A estratégia comercial do “quer pagar quanto” não é tão inovadora quanto parece

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A edição de 24/01/2017 do Jornal Nacional revelou uma curiosa tendência constatada em estabelecimentos comerciais de algumas capitais: o consumidor decide o preço que quer pagar pelo bem ofertado. Esta “transformação nas relações de consumo” de que trata a matéria pretende demonstrar, na prática, que seria possível cobrar menos por produtos e serviços e, mesmo assim, manter as empresas operando. Ou ainda, em alguns casos, evidenciar que as margens de lucro do estabelecimento mantiveram-se em patamares “razoáveis” quando deixado a cargo do cliente definir quais parâmetros devem pautar a formação do preço das mercadorias.

Um dos investidores entrevistados que apostou neste modelo declarou que “a gente convida as pessoas a definirem um preço. Então, a ideia é que cada um busque um critério para dar um preço. Quanto você acha que vale, que merece, quanto paga por aí”. Os jornalistas responsáveis pela produção, a certo ponto da reportagem, afirmam que “o estranhamento dos clientes faz parte da proposta. Ter um comércio justo, com custos transparentes, e fazer com que as pessoas reflitam sobre o quanto pagam por serviços e produtos que consomem”. Também é personagem da peça jornalística um professor universitário de Economia que ministra um curso de pães e resolveu dar o exemplo, recebendo o valor estipulado por seus alunos; segundo ele, “a gente precisa criar formas alternativas que sejam muito mais humanas e sensíveis às necessidades das pessoas, que sejam mais equitativas, mais justas”.

Merecimento, justiça, transparência, retomada de consciência, transações mais humanas e equitativas, sensibilidade às necessidades das pessoas – todas essas palavras que apelam ao emocional, que agregam valor afetivo ao material televisivo, e contra as quais seria difícil (e politicamente incorreto) posicionar-se contra. Vale a pena, ainda assim, lançar um olhar mais apurado sobre esta suposta “revolução” fomentada pela rede progressista de TV.

1) Os consumidores, em um ambiente de negócios sem intervenção estatal, decidem quanto querem pagar desde que o mundo é mundo:

Desde os primórdios, as trocas entre os indivíduos sempre se deram em meio a acaloradas discussões sobre qual seria a correta equivalência entre a vontade do demandante de possuir um determinado artigo e o desejo do fornecedor em efetuar sua alienação – e, assim, faturar. Em muitos mercados a céu aberto, onde são comercializados, primordialmente, manufaturas e alimentos, ainda é possível observar tal metodologia sendo aplicada. Nestas praças, ainda vigora a barganha verbal como principal meio de definição de preço.

A extraordinária velocidade com que se efetuam compras e vendas em grande escala nos dias atuais, todavia, acabou por tornar mais prático, para ambas as partes envolvidas, fixar um preço e submetê-lo a todos os potenciais clientes. Os constantes incrementos de produtividade na indústria, que permitem fabricar bens de crescente valor a custos minorados, em amplas quantidades e em tempo reduzido, permitiram aos empresários reduzirem o lucro na margem para aumentá-lo no volume.

Tal avanço, porém, não teria como funcionar à moda antiga. Implicaria em elevação de despesas e complicações logísticas uma vasta rede de lojas online, por exemplo, contratar pessoas apenas para negociar com cada interessado nos bens ofertados, um a um, lidando individualmente com cada pedido de desconto, até que fosse atingido um ponto intermediário e satisfatório para ambos.

Tal procedimento rudimentar foi naturalmente substituído, pois, tão logo a evolução tecnológica (especialmente nos transportes e nas comunicações) ampliou a concorrência entre os agentes econômicos. Se nos é possível, com alguns cliques no celular, vir a saber o preço de um equipamento ou máquina em todas os pontos de venda da cidade, fica mais fácil pechinchar; se for viável dirigir-se rapidamente a qualquer ponto da cidade para buscar a oferta mais atraente, melhor ainda (quem sabe não rola até um Uber neste processo); e se quiserem entregar na minha casa, ótimo. Até mesmo leilões são realizados hoje pela internet, evidenciando que as discussões acerca dos preços seguem ocorrendo de forma habitual.

