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A presunçosa seita dos “liberais do bem”

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Atuando no campo das ideias e militando – sem receio algum da palavra, já que não a entendo aqui como anulação do espírito crítico – no Brasil contemporâneo, a melhor contribuição que podemos prestar é a da preservação no debate público, em seu próprio campo teórico-prático, do pensamento liberal. No período conturbado que vivemos, em que os efeitos de uma pandemia e da clivagem política que se construiu a partir do lulopetismo provocam fortes pressões contraditórias sobre o liberalismo brasileiro, convenci-me de que esta é, ao menos, a tarefa mais premente em que sou capaz de colaborar.

Preservar o liberalismo em seu campo significa, a um só tempo, resguardá-lo do perigo das transitoriedades políticas, de se ver intrinsecamente atrelado a articulações de forças em vias de afundar; reconhecer a sua pluralidade, não admitindo reduções do seu significado amplo como corrente de pensamento da modernidade que abarca diferentes tendências e subdivisões; e reconhecer, igualmente, que esta última verdade não implica que liberalismo seja qualquer coisa e, consequentemente, que qualquer coisa se possa proclamar liberal sem resistência.

Essa é, hoje, a maior responsabilidade dos liberais. Nos últimos anos, quando uma nova etapa na popularização de teses e referências do liberalismo e do conservadorismo no Brasil, que convencionamos de forma simplificada designar por “nova direita”, despontou em reação ao período dos governos do PT, certos representantes das correntes mais radicais do espectro do pensamento individualista se arrogaram o monopólio do significado de “liberalismo”.

Apresso-me em dizer, não quero com esse apontamento afastar os anarquistas de mercado e os objetivistas das ações e organizações do amplo “movimento” liberal; suas contribuições têm sido fundamentais e muito bem-vindas ao debate. Porém, quando alguns dos adeptos dessas correntes proclamam que qualquer linha de pensamento menos “privatista” do que as deles não pertence ao campo do liberalismo, isto é, que qualquer um que não queira o fim total do Estado ou a sua absoluta redução apenas à segurança e à justiça não é verdadeiramente um liberal, estão proclamando uma falsidade histórico-conceitual e temos que nos manifestar contrariamente. Por exemplo, chega a ser tragicômico que um adepto das ideias de Hans Hermann-Hoppe, um autor anarquista que expõe abertamente sua visão libertária como uma superação do liberalismo clássico, pretenda pregar o Evangelho do verdadeiro liberalismo aos liberais.

No entanto, com a recente divisão de movimentos e organizações liberais e os complexos e confusos realinhamentos de peças no tabuleiro da política brasileira diante do governo Jair Bolsonaro, vejo surgir, no campo da discussão teórica – e a discussão teórica, enfatizo, termina por influenciar, ao menos no longo prazo, de uma maneira ou de outra, os rumos políticos -, um problema oposto e que, considerando a repercussão que vem conquistando nas academias e até em formadores de opinião, parece já ser maior.

Está ganhando força uma estranha seita, uma “igreja dos liberais do bem”, tomada por uma presunção bastante injustificada e igualmente reducionista, que vem enfatizando convenções e opções vocabulares estranhas para se apresentar como detentora do sentido do liberalismo – mas na direção contrária, isto é, para eles, o liberalismo verdadeiramente liberal (com o perdão da redundância) seria a sua vertente que mais admite a presença do Estado, isto é, o liberalismo social.

Ora, ainda que não de forma predominante, o chamado “liberalismo social” marca presença no Instituto Liberal desde os anos 80 e 90, com pensadores como José Guilherme Merquior. Autores como Antonio Paim e Ubiratan Borges de Macedo também divulgaram as referências e teses do liberalismo social. O Instituto Liberal jamais pretendeu excluir o liberalismo social da categoria do liberalismo, nem liberais sociais como Merquior pretenderam que os liberais que não pertencem à sua escola deixem, por isso, de ser liberais. Uma simples consulta ao clássico de Merquior O Liberalismo Antigo e Moderno permite constatá-lo com facilidade.

É, ao contrário, precisamente o que vem tentando fazer um grupo cada vez mais barulhento de professores e jornalistas que se sentiriam claramente confortáveis em se enquadrarem na classificação já consagrada de “liberais sociais”. Não obstante isso, em vez de simplesmente assim se apresentarem, eles vêm tentando se arvorar em representantes do “liberalismo democrático” ou “liberais democratas”.

Refiro-me a uma espécie de “igreja liberal social”, em cujo pedestal estão autores como o pensador norte-americano John Rawls, que quer sistematicamente excluir todo o resto do liberalismo, movendo-o em absoluto em direção à esquerda e tachando todos os outros autores de “neoliberais” – conceito que definem como referente a uma categoria que, na verdade, não seria realmente liberal, porque “denuncia toda ideia diferente” e “atenta contra a democracia e o Iluminismo”, visto que seria escrava da economia e submeteria aos seus ditames toda a vida humana.

Essas são precisamente as palavras de um leitor do tributo ao professor Antonio Paim que publiquei na Folha de S. Paulo, que descobri ser um professor gaúcho, na seção de comentários do site do jornal. Ele afirma que liberais de verdade são nomes como o próprio Rawls e Jean Jacques Rousseau (!) e critica os “neoliberais” do Instituto Liberal, que represento. A ele e seus pares, respondo que não somos nós, os “neoliberais antidemocráticos” que eles apontam, quem, da forma mais arbitrária e pedante possível, estamos excluindo liberais do campo do liberalismo para, em seu lugar, inserir o radical francês defensor da “vontade geral” como grande nome da lista.

