dos rumos do país com a ascensão nacional da elite do estado através de Getúlio Vargas.

A maioria desses conflitos se relacionava de algum modo às fragilidades e à crescente insatisfação social com o sistema fraudulento e instável, bem como a uma elevada alienação das camadas populares do processo decisório. A ideia de que a “Política dos Governadores”, casada com a “Política do Café-com-Leite” – consequência da primeira, designando o fato de que as oligarquias paulista e mineira eram as mais poderosas no cenário -, permaneceram incólumes e tranquilas durante o período é um engodo. Uma das figuras mais importantes da época, o senador Pinheiro Machado, usando de sua influência, conseguiu eleger o militar Hermes da Fonseca, depois de Nilo Peçanha, que aplicou então intervenções militares para controlar as oligarquias com que estava incompatibilizado, na chamada “Política das Salvações” – que, de “política”, tinha muito pouco.

Houve necessidade de vigência de Estado de sítio em quase todos os demais governos. Depois de Wenceslau Brás, que atravessa a Primeira Guerra Mundial, e Epitácio Pessoa, que governa o Brasil no centenário da Independência – e encara a Revolta dos 18 do Forte -, Artur Bernardes assume para um governo quase completamente autoritário, com Estado de sítio constante. O canto do cisne seria Washington Luís, quando este aponta Júlio Prestes como sucessor, contrariando o acordo estabelecido entre Minas-São Paulo e provocando a insurreição de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, a Revolução de 1930, pondo fim à República Velha.

Trocou-se a “autoridade dos clãs e da fraude” pelo autoritarismo centralizador e tirânico de Getúlio Vargas, que usou a plataforma do grupo que o apoiou – oligarquias descontentes, tenentistas e outros agentes políticos – para, depois de estabelecer algumas reformas como o voto secreto e o voto feminino, alçar-se a ditador completo. Nem por isso, como se vê, se pode dizer que o que o antecedeu era bom.

Nomes como Rui Barbosa (“anti-candidato” na campanha civilista, denunciando os males do sistema), Barão do Rio Branco (grande diplomata, egresso da monarquia), Gaspar Silveira Martins (gaúcho valente, também egresso da monarquia, defensor da restauração e descentralização, adversário do autoritarismo de Júlio de Castilhos), Assis Brasil e Raul Pilla (fundadores do Partido Libertador do Sul e também inimigos do Castilhismo) defenderam teses importantes e trouxeram mais brilho à vida política e institucional da época, em geral pela influência da tradição de pensar político do Império. Porém, a República Velha, como um todo, foi um período que, numa definição precisa, não “se encontrou”. Mais um ciclo de oportunidades perdidas, como tantos outros que tivemos. Se a dimensão do Estado e dos ministérios era menor, nem por isso sua dinâmica era recomendável e sua solidez institucional, respeitável.

O professor Antônio Paim, em seu História do liberalismo no Brasil, destaca que a elite imperial absorveu do pensamento do português Silvestre Pinheiro Ferreira um componente relevante que a elite republicana não acolheu com tanta importância: a representação por interesse, isto é, a organização do eleitorado em torno de interesses e respectivos partidos políticos. De fato, a República Velha se organizava amplamente em partidos republicanos regionais, em que a diferença ideológica ou de concepções de mundo carecia de peso, sendo muito mais plataformas de expressão das oligarquias que outra coisa qualquer.

Tal “displicência” resistiu por 40 anos às rachaduras impostas pelas eventuais perturbações no arranjo de Campos Sales, mas pouco pôde fazer diante da avalanche centralizadora e da sede por “ordem e justiça” dos anos 30. Uma lição que fica para que nós, hoje, procuremos fazer diferente e encarar com responsabilidade e espírito cívico as nossas deficiências, sob pena de sermos, quem sabe, engolidos por falsas alternativas, engodos com aparência de novos, mais uma vez.

 

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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