O progresso das relações comerciais desde a revolução industrial, portanto, não tirou das mãos dos consumidores a possibilidade de ele decidir quanto quer pagar; ao contrário, amplificou-a. Cada cliente, ao decidir pagar por um determinado produto ou serviço, acena positivamente com a cabeça para o comerciante que concorda com o preço.

Caso negativo, ele pode dirigir-se ao estabelecimento vizinho, o que sinalizará para o primeiro vendedor que ele deve, em tese, baixar seu preço. Cada compra que é realizada ou deixa de ser efetuada, neste contexto, representa um “voto” no preço que foi estipulado. Todos os clientes juntos, então, decidem “em coro” por quanto aquele bem deve ser vendido. E os princípios por eles empregados em suas tomadas de decisão serão sempre de ordem estritamente particular, podendo, ainda, oscilar no tempo.

Se eu pago três reais por um café expresso todo dia na padaria na esquina da minha casa, significa que eu e todos os demais frequentadores do panificadora estamos avisando ao padeiro que, sim, aquele é o preço que queremos pagar. 

E quanto mais liberdade econômica for usufruída pelos cidadãos em questão, mais este processo acentua-se, em benefício do consumidor, já que muitas empresas podem ser abertas e oferecer diferentes cafés para diferentes bolsos e gostos. Diferente, claro, de atividades econômicas “reguladas” pelo Estado (leia-se: cartéis sendo protegidos pelo governo), como táxis, transporte coletivo, aviação, planos de saúde, telecomunicações, onde o “quer pagar quanto” é substituído pelo “pague e não chie”. Ou chie, mas não vai resolver nada – ou vai piorar tudo, como revelaram os protestos pelo aumento de vinte centavos na passagem de ônibus em 2013: de que adianta pedir para baixar o preço de algo se esta redução será compensada com impostos, em um setor onde reinam umas poucas empresas agraciadas com a concessão estatal, que ainda contam com gordos subsídios?

2) Distorcer a formação dos preços é mexer com a principal engrenagem do sistema capitalista:

Consta da reportagem que todos os custos de produção da cafeteria “prafrentex” são disponibilizados pelo proprietário aos clientes, a fim de facilitar o cálculo de quanto seria o preço “justo” do café. Qualquer valor acima disto seria lucro para o empreendedor, correto? Sim e não.

Basicamente, o valor de qualquer mercadoria não é determinado pelo trabalho necessário a sua confecção, pelos materiais utilizados ou por qualquer outro fator do gênero. Todos estes elementos constituem o custo. O valor de um produto é determinado, sim, por sua utilidade. As pessoas compram (e portanto pagam) por algo em função do proveito percebido desse algo em suas vidas.

Se o preço for tal que os benefícios alcançados sejam menores do que o esperado (e, portanto, a utilidade do produto for superada pela utilidade de similares cujos preços forem mais atraentes), o bem não será vendido por aquele preço. Isso vale para tudo: desde o trabalho simples vendido por um operário, até um produto físico, como um computador ou telefone.

É essa conjuntura que motiva empreendedores a buscarem novos mercados desabastecidos das mercadorias que estes possuem para oferecer. Se ninguém vende sorvete em um dado bairro, há grande motivação para que algum investidor inaugure lá uma sorveteria. Enquanto não aparecer competição, resta inconteste que a utilidade ofertada por este investidor será altamente demandada, e ele poderá, portanto, auferir elevados ganhos, como recompensa por sua iniciativa e por ter colocado alegria na vida daquele povo.