Só não é o mesmo caso do professor José Eduardo Faria, que, em artigo recente no Estadão, condena a defesa do voucher como a melhor política de auxílio aos mais pobres nos setores da saúde e da educação – a seu juízo, uma ofensiva dos “extremados chicaguistas” contra os “direitos sociais” defendidos pelos “liberais mais refinados” –, porque ele ao menos não expulsa os seus proponentes arbitrariamente do campo do liberalismo, limitando-se a tratá-los por radicais. Porém, como se vê, os argumentos são similares, senão idênticos. Ainda no artigo, ele se derrete em elogios para “liberais consistentes e respeitados, como John Rawls e Ronald Dworkin, e seus interlocutores comunitaristas (como Charles Taylor, Michael Sandel e Michael Walzer), para quem a ideia de bem comum vai além da mera somatória das vontades individuais”, e acusa os chicaguistas de “limitar sua visão do liberalismo ao princípio da não interferência do Estado na esfera do mercado”.

Essa distorção patética que aponta os liberais versados em Economia pela Universidade de Chicago como inimigos do Estado de Direito e da vida em sociedade, entre outras afirmações arbitrárias e repugnantes, já está passando de todos os limites. Não é preciso ir muito longe; basta avaliar os trabalhos do professor Og Leme, membro-fundador do Instituto Liberal, oriundo da escola de Chicago, que erigia o Estado de Direito entre os mais cruciais alicerces do liberalismo. Obviamente era um economista, o que implica ênfases temáticas na área em seus trabalhos, mas não poderia estar mais distante de uma abordagem meramente economicista. Igualmente Roberto Campos condenava a ideia de que um economista deveria ser economicista. Poucos autores terão trabalhado em áreas tão diversificadas quanto o austríaco Friedrich Hayek, a quem socialistas, sociais-democratas e keynesianos se acostumaram a apelidar pejorativamente de “pai do neoliberalismo”, para que seja minimamente justo acusá-lo de ser um autor que só trabalha a pauta econômica. Pode-se criticar sua proposta de uma versão alternativa à democracia liberal, que chamou de “demarquia”, como aliás o fez o professor Antonio Paim, mas não o reduzir à caricatura de um autor que propõe a extinção da solidariedade e uma visão completamente atomista da vida social. Muito menos a isso reduzir uma miríade de outros autores que foram por ele influenciados, muitos deles sem sequer necessariamente adotarem a tese demárquica. O que se vê por detrás desse intento é uma empreitada sórdida e desonesta, nada menos que isso.

Essa mesma narrativa acadêmica de promover uma separação radical entre “liberais verdadeiros, favoráveis à democracia” e “neoliberais que só querem liberdade econômica” alcançou o Youtube. Em uma entrevista, reproduzindo essa alegação, a apresentadora Gabriela Prioli expôs um esquema do espectro político e pediu que o deputado Kim Kataguiri nele se classificasse. Havia três categorias totalmente separadas no meio: “liberais democratas” (à esquerda), “neoliberais” e “conservadores liberais”. É claro que o deputado não sabia o que escolher. Pense-se, por exemplo, em Ronald Reagan ou Margaret Thatcher; ambos defendiam, obviamente, a democracia liberal ocidental. Ambos se inspiraram em autores ditos “neoliberais” (Milton Friedman e Hayek, respectivamente). Ambos eram de partidos e movimentos conservadores. Onde a apresentadora os classificaria?

Não afirmo que Prioli estivesse sendo mal-intencionada, mas claramente ela reverbera essa narrativa em seu esquema de classificação, talvez por influência dos intelectuais que frequentam seu mesmo círculo social. O truque é claro: “deixar no ar” que quem não segue Dworkin, Rawls e companhia, preferindo uma abordagem mais privatista, mais próxima à Escola de Chicago ou à Escola Austríaca, é um inimigo do Estado de Direito e da democracia liberal.

Não é a primeira vez em que abordo esse problema. Já o fiz ao me manifestar em relação a um artigo do professor Christian Lynch. Percebo, no entanto, que, desde então, essa ideia conquistou terreno. Já se veem figuras que mal se distinguem da social-democracia utilizando tal retórica para monopolizarem o significado da tradição liberal e apontarem todos que não as acompanham nesse movimento como autoritários antidemocráticos. Eles são os “liberais do bem”; nós, os “liberais do mal” ou, antes, os “falsos liberais”.

É preciso que não nos intimidemos por esse discurso e, ao mesmo tempo e não menos importante, que nos esforcemos por não conceder a menor dose de razão a essa falsidade. Quando todo tipo de estupidez reacionária travestida de conservadora ou trogloditismo obscurantista ganha apoio de liberais “do mal” – nas palavras deles – apenas para que se possa bajular políticos de estimação ou conquistar aplausos efêmeros, a seita dos “liberais do bem” se orgulha de ver fortalecido o próprio discurso mentiroso. Não podemos deixar que o liberalismo seja monopolizado por nenhuma escola arrogante e sedenta por dominá-lo, nem fazer, nós mesmos, com que ele seja afundado no precipício. Esse é o alerta mais urgente para a geração liberal de nosso tempo.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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