Se o costume em voga desta população, entretanto, for permitir que o cliente pague quanto quiser, este sorveteiro pode até, eventualmente, ter lucro, mas não há como saber de antemão se será o suficiente para motivá-lo a empreender meios (e correr riscos) para abastecer esta região carente de seu produto. Sem esta previsibilidade, não há como dispor do mínimo de segurança necessária para que o vendedor se engaje na empreitada. E nada de sorvete na sobremesa deste pessoal, então.

Neste cenário, alguns irão se dispor a pagar mais pela doce iguaria, outros menos, mas esta feria deveras variável, contando exclusivamente com a boa vontade das pessoas, não será facilmente mensurável (ou seja, não há como extrapolar quanto será o faturamento periódico), dificultando um planejamento de médio ou longo prazo, tornando o negócio insustentável. Destarte, não há como este empreendedor saber se vale a pena levar sorvete até a periferia – e possivelmente ele não o fará. 

3) Este sistema de pagamento só funciona sob circunstâncias especiais:

Oferecer preços muito reduzidos, em alguns casos até mesmo saindo no prejuízo (como ocorre, volta e meia, no sistema “pague quanto quiser”), pode constituir uma boa estratégia comercial, afinal de contas, desde que alguns requisitos sejam atendidos.

A) O produto ofertado é produzido com baixo custo marginal (por peça) – considere um cantor que acaba de gravar uma música ou um escritor que lançou um livro; eles acabam de disponibilizar suas obras para download. O maior custo para produção destes ativos foi, justamente, sua elaboração intelectual e o tempo consumido no processo. A partir daí, cada novo PDF ou MP3 ofertado possui custo marginal próximo de zero, tornando as vendas, a partir do ponto em que esse investimento inicial foi coberto, lucro puro;

B) Vendas como estratégia de marketing – tornar seu produto ou serviço conhecido pode ser um bom motivo para adotar este modelo. Seria muito similar, no caso, a oferecer amostras grátis, para imprimir a marca na mente das pessoas. Até mesmo bandas de música tem feito uso desta metodologia na promoção de seus mais recentes trabalhos. O subterfúgio de parecer “descolado”, a partir deste relacionamento díspar com seus clientes, ainda tem o condão de atrair indivíduos metidos a “alternativos”, ou seja, prepare-se para receber muito bicho-grilo em seu estabelecimento (se eles trouxerem dinheiro, isso é bom, claro);

C) Vendedor e comprador possuem uma relação mais próxima: Se eu já sou praticamente um amigo do Manuel da padaria, e ele resolve deixar a meu critério o preço do pão, não terei coragem de “me dar bem” para cima dele. Agora, tente imaginar se esta preocupação virá à tona em uma compra efetuada no Wallmart ou no McDonald’s. Não tem jeito: quanto mais a empresa se expande, mais impessoais as transações comerciais se tornam, e, na mesma proporção, elas tornam-se menos passíveis de contar com o “bom senso” do comprador;

D) O estabelecimento visa, de fato, fazer caridade: o “pague quanto quiser” é, em verdade, um modelo híbrido entre comércio e beneficência, visto que a maioria daqueles que pagam um preço maior visam sentir-se bem consigo mesmos, como ocorre nos casos de doações espontâneas. Todavia, o que motiva alguém a comprar algo é a crença de que estamos pagando menos do que vale o produto. Este artifício que mistura filantropia com negócios “rouba” do cliente esta possibilidade, porque ele irá sentir como se estivesse trapaceando se resolver pagar menos do que acredita que vale o bem – o que, possivelmente, irá espantar os consumidores.

4) Lucrar não é imoral – a não ser que estejamos falando de métodos Eike-Batistianos de faturar:

Quem se deu ao trabalho de reproduzir o vídeo da reportagem supracitada percebeu, por certo, que o sentimento difuso no ar é de “olha só, e tem comerciante que cobra os olhos da cara pelo mesmo bem!”. Ou seja, estamos diante de uma crítica velada ao lucro, dando a entender que aqueles que cobram além do definido pelo cliente são exploradores. Mas querer lucrar seria mesmo uma atitude tão repreensível?

Lucro é o que permite a um empresário expandir seu empreendimento, gerando mais empregos diretos e indiretos. Reinvestimento é a palavra de ordem. Quando insumos sem valor aparente (matéria-prima bruta) são lapidados e transformados em bens desejados pelas pessoas, nada mais justo que ele revenda pelo valor definido pelo cruzamento entre oferta e procura.

Lucro é o que motiva o vendedor a correr o risco de não vender nada e quebrar – lembram-se do sorveteiro do exemplo lá de cima?

Lucro é o que exorta os investidores a melhorarem a qualidade do que oferecem. Se não houver como ganhar mais que a outra loja de sorvetes do outro lado da rua, diminui consideravelmente a motivação para melhorar os produtos vendidos.

Não é todo empresário que pertence à laia de Marcelo Odebrecht e demais alvos da Lava jato. A maioria está ralando para sobreviver em meio à estagflação gerada pelo Lulopetismo, sem contar com reservas de mercado, empréstimos camaradas do BNDES ou isenções fiscais direcionadas. Não vá na onda dos Marinho. Se alguém está tendo “muito” lucro em alguma atividade, é porque está faltando concorrência – e dificilmente isto não será culpa de alguma barreira estatal, da burocracia esquizofrênica ou consequência da carga tributária desmesurada.

5) Enquanto o “pague quanto quiser” é novidade, todos adoram pagar preços altos:

Muito legal decidir quanto pagar no croissant, tirar uma foto ou um “bumerangue” e postar nas redes sociais, posando de hype, de antenado com as novas tendências. Isto enquanto tal procedimento ainda é raridade. Mas bastaria tal estratagema tornar-se a regra geral e pronto: do dia para a noite, foi-se a graça em contemplar o vendedor pagando altos preços pelo consumido. É como transformar o lucro do empreendedor em gorjeta: no começo é tudo festa, sentir-se altruísta, engajado com a comunidade; depois começam as brigas do tipo “você não gostou do serviço?”, tão comuns em locais onde esta cultura existe.

Nem vou trazer (muito) à baila a famigerada malandragem do brasileiro, a qual, com o passar do tempo, certamente daria o ar da graça, tal qual os espertos que usam os refis de refrigerante das redes de lanchonete para passar a tarde toda se refrescando, apenas para dar um singelo exemplo.

Um dias desses vi uma matéria sobre um agricultor que deixa as mercadorias à venda de manhã cedo e só volta no final do dia para sua barraca de frutas e legumes. Mas adivinhe: ele posiciona etiquetas com o preço de cada item, para que os consumidores peguem o que desejam e deixem o dinheiro. Moral da história: é menos loucura largar o estabelecimento sem ninguém tomando conta do que deixar na consciência dos clientes quanto devem pagar.

6) Dê o exemplo então, “dona rede Globo”:

Mas se ainda assim, depois desta leitura, você concorda com o “pague quanto quiser” propagandeado pela emissora carioca, peça para ela agir conforme a reportagem então: ligue para a empresa e peça o pay-per-view do campeonato brasileiro por vinte reais; diga que quer ver as lutas do UFC por dez pilas; e que quer dar uma “espiadinha” no BBB por cinco contos. Tenho certeza que eles ficarão mais do que felizes em estabelecer com você uma relação comercial permeada de merecimento, justiça, transparência, retomada de consciência, transações mais humanas e equitativas, sensibilidade às necessidades das pessoas…

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Ricardo Bordin

Atua como Auditor-Fiscal do Trabalho, e no exercício da profissão constatou que, ao contrário do que poderia imaginar o senso comum, os verdadeiros exploradores da população humilde NÃO são os empreendedores. Formado na Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAR) como Profissional do Tráfego Aéreo e Bacharel em Letras Português/Inglês pela UFPR.

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